Capitulo 19
Rafaela a encarava, surpresa, incapaz de compreender a reação de Ágata. Só então Ágata percebeu que a olhava como uma completa desconhecida, e não como a amiga de todas as horas que Rafaela passou a ser. Ágata sentia que não tinha o direito de julgar alguém por algo que não era culpa de Rafaela. Ambas eram mulheres adultas e livres para viverem suas vidas como bem entendessem.
— Desculpe, amiga. Não sabia que vocês estavam tendo um lance. Tudo que vi foi uma mulher linda, e como você nunca se interessou por garotas, nem pensei, só dei em cima dela — Rafaela se desculpou, atrapalhada.
— Nós não estamos tendo um lance. A gente se viu uma vez e ela sumiu.
— Ela tem vindo quase todos os dias. A gente sempre conversa. Quando não tem fila, enquanto ela espera o jantar, fica olhando o ambiente como se procurasse alguém. Nesse dia, ela perguntou por você. Foi aí que dei a cantada.
— Quando foi a última vez que Marcela veio? — Ágata tentou disfarçar a ansiedade, forçando a voz a baixar para não chamar a atenção do pai, que já as olhava curioso.
— Antes da discussão com o Eduardo, ela vinha quase todos os dias. Ficava esperando em pé, aqui ao lado do caixa. Joselito entregava as quentinhas, geralmente duas, que ela pagava em dinheiro e ia embora.
Rafaela seguiu para o caixa, enquanto Gorete começou a bombardear Ágata de perguntas.
— Quem diria, hein? Sua frieza com os homens era porque estava esperando uma mulher! Não pensei que gostasse de garotas. Como é beijar uma mulher? Os peitos não atrapalham? São dois pares de peitões se batendo. Ela beija bem? — A amiga limpava os óculos, sem disfarçar a surpresa.
— Não atrapalha em nada, e você nem parece filha de lésbica. Já ouviu sua mãe reclamar de algo? Além disso, parece que me enganei. Ela já deve ter outros interesses.
Ágata estava decepcionada consigo mesma por achar que Marcela fosse diferente.
— Vagaba! Essas coisas a gente não pergunta para a mãe, e sim para a melhor amiga! — Gorete balançou a cabeça, como se não acreditasse na ignorância de Ágata. — Não acredito que ela tenha vindo aqui por causa da Rafaela. Tudo bem, ela é linda e cheia de conversa, mas não acha que, se ela quisesse a Rafa, já estaria com ela?
Gorete falava com tanta convicção, gesticulando cuidadosamente, que Ágata começou a querer acreditar.
— Você acha?
— Tenho certeza. Se ela quisesse a Rafaela, já estariam namorando. Então, como foi beijar uma mulher? É melhor do que beijar homem?
— Foi natural, ou melhor, foi magico, foi tudo de bom. — Ágata não conseguia explicar, — foi o melhor beijo de minha vida.
— Espera, espera, espera! — Rafaela se intrometeu. — Vocês chegaram a se beijar? Mulher de Deus! Cadê minha amiga santinha? Você a matou? Agora quero saber tudo! Anda, conta! E não me esconda nenhum detalhe. — Ela riu da expressão de Ágata e sentou como se fosse seu horário de folga, mas dessa vez o pai de Ágata estava no caixa em seu lugar.
— Mulher, se manca! Você deixa o seu patrão trabalhando no seu lugar só para fofocar? — Essa era a marca de Gorete: sua língua afiada.
— Foi ele quem mandou, está fazendo a sangria do caixa. Mas não mudem de assunto, continuem o que estavam dizendo.
Rafaela batia na mão de Ágata e se remexia tanto que parecia que o assento era cheio de pregos. Ágata segurou suas mãos para fazê-la parar.
— Antes, me diga: quando deu em cima dela, foi correspondida? — Ágata queria acabar logo com aquela sensação ruim que vinha crescendo a cada dia.
— Nada. Deu a impressão de que está a fim de você, mas quando a gente investe, ela se retrai. Comigo, ela simplesmente sorriu e me dispensou, mas foi educada. Disse que o que ela queria só você podia resolver. Achei até que fosse um emprego — Rafa deu uma risadinha sem graça. — Ainda tentei mais uma vez, mas ela fingiu que não entendeu. Eu fiquei na minha, mas estava mesmo a fim de uns amassos. Essa mulher tem uma coisa que sei lá…
Ágata não gostou muito da sinceridade de sua amiga. A incomodava o fato de ela assumir abertamente que queria ficar com a mesma pessoa que Ágata.
— A gente se conheceu no calçadão aqui na frente, ela quase me atropelou — Ágata começou. — Como eu estava com dor na bunda… — pausou, tentando não rir — Marcela me trouxe nos braços. Ela é tão cheirosa.
— É mesmo.
— Deixa a Ágata contar! Continue.
— Mas não é um cheiro só de perfume comprado em loja, Ágata estava falando de um cheiro original, único, só dela. O hálito dela é tão gostoso e parecia que Ágata não pesava nada em seus braços. Vocês acreditam que ela subiu as escadas me carregando como se eu fosse um bebê? — Ágata arrancou as mãos do aperto de ferro de Rafaela, que ria como uma louca. Gorete a olhava embevecida com o que ouvia.
— Agora está explicado por que eu não tive chances! Você foi mais rápida marcando terreno! — Rafaela levantou e voltou ao caixa.
— Também não é assim — Ágata justificou. — Só aconteceu. Mas não vou mentir, eu quis ser beijada desde que ela me colocou nos braços, e quando aconteceu eu quis muito mais do que beijos.
— Umas amigas me disseram que mulher vai para a cama no segundo encontro e só depois começa a namorar. — Gorete riu da cara espantada de Ágata.
— Tomara que dessa vez seja diferente. A Ágata, toda vez que vai para a cama, no dia seguinte fica com nojo do coitado e termina o namoro. Nunca durou mais de um mês.
— Mentira! — Ágata protestou. — Eu só fui para a cama três vezes e não gostei de nenhuma delas. E só para o seu governo, eu já namorei um cara por dois meses. — Nem mesmo Ágata sabia por que não tinha interesse em seus namorados. A magia da conquista terminava logo depois do momento íntimo. O primeiro roncava tanto que a deixava louca. O segundo queria dormir em cima dela e a deixava sufocada, além de não beijar bem. E o terceiro dava mais importância ao prazer dele do que ao dela. Mas, no fundo, Ágata sabia que o problema era ela.
— Esse não conta. Vocês só se viam uma vez na semana. Quando foram para a cama, terminaram antes do amanhecer — Gorete lembrou, condescendente, passando as mãos no cabelo de Ágata e tentando disfarçar o sorriso.
— Eu também sou assim, não gosto muito de grude. Aliás, nem tenho tempo, e de relacionamento sério eu quero é distância. Sou casada com meus estudos; a gostosa seria só um desvio de rota — Rafaela afirmou.
— Minha mãe diz que uma mulher conhece a alma de outra, e quando é para conquistar, não existe um ser na terra que saiba ser mais romântico. Quando encontra a pessoa certa, é capaz de conquistar sem palavras. Ou melhor, conversam só com o olhar — disse Gorete.
— E sua mãe estava certa. Ágata sentia que conversava com Marcela só olhando para ela, e sabia que ela entendia. Nunca viveu tal coisa com um homem.
— Minha mãe também diz que mulheres lésbicas sabem quando a outra é lésbica só de olhar, como se tivessem um código de barras invisível que só elas sabem ler.
— Credo, Gorete, eu me sinto uma mercadoria de loja exposta nas prateleiras quando você fala assim.
Ágata sorriu, fingindo desconforto.
— Eu não sei nem se sou lésbica — falou baixinho, para si mesma, como se procurasse a resposta dentro de si. — Só sei que gosto dela de um jeito que nunca gostei de ninguém antes. É um sentimento novo, forte e desconhecido que me deixa sem ar só de pensar nela, porém eu não quero rotular minha sexualidade ainda.
— Como não sabe? — Rafaela se indignou. — Foi só colocar os olhos na Marcela e você caiu de amores. Pensa bem, você nunca se apaixonou, detesta homens musculosos, de barba, de bigode, conquistadores, com cheiro de bebida, que fumam, que querem logo trans*r, beijos… Beijos, amiga, você odeia beijar na boca, e vem me dizer que beijou uma mulher no primeiro encontro e gostou?
— Pois é… — Ágata sorriu, meio encabulada.
— Então, bicha, você é gay. Simples assim.
— Meu irmão disse o mesmo. Ele viu a gente se beijando.
— Não! Mentira! O Greg viu?!
Rafaela olhou para a entrada, para o primeiro cliente que chegou para o lanche da tarde, e se levantou. Agora ela não tinha como escapar do caixa.
— Ele estava dando em cima da Marcela desde que botou os olhos nela, ela é que não deu moral. Foi tanta coisa que aconteceu no mesmo dia, e tudo dava a impressão de ser rotina na minha vida, como se a gente já fosse casada.
— Talvez ela seja sua alma gêmea de outras vidas, já pensou nisso? Que você estava dormindo para o amor esperando ela chegar?
Talvez fosse verdade. Ágata realmente estava dormindo e só agora acordou para o amor. Mas que amor era esse que só sabia o primeiro nome da pessoa? Ágata não sabia onde Marcela morava ou como procurá-la. Gorete bateu em seu braço para chamar sua atenção.
— E aí? Continua o que estava dizendo.
— E aí que depois do beijo que eu mesma ofereci, ela me pediu para fugir, que ela era um perigo na minha vida e desapareceu.
— Agora quem se apaixonou fui eu! Se eu beijo alguém e a pessoa diz isso, eu tiro minha calcinha na hora.
Rafaela voltou, deixando o pai de Ágata no caixa outra vez. Ele já as olhava há um tempo, curioso com os sussurros. E gritos, dependendo da revelação. Estava doido para saber o que elas falavam. Ágata pediu para as meninas falarem mais baixo, mas não duvidava nada que seu pai tenha ouvido pedaços do que diziam.
— Pelo visto ela também tem tentado te encontrar. O problema é que à tarde estamos no shopping — Gorete falou.
— O pior é que eu não tenho o telefone dela e nem sei seu nome completo. — Ágata não quis dividir com as amigas a suspeita de que a Marcela que vinha fazendo Pix e a mãe da Alex eram a mesma pessoa. A garota falou que ela e a mãe estavam fugindo.
— Mas aqui é um restaurante e ela sabe onde você mora. Com certeza vai dar um jeitinho de te encontrar. Quem sabe ela já veio, ficou te observando de longe.
— Vamos procurar pelo nome no Insta, Telegram, Facebook, TikTok e até na casa do caralh*, mas vamos encontrar sua alma gêmea. — Gorete nem terminou de falar e já tinha pegado o telefone.
— Melhor não, amiga. Acho que ela não tem rede social — Ágata pediu. — Vamos trabalhar antes que fique muito tarde. As massas estão todas prontas e os molhos também. Já separei os queijos, estão todos enrolados nos panos, e as caixas de vinho.
Nenhuma das duas protestou.
— Peça para colocar tudo no carro e vamos ver os pedidos de hoje. Quem sabe encontramos um pedido da sua namorada que vem com o endereço…
Ágata não conseguiu evitar um sorriso de felicidade quando Gorete se referiu a Marcela como sua namorada.
Pegaram as fichas dos pedidos, procurando por aquele nome, e nada. Ágata até leu duas vezes, mas nenhum foi feito por alguém chamado Marcela. Quando a esperança já estava morrendo, uma nota com o endereço do colégio de uma amiga do pai de Ágata batia exatamente com o mesmo valor recebido.
— Gorete, olha isso! Esse endereço é do colégio novo da Dona Montserrat. O que a Marcela está fazendo lá?
— Talvez ela trabalhe para a Dona Montserrat, ela sempre gostou de ter uma secretária particular, tinha umas duas quando estudávamos lá.
— Ela não tem cara de secretária, talvez seja professora.
Ágata imaginou como seria ter uma professora como a Marcela. Com certeza os alunos se apaixonariam por ela. No seu tempo de colégio sempre tinha uma professora linda que todo mundo era apaixonado.
— Vamos fazer assim. Ágata, eu vou ficar com o Saulo e o Danilo no quiosque e você vai até o colégio ver se descobre algo.
— Não posso largar tudo para correr atrás de uma mulher que não quer ser encontrada só por causa de um beijo. Vamos trabalhar, amiga, amanhã a gente passa por lá — Ágata sugeriu, mas sua vontade era de seguir o conselho da amiga.
Fim do capítulo
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