Sem surpresas
“Na real? Eu achei fofo.”
Daniele revirou os olhos como resposta ao comentário da amiga, que continuava a dizer que aquilo parecia coisa de filme, como quando a pessoa fazia algum sacrifício pela outra em silêncio. No entanto, a outra parte que ouvia aquilo discordava completamente, e para completar, se incomodava profundamente com o fato de que continuavam conversando normalmente sobre tudo, mas que em nenhum momento citou que estava em processo de adaptação do aparelho. Se não fosse sua tia ter dito, provavelmente não saberia de nada.
No dia do acontecido, procurou saber mais de como funcionava o aparelho. Sim, a adaptação era difícil e demoravam semanas e até meses para poder se estabilizar, e não dias. Depois que viu alguns vídeos sobre, seguiu para os que falava sobre níveis de surdez e afins. Não sabia dizer o quanto Helena não possuía da audição, mas pelo que já tinha visto, concluiu ser um nível avançado.
Sabia por que, certa vez, o jardineiro teve que usar a motoserra e, enquanto ele usava aparelhos auditivos para proteção, Helena, que estava ao lado, não expressava qualquer reação. Olhava para os galhos caindo no chão próximo como se não fosse nada. Sequer um ar de incômodo.
Logo, ir à sua apresentação, com tantos estímulos sonoros, seria uma verdadeira tortura. Por mais que a intenção fosse boa e que talvez trouxesse um inesperado sorriso bobo aos seus lábios, ela não queria permitir que isso acontecesse.
A figura atirada na cama olhava para a mensagem não respondida sobre que horas deveria ir. A roupa tinha sido separada com antecedência, mas o aviso para os entes familiares ainda não. Tinha receio do não, porém não podia simplesmente desaparecer da casa e aparecer depois. O zumbido infernal que vez ou outra ainda invadia seus ouvidos também não a deixava que pensasse direito.
O cantar do pássaro ainda a incomodava, o barulho da panela de pressão, o cair de alguma coisa abruptamente, passos de botas, um riso mais esganiçado que o normal. Sentou-se no chão, e deslizou os dedos que prendiam devagar contra o azulejo bege. Pelo menos isso já não soava tão ruim, ou pelo menos essa era a impressão que tinha. Desceu a ponta dos dedos e passou pelas unhas. Também continuava normal. Subiu a mão pelo colchão. Mais uma vez, o toque dos dedos contra soava tolerável, mas quando arrastou as unhas, sentiu que já era demais. Como iria ver alguém cantando se até mesmo aquilo incomodava?
Talvez conseguisse ouvir uma música, e então desligaria o aparelho. Teria mais ou menos noção de como seria sua voz e do jeito que entoaria as músicas, e então seguiria lendo seus lábios como sempre fazia. Era a possibilidade mais aprazível.
Já Daniele olhava para a mensagem, na qual tinha apagado a resposta por pelo menos cinco vezes. Queria dizer que não precisava que fosse, mas também não queria que soubesse que era por contado que já estava sabendo. Como faria isso? Ainda assim, queria que ela comparecesse. Não precisava que ela ouvisse, só a sua presença seria legal. Poderiam conversar depois da apresentação, assim como comer alguma coisa junto à Olívia.
Talvez, quando se encontrassem e notasse que ela o estivesse usando, faria algum comentário sobre, e repararia na sua reação, assim como no dia da motoserra. Parecia a melhor opção, e nela se ateu ao responder que poderia ir às nove, já que seria o horário que entraria para tocar a sua habitual uma hora de músicas selecionadas para o público, arriscando uma e outra autoral no meio.
Dito e feito, estava marcado. Às sete, Helena disse à sua tia que iria sair com Daniele para um restaurante. Não era bem mentira, mas uma verdade contada distorcida, já que, além dos comentários inoportunos do fato de Daniele ainda querer seguir fazendo música – e pelo visto, recebendo mais um apoio – tinha o risco que a quisesse impedir por causa do aparelho. Também não estava com tanta disposição de pular a janela e fugir.
Mas, como de se esperar, Fátima não engoliu tão bem aquela conversa justamente por já saber que Daniele iria tocar naquela noite. Sueli já tinha ligado para confidenciar seu desgosto semanal. No entanto, não quis falar nada, e torceu para que ela tivesse a decência de não ir com o aparelho para um lugar tão barulhento. Também optou por não falar nada além de que estava tudo bem.
Quando terminou de se arrumar, usando uma camisa de botão azul, calças jeans pretas e um tênis da mesma cor da camisa, mas já desbotado, os quais escondiam as meias de listrinhas pretas e amarelas, olhou para o relógio.
“Merda, já estou atrasada!” foi o pensamento das duas quanto viu que faltava apenas quinze minutos e as coisas sequer haviam sido montadas. Para sua sorte, Olívia era a roadie fiel, e já estava antecipando a montagem da caixa com o instrumento enquanto a amiga, nos fundos, olhava para a imagem no espelho preso a um camarim improvisado, passando o chamativo batom vermelho nos lábios e jogando o cabelo para trás. Não tinha tido tempo nem de se arrumar direito. Pegou da bolsa o perfume, espirrou atrás das orelhas, nos pulsos, entre os cotovelos. Passou o delineador entre os cílios, que pela pressa tinham ficado brevemente tortos. Resmungou consigo, tentou fazer de novo. Continuou a mesma coisa.
Pela regra de etiqueta que promulgava a vida de Helena, deveria chegar com antecedência, mas acabou chegando com três minutos de atraso da hora marcada. Assim que chegou em frente do local marcado e adentrou, viu as mesas brevemente cheias e a conversa que se seguia frívola. Não conhecia um rosto que estivesse ali, e agradeceu por isso. Procurou o lugar mais à frente e que ficasse de lado, já que iria precisar entender o que estava sendo dito e com um microfone à frente da boca que estaria cantando, ficaria difícil.
Uma mulher que não era Daniele estava no palco. Cabelo curto jogado de lado, camiseta sem mangas que mostrava um top embaixo, calças coladas e um tênis que ia até o meio da sua canela, uma monocromia preta em todas as peças. Puxava um cabo de um lado a outro, plugava em um amplificador, apertava alguns botões dispostos pelo palco. Olhou para o relógio mais uma vez. Estava atrasada.
Passou-se dez minutos, e depois de uma água pedida com certa dificuldade por um garçom que a olhava como se ela estivesse fazendo uma piada, Helena viu Daniele entrar no palco. Usava um vestido branco florido que praticamente se arrastava no chão, se não fosse pelas botas altas que usava. O cabelo armado jogado para trás, a maquiagem que sempre estava presente, mas que, dessa vez, estava ainda mais marcada.
Agradeceu por todos que estavam presentes, olhando de uma ponta à outra, até que percebeu um rosto familiar. Como resposta imediata, um sorriso de ambas as partes e o olhar curioso da pessoa que estava saindo dos fundos do palco. “Então essa que deve ser a Helena”, pensou Olívia, já se aproximando da mesa.
Tinha uma cadeira livre ao seu lado e, quando colocou a mão apoiando à mesa, pedindo licença e perguntando se o lugar estava vago, teve nada como resposta. Definitivamente, era Helena. Tocou em seu braço, e ela virou de imediato, brevemente surpresa, como se tivesse pegado um susto, distraída. Era a garota do palco. Perguntou mais uma vez se o lugar estava vago e se poderia sentar ali, no qual ela respondeu com um tudo bem.
Mas, foi a única interação que tiveram. Daniele começou a cantar algumas músicas de cantoras famosas, que se seguiam de um aplauso e outro. Já Olívia reparava na presença ao seu lado. Séria, sem nenhum acessório preso à sua orelha, dona de um rosto bonito e olhos compenetrados a cada movimento do palco.
No qual a pessoa presente tentava levar com tranquilidade o fato de que sua melhor amiga havia se sentado ao lado de Helena. No entanto, assim que levou o olhar para a mesa no final da mesa, seguiu a vendo aplaudir, assim como a pessoa do seu lado, que gesticulava dizendo estava tudo bem em continuar, apontando para a orelha esquerda e fazendo a negativa com os dedos.
Pelo menos até depois de duas músicas que se seguiram a isso, quando Daniele disse que iria cantar uma música autoral chamada “Corpo em chamas”. Foi quando, nos primeiros acordes de uma Daniele concentrada e uma Olívia distraída olhando a apresentação, Helena respirou fundo e, delicadamente, os acoplou nos ouvidos. Seria rápido, não podia ser tão ruim assim.
Era o que ela pensava assim que, no mesmo segundo em que ligou o aparelho, sentiu uma insuportável cacofonia invadir sua cabeça. Era tanta coisa ao mesmo tempo que perdeu o ar ali mesmo, colocando a mão contra a cabeça, tentando omitir o máximo que podia a dor que estava sentindo.
A ponto que não conseguia nem desligar o aparelho. Daniele cantava com os olhos brevemente cerrados os versos escritos por ela enquanto Olívia tentava entender o que estava acontecendo ao seu lado, o que se intensificou quando a viu se levantando com dificuldades e seguindo pelo corredor ali próximo. Levantou-se, mas não sabia se deveria ir atrás dela.
Era como um riscar de faca contra pratos incansáveis, amplificados em um som sem qualquer afinação. Um gritar ao pé do seu ouvido misturados com um carro em um alarme que nunca cessa. Tudo isso ao mesmo tempo. Era bem pior do que da primeira vez que tinha colocado aquilo. Sentia suas unhas praticamente arrancarem os lóbulos de suas orelhas quando passou para a cabine do banheiro a passos pesados, em uma tortura que parecia durar horas, mas que só fazia alguns segundos.
Daniele viu o olhar apavorado da amiga assim que terminou a música. Olhou para a cadeira vazia ao lado, como se perguntasse o que tinha acontecido. A resposta, por mais óbvia que fosse, não era a que ela queria ouvir. Gesticulou que ela saiu a passos rápidos para lá, e a reação de Daniele foi só uma.
Pediu licença no microfone, deixou o violão de lado e saiu praticamente correndo na direção em que Olívia tinha dito a ter visto passar. Entrou no banheiro, e escutou o murmurar vindo de uma das cabines. Estava entreaberta quando a abriu abruptamente e se deparou com Helena com as mãos na cabeça, enquanto praticamente se contorcia no chão.
Ajoelhou-se, tateando por sua orelha quando Helena se virou com a feição completamente assustada, cheia de dor. O coração de Helena se apertou, mas, tentou como pôde não demonstrar a angústia que sentia quando se aproximou e tocou no aparelho em seus ouvidos.
“Calma, vai ficar tudo bem... Eu estou aqui.”
Foi a última coisa que Helena conseguiu ouvir antes que Daniele, com as mãos trêmulas que a seguravam, conseguisse, por fim, desligar o aparelho.
Fim do capítulo
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