Capitulo 16
Capítulo Dezesseis:
Marcela permaneceu em silêncio sem palavras. Embora amasse sua mãe, as decisões do passado haviam corroído o que restava de sua admiração. Casar-se oito meses após o assassinato de seu pai e trazer outro homem para a mesma cama que ele um dia deitou foi um golpe devastador. Querer que a chamasse de pai, conhecendo sua adoração pelo pai biológico, era quase um escárnio. Nunca uma palavra de consolo nas noites em que chorava até dormir, sentindo a falta paterna. Jamais fora sua amiga, permitindo que o marido a obrigasse a ir à igreja dele, sendo omissa quando a trancou em casa, e nunca lutou por ela, nem mesmo quando partiu para a casa de sua tia.
— A Mom sempre cuidou de mim. Além de tia, ela é minha madrinha. Sempre vivemos juntas, minhas férias eram na casa dela, e quando o Eduardo nasceu, a senhora mesma me despachou para lá — respondeu ela com uma ironia incontrolável. Anos depois, ainda doía lembrar que as empregadas, sob as ordens de Renato, arrumaram sua mala às pressas e a jogaram num carro para a casa da Mom, sozinha e apavorada. O medo de sua mãe morrer e ela ficar órfã a consumia.
— Seu irmão nasceu prematuro, eu quase morri. Foram dois meses internados. Quando teve alta, precisava de cuidados especiais, não podia ter contato para evitar bactérias. Foi um ano infernal para nós, Renato quase enlouqueceu achando que o filho morreria. E como fiz laqueadura, não podia dar a ele outro filho.
A mesma velha desculpa toda vez que o assunto surgia. Nada justificava o abandono na casa de sua tia, por mais que fosse seu segundo lar.
— Eu sei, mãe. Na época, senti um medo terrível e abandono. Não estou te julgando, sei que sempre teve a saúde frágil e partos de risco. A Mamãe na época me explicou, mas convenhamos, desde que me lembro por gente, minha vida é na casa dela. É natural que eu me sinta mais parte da família dela, do que da sua. Minhas melhores lembranças de infância e adolescência são com minhas irmãs lá na fazenda, na nossa casa na Europa ou aqui mesmo — respondeu ela, observando pela janela o crepúsculo. O sol se punha em um manto alaranjado enquanto pássaros faziam festa, buscando seus ninhos nas copas das árvores que se perdiam no horizonte.
— É disso que falo! Até de mãe você a chama, desde que voltaram da Inglaterra. Isso eu não perdoo a Montserrat, por ter te levado e passado seis anos longe. Quando você chegou, não quis mais voltar para casa.
— Ela não tem nada a ver com o fato de eu não voltar para casa. A verdade é que trouxe uma garota comigo. Como a senhora acha que o Renato reagiria com duas mulheres dormindo juntas sob o mesmo teto que ele? — Ela respirou fundo, controlando a raiva. Falar do padrasto sempre a irritava.
— A casa é sua, filha, pode trazer quem quiser — a mãe também respirou fundo antes de continuar. — Tem o direito de dormir com quem quiser na sua casa.
— A senhora contou a seu marido que a casa está no meu nome? Que o papai deixou tudo para mim? Eu só soube quando completei a maioridade que papai tinha nomeado o tio Anderson como meu tutor legal, caso algo acontecesse com ele.
Quando adolescente, ela achava que Renato era um interesseiro que encontrou uma viúva carente e deu o golpe do baú. Mas ele provou ser um bom marido e pai. Para o filho dele, pelo menos. Ela também percebeu que, no fundo, seus pais não estavam apaixonados. Não o amor que via nos olhos da mãe quando olhava para Renato. Achava que seu pai sabia, por isso seu tempo livre era todo com ele.
— Ele soube da casa quando quis vendê-la para comprar uma menor. Ao tentar passar a documentação, descobrimos que não podíamos. Foi então que Anderson veio aqui e explicou que a casa era sua e toda a herança de seu pai passou a ser sua também. Eu não tive direito a nada. Até a indenização da morte dele no trabalho só pude receber quando você ficou de maior e foi dividida entre nós duas.
Ela sentou na varanda, sentindo o ar fresco da noite e admirando os últimos brilhos do dia. O céu piscava com as estrelas que começavam a surgir. Juarez lhe explicou que tudo estava em seu nome e seria dos seus filhos no futuro, quando os tivesse.
— Enquanto a senhora for viva, essa casa é sua. Não se preocupe, não me sentiria bem em trazer uma mulher para sua casa, conhecendo seu marido. E mãe, eu amo você, mas também amo a Mom. As duas ocupam o mesmo espaço no meu coração — ela queria que a mãe acreditasse.
— Eu sei que a Montserrat te ama como filha, ela é mais sua mãe do que eu. É por isso que não quero ficar de fora da vida da minha neta, assim como você nos deixou de fora da sua. Se minha neta tiver algum problema, quero estar perto para rir ou chorar.
Ela não sabia nada da sua vida no Rio. Contou tudo à Mom, do início ao fim, mas quanto a essa outra mãe, não se sentia segura em mostrar essa parte de sua vida.
— Desculpa, mãe. Prometo que vou conversar com a senhora assim que puder, sobre tudo que está acontecendo. Quando Eduardo chega da viagem? — Ela mudou de assunto, sem ter certeza se queria mesmo contar a verdade, fingindo não saber que ele já estava em casa.
— Ele chegou depois que você saiu, jogou as malas no quarto e foi trabalhar.
— E como ele está? Tem namorada? Ou ainda vive de farras?
— Hoje ele ia levar vocês duas para o restaurante de uma garota por quem ele é louco. Ele garantiu que dessa garota você ia gostar.
Ela se revirou no sofá, desconfortável com a informação. Não queria que seu irmão soubesse que ela estava gostando da mesma garota, que ela tinha gostado muito antes de falar com ela.
— Na semana que vem ele conhece a Alex. Pretendo ficar por aqui uns dias para minha filha aproveitar a praia e brincar na areia. Mãe… — ela chamou, tentando disfarçar a emoção. — Esse namoro do Eduardo é coisa séria? A senhora conhece a moça?
Ela não conseguiu disfarçar. A voz saiu mais alterada e ansiosa do que o normal, o tipo de coisa que denuncia a culpa em um interrogatório.
— Se tratando do Eduardinho, nunca se sabe, mas ele trouxe a moça um dia aqui em casa com outros amigos. Ela é uma boa moça, aliás, eu trabalho na reforma da casa dela, em cima do restaurante da família. O pai dela é meu amigo de infância. Quanto à garota, eu penso outra coisa desse suposto namoro. Ela parece mais amiga do que namorada, é uma italianinha alegre, parece que todos a adoram. Mas nunca mais ela veio aqui em casa e não quero perguntar o motivo quando a encontro.
Ela não sabia se gritava de alegria ou se dançava no meio da sala. Tentou se controlar, parecia uma louca. Onde diabos estava sua maturidade? As emoções a atropelavam: esperança, receio, medo de sonhar acordada, vergonha por desejar que Ágata não fosse namorada de seu irmão, inveja dele por ter a atenção dela. Tudo isso junto e misturado a fazia sentir uma adolescente. Pior ainda, uma adolescente lésbica, todos os sentimentos vinham com mais intensidade.
— Então ela é italiana? — A voz saiu esganiçada, diferente de sua habitual.
— Não, o pai dela que é. Também foi amigo do seu pai e da Montserrat quando eram jovens. Eles têm um restaurante na beira-mar, já fomos lá algumas vezes, é bem confortável e a comida, melhor ainda.
— Não lembro desse amigo do papai, também eu era tão pequena — tentou lembrar do rosto de alguém que parecesse com a Deusa Romana que estava revirando suas entranhas.
Conversaram sobre diversos assuntos. Quando desligou, pegou a garrafa de vinho esquecida na mesinha ao lado das chaves e da carteira. Tomou o restante de uma vez só e pegou o celular. Trocou o chip, configurando o aparelho para ligação inibida e discou o número de seu amigo.
— Jacinto, sou eu. A aula da Alex já acabou?
— Sim, acabou agora mesmo. Estamos indo para a casa da sua mãe. A senhora está bem? — Sua voz soava preocupada.
— Sim, está tudo bem. Eu já pedi para me chamar só de Marcela quando estivermos a sós ou entre amigos, esqueça essa frescura de etiquetas — era difícil fazê-lo esquecer a hierarquia.
— É o hábito, mas vou me policiar. A senhora… ou melhor, você quer falar com ele? Vou passar o telefone — Jacinto sempre se referia a Alex como “ele” se estivessem em público. — Sua mãe quer falar com você.
A imagem da Alex arregalando os olhos, fazendo sinais e perguntando o que tinha acontecido, invadiu sua mente. Viu até mesmo ela pegar o celular, nervosa.
— Mamãe, o que… o que foi? — A voz da filha era música suave em seus ouvidos.
— Nada, minha linda. O Jacinto vai trazer você até a nossa casinha, aquela que te falei que é cheia de plantas e bichinhos. Vamos passar o final de semana só nós duas, mas antes quero que ele vá a um restaurante e compre nossa janta. Fique sempre perto do Jacinto e faça o que ele mandar.
— Cer… certo, mamãe.
— Pode falar, chefe. Estou ouvindo — ele pegou o celular de volta.
— Vou mandar minha localização. Traga Alex para cá, mas antes quero que passe no restaurante Gregório na beira-mar.
— Agora o bicho pegou, não tenho um tostão na minha conta e ando sem cartão.
— Quando chegar lá, me manda o valor e eu transfiro para você.
— Agora, sim, a coisa melhorou. Aproveita e manda um adiantamento, estou liso e meu salário só cai no quinto dia útil. Até lá ainda tem chão.
— Claro. Compre macarronada, vinho e pizza.
Ela levantou e foi para a frente da casa examinar a varanda que circulava a casa toda, com bastante espaço para armar redes e dormir ao ar livre, tendo as estrelas como teto. Era onde dormiria agarradinha com sua filha.
— Tenha cuidado com minha filha, Jacinto.
— Pode deixar, chefe. Defendo a vida dela e a sua com a minha vida.
— Eu sei, mas não esqueça de viver a sua vida também, nem tudo é trabalho.
— Ainda estou meio na deprê depois que o boy preferiu a profissão em vez de ficar com esse gostosão.
— Ele ou você? Pelo que soube, foi você que não quis, o bofe era louco por ti.
— Aí está a questão. Eu não estava apaixonado o suficiente para colocar em risco minha profissão, mas quem sabe um dia. Por enquanto, a Alex pode ficar despreocupada.
A conversa foi cortada. Ela confiava no amigo, mas não nas emboscadas que podiam armar para raptar Alex.
Ela espantou os pensamentos horríveis da mente, repetindo como um mantra: “ela saiu, sua filha saiu”.
Alex estava segura e longe do Rio. Com a ajuda de profissionais qualificados, conseguiria esquecer aquela vida de horrores e o que quer que ela tenha visto de tão terrível que seu cérebro a obrigou a ficar muda para não gritar e morrer. Mas ela ia descobrir o que tinha acontecido. E caçar cada um dos responsáveis, mesmo que fosse até o inferno.
Fim do capítulo
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Lilian Santos
Em: 12/12/2024
Estou amando essa história, mas é uma pena que história com crianças como essa existe aos monte por aí
Bel Nobre
Em: 13/12/2024
Autora da história
obg. pelo elogio. realmente o abando a criança no geral me toca muito.
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