Capitulo 14
Capítulo 14
Uma avalanche de sentimentos contraditórios, novos e assustadores, tomou conta de Ágata, derrubando certezas que ela pensava inabaláveis. — Espalharam-se lentamente por suas veias, como um veneno silencioso diluindo-se no sangue, até alcançar seu coração. — O peso era tanto que ela precisou respirar fundo, buscando um fôlego que já não encontrava. Seu ar desapareceu no instante em que seus olhos, marejados de lagrimas, impregnado de uma saudade infinita e frustração, se fixaram no olhar de Marcela — um olhar que destilava puro veneno.
Quando Marcela a viu beijando Eduardo — ou, pelo menos, foi isso que pareceu enxergar do local onde estava parada com sua moto—, acelerou e partiu sem olhar para trás, isso estraçalhou algo dentro da filha do se Gregório.
Ágata ficou paralisada, sem reação, enquanto via a mulher girar a chave e sumir rapidamente, quase colidindo com um carro que manobrava próximo, desviando da traseira por um triz. — Como se quisesse provar aquilo que dissera no dia em que se conheceram — que jamais havia atropelado ou batido em outro veículo —, Marcela mostrou sua habilidade impressionante na pilotagem. — Deitou a moto e o corpo no asfalto com uma agilidade cinematográfica, desviando dos carros que buzinavam enlouquecidos.
Mesmo dominada pelo nervosismo, Ágata não conseguiu deixar de admirar Marcela. — A mulher parecia ser uma extensão da máquina, tamanha a destreza com que comandava cada movimento. — E então, num piscar de olhos, ela sumiu. Não houve tempo de chamar, de correr atrás. Mal registrou sua silhueta e ela já havia desaparecido.
Empurrou Eduardo com uma frieza cortante, afastou a cadeira e virou-se, o rosto impassível, embora por dentro estivesse em chamas.
— Escute bem, Eduardo, só vou dizer uma vez! — vociferou, o dedo em riste. — Nunca, mas nunca mais faça uma brincadeira dessas! Estamos entendidos?
O grito ecoou pelo salão. — Quando a raiva tomava conta de Ágata, sua voz explodia sem controle. — Os funcionários mais próximos, ao perceberem o tom alterado, fingiram não notar nada e seguiram com seus afazeres, mantendo uma distância segura. — Já seu pai, que retornava da estufa com fios de macarrão prontos para o corte, parou, preocupado. — Conhecia bem o sangue italiano da filha, sabia que ela era capaz de criar um escândalo em público sem motivo aparente, falando alto, como era costumeiro em sua família siciliana. — Decidiu ficar por perto, caso precisasse acalmar a filha, mas Ágata o queria longe dali, para que não ouvisse o que viria a seguir.
— Qual foi, bombom... — Eduardo tentou segurar suas mãos.
Foi o estopim. — Ágata puxou-as bruscamente e explodiu:
— Não ouse me tocar! Não ouse me chamar com essa intimidade! Eu não te dei esse direito! Só minha família e meus amigos próximos podem me chamar assim, e você não é nenhum dos dois!
As palavras saíram mais altas do que o necessário, mas ela não sentiu constrangimento algum. — Pelo contrário, aquilo lhe deu ainda mais força para colocar Eduardo no lugar dele. — Detestava ser tocada sem permissão — uma mania irritante de certos homens, como se as mulheres gostassem desse tipo de abuso.
— O que foi que eu fiz, Ágata? Por que está me tratando assim, como se eu fosse um estranho? — Eduardo parecia perdido, entre o ofendido e o confuso.
Na cabeça dela, um filme se repetia, rebobinando sempre na mesma cena: os olhos de Marcela encarando-a. — E não havia como desfazer o que ela pensava ter visto. — Tampouco sabia onde encontrá-la.
Ágata andava de um lado para o outro, tentando conter a raiva.
— O desgraçado ainda pergunta! — ironizou, virando-se para Gorete. — Olha só, Gorete, o infeliz ainda me pergunta, com a cara mais lavada: "O que foi que eu fiz?".
Pôs as mãos na cintura e balançou o corpo, cheia de deboche.
— Eu te falei que não rola nada entre a gente, que foi só aquela vez. Aquele beijo não significou nada. Eu não tenho sentimento nenhum por você além de amizade, e agora começo a me arrepender de ter te dado esse privilégio.
— Estou te desconhecendo, Ágata. Você nunca foi assim — rebateu Eduardo, com um olhar que parecia de namorado incompreendido.
— Claro que está me desconhecendo. Sabe por quê? Porque nunca me conheceu de verdade! Se conhecesse, não chegaria me agarrando desse jeito, querendo me beijar! Quem você pensa que é? Aliás, quem você pensa que eu sou, para achar que pode chegar assim? Isso não se faz, principalmente porque eu não sou sua namorada, como anda dizendo por aí!
Eduardo pareceu finalmente entender o motivo de tanta revolta.
— Está falando da foto no Instagram? Aquilo foi só uma brincadeira. Eu sei que não somos namorados ainda. Não precisa ficar assim.
— Não somos e nunca seremos, pode acreditar! Onde eu namoraria um cretino como você?
Gorete quase o fulminou com o olhar. — Ele devia ser muito descarado ou muito burro para não perceber a gravidade do que fizera.
— Esse tipo de brincadeira não se faz, Eduardo — rebateu Gorete, sem conseguir mais ficar calada. — A Ágata nem sabia que a foto dela estava sendo exposta nas redes sociais. Isso é crime, pra não dizer assédio. A palavra é pesada, mas a situação é essa. Nós te conhecemos, mas para a Justiça isso é assédio.
— Posso saber do que ela está falando, meu rapaz? — Gregório interveio, sério.
Ágata engoliu a raiva, tentando manter a calma.
Eduardo se atrapalhou na explicação, sem saber como dizer que postou uma foto dele quase a beijando, com a legenda “minha linda namorada”, sem seu consentimento.
— Eu fiz uma brincadeira inocente, coloquei uma foto minha e da Ágata no Instagram, e sua filha não gostou. Mas eu juro, senhor, que não tive intenção de magoá-la.
— Não envolva meu pai nos seus rolos, Eduardo.
— Mas, filha, desde quando postar uma foto é algo de outro mundo? Vocês jovens postam tudo — disse Gregório, com uma compreensão que a fez sentir um leve arrependimento por ter gritado tão alto. — Mas ela era assim mesmo, impulsiva.
— Não foi nada não, pai. Pode ir trabalhar. Eu resolvo aqui com o conquistador de araque — respondeu, esperando que ele voltasse aos seus afazeres. — Não queria preocupá-lo, nem afetar sua boa relação com Eduardo, a quem tratava como um sobrinho. — Seu pai zangado era bem pior que ela.
Já Gorete, com o pavio curto, explodiu:
— Eu não vou ficar calada ouvindo isso. Sabe o que ele fez, seu Gregório?
Ágata tentou segurar seu braço, pedindo silêncio, mas a amiga se esquivou e jogou a merd* no ventilador:
— Estou esperando que alguém me explique — insistiu Gregório.
— Ele postou uma foto da Ágata dizendo que eram namorados. Todo mundo curtiu. Mas a Ágata gosta de outra pessoa! — revelou Gorete, sem filtro.
Todos se viraram para Ágata, que ficou sem chão.
— Gorete, mulher! — exclamou, desesperada. — Não é nada disso, papai... Ou melhor, é quase isso. É complicado, pai.
— Há dias percebo você diferente, sempre olhando pra rua, perdida em pensamentos. — Isso só acontece quando estamos apaixonados. — Quando estiver pronta, meu amor, vamos sentar aqui nessa mesa, abrir aquele vinho antigo da Itália e você vai me contar quem foi o sortudo que ganhou seu coração.
Gregório sorriu e piscou o olho em cumplicidade, afastando-se sem pressa. — Ágata ficou olhando-o partir, com um nó na garganta. — Como dizer que não era “ele”, e sim “ela”, quem havia ganhado seu coração? — E o pior: nem sabia quem exatamente era aquela mulher, nem onde encontrá-la.
Quando Gregório já estava na estufa, ela voltou-se para Eduardo:
— Eu quero que apague a postagem que fez usando minha foto sem minha permissão. — E nunca mais se atreva a me agarrar. — Somos apenas conhecidos, no máximo colegas. — Apague agora, na minha frente.
— Quem é o cara, Ágata? — Pela primeira vez, Eduardo pareceu compreender.
— Não é da sua conta. Eu não te devo explicação. Apague as fotos agora.
Seu rosto queimava de raiva. — Eduardo, acuado, sentou-se. — Ela e Gorete o cercaram enquanto ele abria o Instagram e rolava a tela em busca da postagem. — Já estava apagando quando um comentário recente chamou a atenção dela.
— Espera! — pediu Ágata, apontando para o comentário. — Continuam comentando e compartilhando, veja isso.
“Parabéns, Dudu, sua namorada é linda”, dizia um dos comentários. — A pessoa que comentou aparecia de costas, e a ponta do cabo de um revólver saltava da calça. — Mas o que mais chamou sua atenção foi o jeito como o cabelo estava preso em um rabo de cavalo alto. — Aquele corpo lembrava o de Marcela.
— É minha irmã. Ela mora no Rio de Janeiro. Me chama assim desde pequeno. Vou ligar pra ela e dizer a verdade — explicou Eduardo, visivelmente ressentido pelas agressões verbais daquela a quem queria ser seu namorado. — Ágata nada falou, mas ficou decepcionada com a revelação de que a mulher era sua irmã, a esperança de reencontrar Marcela evaporou.
Eduardo apagou a postagem, escreveu um depoimento explicando o ocorrido e pedindo desculpas, enviando a todos que haviam compartilhado. — As respostas começaram a pipocar imediatamente.
— Satisfeita agora? — questionou, irritado, como se fosse a vítima.
— Falta a sua irmã — rebateu Ágata, seca.
Eduardo a encarou, relutante, mas diante da insistência, procurou o Instagram da irmã e compartilhou o pedido de desculpas. — Na hora, Ágata viu que a irmã estivera online há poucos minutos e memorizou o nome da conta.
— Prontinho, madame. Mais alguma coisa? — ironizou.
— Sim. Se quiser paz e sossego, não brinque comigo desse jeito. Vem, Gorete. Precisamos conversar. Quero te mostrar uma coisa.
Ágata seguiu na frente. — Gorete a acompanhou, mas antes sussurrou para Eduardo:
— Babaca! Se fosse eu, já tinha dado parte de você seu assediador barato.
— Eu gosto dela, Gorete, de verdade. Vou tentar conquistá-la. Essa zanga passa.
— Subiu de nível! Agora é babaca, burro e cego. Ela está apaixonada por outro. Você não tem chance. Perdeu, playboy.
Os funcionários o encaravam em silêncio. — Eduardo sorriu sem graça e saiu, desconfiado.
No instante em que deixou o centro urbano, Marcela se livrou do inferno que era o trânsito da cidade grande e permitiu que a parte "máquina" de seu corpo assumisse o comando. A moto preta e vermelha deslizava no asfalto, ultrapassando os limites de velocidade permitidos em área urbana – mas, há muito, ela já havia saído da cidade.
A pista larga da CE-090 estava sempre deserta naquele horário. Por ser fim de tarde em uma estrada costeira, o fluxo de carros era mínimo, quase nulo, bem diferente dos fins de semana e feriados, quando, além do volume exagerado de famílias saindo da cidade, sempre havia pequenas colisões. Na maioria das vezes, apenas um leve arranhão no carro da frente, mas o suficiente para paralisar o trânsito por horas, estendendo as filas por quilômetros.
Marcela sempre gostou de velocidade. Carros, motos, barcos, aviões – qualquer coisa que se movesse. Não foi surpresa quando escolheu sua profissão, nem ter optado por ser motorista de carro ou moto. Sempre preferiu as motos pela praticidade. Subir e descer morros exigia agilidade, e isso ela tinha de sobra. Pilotava rápido; quanto mais acelerava, mais vontade tinha. A pista onde estava era próxima ao mar, e o vento trazia muita areia para o asfalto, tornando-o escorregadio para quem viajava em duas rodas. Por mais que a adrenalina pedisse mais velocidade, ela achou mais seguro diminuir.
Fim do capítulo
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