Capitulo 12
CAPÍTULO DOZE
Leleco puxava a fiação do monitor e do DVR, guardando tudo na bolsa de ferramentas que jazia no chão. Jacinto, com uma lata de massa corrida e uma espátula, já se preparava para selar a fissura na parede de onde o fio era removido.
Os três conversavam descontraídas coisas banais.
Alex acordou com o som das conversas e veio ver o que acontecia. Vestida com um pijama curto de coelhinho, descalça e com os cabelos curtinhos, quem a visse não diria ser uma garotinha doce. Ela me abraçou pela cintura, esfregando os olhos ainda sonolenta.
— Vá dormir mais um pouquinho, amor. Ainda são quase quatro da manhã, e ontem você dormiu tarde. Estamos quase acabando.
Mais ao fim do corredor, Jacinto selava os buracos na parede, ao ver Alex se esticou para o lado, falando alto.
— Venha me ajudar.
Pronto. Ele falou a palavra mágica. Alex correu, já totalmente desperta e sorrindo. O comentário de Jacinto, certamente sobre mim, fez com que ela olhasse em minha direção e concordasse com a cabeça.
— No resto da casa, as câmeras eram todas sem fio. Retirei todas. Terminando aqui, acabou. As malas já estão no carro. O contrato foi de seis meses, e no dia do vencimento um funcionário da imobiliária passará aqui para renovar ou encerrar. Nesse dia, eu estarei aqui", explicou Jacinto, finalizando seu serviço.
— Pois aqui também está pronto. Amanhã, passo para pintar a parede e ficarei de olho nas novidades. O RG está monitorando a rua com as câmeras de videomonitoramento da cidade.
— Marcela, você acha mesmo que o coronel é capaz de nos trair? Ele é quase seu tio, foi o melhor amigo do seu pai. Eu não sei...,— Leleco parou o que fazia e se virou, o rosto coberto pela poeira da parede.
— Em sã consciência, não acredito. Mas sei que qualquer telefone hoje em dia pode ter seus dados roubados. O que não falta é programa para isso. Ele pode ter uma pessoa de confiança e comentar algo, ou pode estar sendo seguido. E também tem o delegado transferido do Rio. Tudo isso me deixa de orelha em pé.
— Então vamos cuidar. Vou pedir ao meu superior para ser transferido por trinta dias para o Rio. Vou alegar que quero fazer um curso, e de lá monitoro o quartel onde você estava. Me passa o nome dos traficantes e dos policiais. Vamos bagunçar a vida deles.— ele limpou o rosto com a camisa.
— Vou te dar a cópia de um pendrive. Lá tenho tudo gravado. Cuidado, Leleco. Eles não são de brincadeira.
— Eu também não, amiga. — respondeu, balançando a camisa no ar para tirar a poeira antes de vesti-la novamente.
Eu sabia que ele não estava brincando e que, com o pendrive, começaria a enviar cópias para as pessoas certas, sem se expor. Quanto a isso, tinha total confiança nele. Só não pedi para fazer isso porque não queria envolvê-lo, mas já que a iniciativa partiu dele, fiquei muito contente.
Jacinto juntou as tralhas e jogou tudo no carrinho de mão. Alex varria o chão, tirando a sujeira. Minha filha, em certos momentos, parecia gente grande, não uma menina de quase dez anos. A pobreza endurece as crianças, as obriga a crescer. O medo, a fome, o abandono e os maus-tratos embrutecem. Eu queria encontrar um jeito de apagar essa parte cruel da vida dela, queria que ela aprendesse a ser apenas uma criança, sem medo ou preocupação, mas parecia que não estava conseguindo.
— Jacinto, você está explorando meu bebê! Vem cá, amor, deixa o Jacinto terminar.— Puxei Alex para um abraço, mas ela se recusou a largar o serviço e fugiu do meu carinho.
— Eu... quero... ajudar.
— É isso aí, garota! Não seja como sua mãe, que só sabe dar ordens e se meter no serviço dos outros.
Leleco bagunçou os cabelos curtinhos de Alex, que se abaixou rápido, mas não o suficiente.
Jacinto se afastou da dupla, tateando o bolso da calça. Tirou o celular e atendeu. Foram poucas palavras com a pessoa do outro lado da linha, logo desligou.
— Meu amigo da companhia de energia chegou. Está lá fora. Ele pediu dois mil pelo serviço. Me passe as câmeras, Leleco.
O marinheiro caminhou sério, mostrando o militar que era, longe do amigo afeminado dos momentos de descontração. Pegou uma caixa esquecida no canto da sala, abriu e examinou o conteúdo. Dentro, estavam duas câmeras, que entregou ao amigo. O outro saiu rápido.
Enquanto esperavam as câmeras serem instaladas nos altos postes de iluminação, Leleco pegou o carrinho de mão cheio de entulho, e fomos para o estacionamento aguardar. Ele deixou o carrinho de mão no canto da parede.
O carro da companhia elétrica estava parado há exatamente vinte minutos. Jacinto, usando roupas da companhia, subiu na escada em locais opostos da rua para instalar as câmeras em pontos inusitados, de forma que não pudessem ser vistas pelas pessoas que passavam por ali.
O trabalho durou pouco. Assim que desceu, ele conversou com o motorista do carro. Uma boa quantia em dinheiro passou para as mãos do motorista e amigo de Jacinto, que o aguardava trocar de roupa dentro do automóvel.
— Marcela, vou sair com meu amigo no carro. Vou descer duas quadras daqui e volto andando.
O carro dobrou a esquina, e fui com Leleco examinar o local onde as câmeras haviam sido instaladas. Realmente, estavam invisíveis para olhos curiosos.
O portão estava entreaberto, e do lado de dentro, Alex vestia roupas de frio para se proteger da baixa temperatura da madrugada. Ela aguardava sentada no batente da porta de entrada.
— Podemos ir, chefia. A casa está limpa e esterilizada, sem impressões digitais. Se aparecer um fantasma, não vai encontrar passagem de humanos por aqui.
Meu amigo era bom em apagar digitais. Antes de entrar na Marinha, foi auxiliar de papiloscopista na polícia. Poderia ter sido um grande profissional, mas o mar o chamou, e ele respondeu ao chamado.
Jacinto chegou suado e cansado. Ao entrar, curvou o corpo, apoiando as mãos no joelho para respirar.
Na parte aberta da casa, onde estavam os carros, nos despedimos.
—Vou sentir tanto a sua falta! Quanto tempo vai ficar no mar agora? — Perguntei, abraçando-o. Ele e Jacinto eram como irmãos para mim. Com eles, vivi tudo de importante e emocionante na minha vida. Leleco foi o amigo a quem contei quando beijei a primeira garota, aos treze anos, e das paixões adolescentes. Todo ano, me apaixonava por uma professora diferente. Jacinto conheci quando fomos designados a ser uma dupla no trabalho e passamos a defender a vida um do outro.
— Agora serão dois meses no mar, dois em terra, mas vou pedir para passar um mês no Rio de Janeiro, como te falei. Vou pedir minha transferência para terra. Quero fazer parte da vida da Alex, assim como fiz com a sua. — Me afastei rindo.
— Você parece uma tia velha falando assim, mas fico contente e ansiosa para ver você com mais frequência. E quanto a Alex, ela vai te explorar, sabia?
— E eu vou amar — Ele rodopiou Alex no ar, do jeitinho que ela adorava.
— Leleco, eu vou no seu carro, porque não posso chegar de moto com a Alex. Como eu explicaria que estava vindo do aeroporto de moto, com uma criança e as malas? Fica complicado. E você vai na minha moto com o Jacinto.
— Por mim, tá de boa, desde que eu vá na garupa. — Leleco era um exímio piloto de moto. Nos tempos de sex*, drogas e rock 'n' roll, nós dois participávamos de pegas, dando cavalo de pau nos arredores da cidade em plena madrugada. Quando fomos todos presos, a Mom se negou a pagar a fiança, já que éramos menores de idade, de família rica, com residência fixa e réus primários. Nossa pena foi: todo dia, durante um mês, às quatro da manhã, estar em frente à academia de polícia e participar de todos os exercícios que os policiais praticavam, e ter aulas de cidadania, o que foi bom. Abriu nossos olhos para a profissão que escolhemos.
Com quase um metro e oitenta, cabelos curtinhos tipo militar, malhado, corpo másculo, dono de uma boca sensual e um olhar de vagabunda, Leleco olhava fixo para a parte de baixo do pobre Jacinto, que não sabia para onde olhar. Jacinto era o tipo de homem que impõe respeito, muito sério. Talvez fosse a chegada dos quarenta anos que o fazia assim, em contraste aos trinta e poucos do amigo.
— Então vá a pé! Se for atrás de mim, vai querer me assediar.
Ele tapou os ouvidos de Alex enquanto respondia:
— Louca eu seria se tivesse a chance de passar a mão no gostosão aí e me fingisse de santa. Eu sou puta, amor, sou bem facinha, quase de graça!
— Lelecooo, minha filha está ouvindo! Vem, vamos embora! Filha, se despede do seu tio, ou melhor, da sua tia louca."
Alex abraçou o amigo, que considerava mais do que um tio. Leleco distribuiu beijos em seu rosto e cabelos. Em seguida, ela abraçou Jacinto, que, mais sério, deu apenas um beijo na testa dela.
Entramos no carro e seguimos em direção à minha casa. Já fazia tantos anos que não colocava os pés naquela casa. Ali vivi momentos mágicos ao lado do meu pai e momentos de terror quando ele foi assassinado.
Minha mãe e seu marido nos aguardavam em pé na porta de entrada. Demorei admirando seu semblante. Ela parecia mais velha, com um ar de aristocrata como a Miranda de “O Diabo Veste Prada”. Com o braço entrelaçado ao do marido, parecia estar feliz. A única coisa que me fazia engolir o padrasto era que ele a fazia feliz; dava para ver que os dois realmente se amavam na maneira como seus olhos brilhavam ao se olharem. De resto, ele era um escroto.
— Até que enfim encontrou o caminho de casa, minha filha, ela falou, indo ao meu encontro e me abraçando. Meus olhos ficaram cheios de lágrimas ao sentir seus braços me apertando. Eu não sabia que sentia tanta saudade de um abraço como esse que eu estava sentindo agora; não lembro quando foi a última vez. Minha mãe chorava, segurando meu rosto.
— Olha só você, tão linda. Está mais alta do que eu. Senti tanto sua falta!
Minha mãe me segurava, apertando meu rosto quase me sufocando.
— Eu também senti sua falta, mas eu tinha que cortar meu cordão umbilical. Agora estou aqui e não pretendo me afastar para muito longe. Me afastei um pouco, pegando a mão da Alex, que tinha ficado para trás. Ela segurava minha blusa como se tivesse medo que eu desaparecesse.
— Mãe, te apresento Alex, a razão dos meus dias serem mais coloridos.
Minha mãe sabia que eu estava adotando uma criança, mas a surpresa em seu olhar eu não conseguia ler. Não sabia o que ela pensava enquanto examinava Alex, que estava com as mãos frias de nervosismo.
— Eu pensei que seu filho fosse uma menina, e não um menino. Quantos anos ele tem? Sete, oito?
— Alex é uma menina, mãe. Seus cabelos estão cortados assim porque, no Rio, as crianças estão cortando assim.
— Pois você precisa colocar brincos nela, assim ela parece mais com um garoto.— Ela continuava examinando Alex, que, para minha surpresa e orgulho, sustentou o olhar, ainda que suas mãos frias e geladas mostrassem o quanto estava com medo.
É, parece que a mudança da minha querida mãe estava só na aparência física; por dentro, ela ainda continuava a mesma. Renato, meu padrasto, enfim se aproximou, fingindo estar feliz com meu retorno. Graças a Deus ele não quis me abraçar; uma das causas da minha ruptura com a família foi justamente por causa dele. No entanto, seu olhar carinhoso para Alex deu uma aliviada nas minhas defesas.
— Menino ou menina, não deixa de ser neto.—Ele tentou puxar Alex para um abraço, mas ela recuou automaticamente, voltando a se esconder atrás de mim.
— Ela está cansada e com sono. Depois, quando ela ficar mais confortável, vocês vão preferir essa versão encabulada e tímida, né, filha? Alex segurou forte em meu braço, buscando amparo. Eu a ergui e coloquei em meus braços, onde ela escondeu o rosto nos meus cabelos. Minha mãe olhava tudo com os olhos de quem está surpresa.
— Vamos entrar. Arrumei seu quarto; o da frente ficou para você decorar do jeito que quiser.
—Por enquanto, Alex vai dormir comigo. Com o tempo, a gente vê como fica. Não estava muito à vontade, me sentia uma estranha na casa. Não tinha mais certeza se fiz a coisa certa em vir para cá.
Subi as escadas que levam ao segundo piso, onde ficam os quartos, com minha mãe falando pelos cotovelos. Eu confesso que tinha saudade disso, de quando chegava da aula, suja e toda rasgada das brigas com os garotos ou dos jogos de interclasse. Ela falava, brigava e dava conselhos, sentada na minha cama, como fazia agora.
Mas tudo foi mudando à medida que os meninos sumiram e as meninas começaram a aparecer toda semana. Uma amiga vinha passar o fim de semana e eu quase não saía do quarto, até o dia em que minha mãe me flagrou nua em cima de outra garota.
Fim do capítulo
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