Capitulo 10
Capítulo Dez:
Marcela sentia a paranoia corroer sua alma, um medo constante de traição. Na polícia, ela sabia, que a menor falha de um oficial honesto podia ser usada por um superior inescrupuloso. Se a falta de sorte cair nas mãos de um chefe corrupto, o cerco se fechava: ou você se corrompia, ou era vítima de alguma armação. Ela própria já havia enfrentado inúmeras tentativas de sabotagem por ser abertamente lésbica, mas sempre se mantivera intocável. Sua conduta exemplar – trabalhar com honestidade, evitar envolvimento com menores ou mulheres casadas com policiais – e o fato de nunca ter se apegado a ninguém, garantiam que não houvesse "rabo preso" para chantagens. Além disso, era filha de um coronel da polícia que morreu em combate, o que lhe conferia certa blindagem.
Mesmo assim, a ameaça de emboscadas pairava, especialmente se descobrissem sua ligação com Alex. Foi por essa razão que ela destravou a arma e apertou o controle do portão. Escondida atrás de uma das seis pilastras de concreto que sustentavam a cobertura de telhas brancas na frente da casa, ela permaneceu protegida enquanto o portão subia lentamente. No instante em que avistou dois pares de pernas, e não apenas um como esperava, ela mirou, aguardando qualquer movimento suspeito. Jacinto, mais adiante e sempre em alerta, esperava a ordem para "passar fogo" em qualquer um que se movesse.
― ͢͢͢Jacinto, ― ela chamou, e ele se virou para olhá-la. "Fica bem próximo ao portão, ali no lado esquerdo. ― Apontou o local com o cano da arma em punho. O amigo se deslocou rapidamente, com passos silenciosos, pisando na grama para evitar qualquer ruído. Seus olhos estavam fixos no portão e na porta. Assim que assumiu seu posto, ele fez um gesto com o dedo, indicando que tudo estava em ordem.
― Pode falar, Leleco .― ela disse, colocando o fone no ouvido e retornando a ligação.
― Estou nas áreas, pode liberar a passagem, minha deusa rainha, ― a voz exagerada do amigo revelava sua natureza. Desde pequeno, ele demonstrava ser exatamente quem era, sem se importar com a opinião alheia.
Duas cabeças surgiram no campo de visão da dupla, que permanecia atenta, armas apontadas. Somente quando a mulher ouviu a voz limpa do amigo, sem o nervosismo de quem está sendo forçado a algo, ela soltou o ar dos pulmões, relaxando a tensão dos músculos.
― Calma, MONAAA! Aff! Quer matar essa bicha de susto, viada? Isso lá são modos de receber uma amiga de longas datas?― Leleco entrou rebol*ndo o quadril, como se desfilasse em uma passarela, os braços abertos em sinal de rendição.
― Eu não esperava que você trouxesse estranhos. O combinado era só você. Muito me admira que a Marinha aceite você afetado assim. Jacinto, devido a um beijo que deu no namorado no dia da formatura do boy, foi julgado, condenado a dois anos de suspensão e ainda pagou multa.
― Bicha, eu sou praticamente a esposa de todos os machos do submarino, como você acha que eles aguentam tanto tempo no mar?
Era impossível levar o amigo a sério sem soltar uma gargalhada diante de seus trejeitos afeminados. Sorriu, tentando disfarçar, e notou a sombra de um sorriso surgir nos lábios do rapaz que permanecia calado, aguardando o desenrolar da conversa. Seu olhar sério a advertia para não baixar a guarda; aquele homem tinha ares de quem guardava muitos segredos.
― Você pode ser expulso só por esse comentário infame.― ela perguntou, fazendo um gesto com a cabeça enquanto guardava os dois revólveres no coldre duplo.
― Sabia que, armada assim e com essa pose de policial fodona, eu sou bem capaz de me apaixonar?― a voz afetada e os trejeitos de Leleco a fizeram rir à vontade.
― Nem nascendo mil vezes você vai querer trans*r com mulher. E o que você quer, minha linda, eu não carrego entre minhas pernas. ― Ela passou a mão sobre a área que descrevia, e Jacinto e o estranho fingiram olhar para a grama.
― Cruel! Você é uma mona cruel desde pequena. Esse aqui..., Leleco gesticulou para o rapaz que continuava calado. ...Esse é o cara que vai acelerar a confecção da documentação. Já está tudo pronto, só falta acrescentar os dados e a foto. Tudo dentro da lei. No alto escalão, eles não vão ter como rastrear nenhuma das duas. Meu amigo aqui veio no lugar do Cabeça de Cobra, amigo do Jacinto, que não pôde vir.
O estranho mostrava uma valise preta, tipo maleta de empresário. Marcela conhecia Leleco desde muito pequena, estudaram juntos, começaram a descobrir suas sexualidades na mesma época e sempre foram confidentes.
― Abra a maleta.
O homem abriu lentamente a valise, deixando-a entreaberta. Dentro, havia um notebook e outros documentos que não estavam visíveis devido à distância.
― Está legal. Pode ficar à vontade. E desculpe os maus modos. O Jacinto vai mostrar onde tem tomadas e arranjar mesa e cadeira para você trabalhar com tranquilidade. Fiquem à vontade, vou buscar minha filha.
Sem abraços ou apertos de mãos. Marcela estava com pressa para resolver tudo e poder andar na rua livremente. Os traficantes procuravam uma mulher. A polícia, uma garota. A foto do rosto de sua filha tinha sido espalhada entre alguns policiais envolvidos com o tráfico do Rio de Janeiro. Todos conheciam o rostinho da garotinha de cabelo espichado e sujo, vestidinho floral e pés descalços. Essa era a única foto que a mãe biológica, num momento de lucidez, tirou com seu celular, que foi tomado pelo Magnata, o chefão da boca de fumo, momentos antes do confronto.
Passou rápido pela cozinha a caminho do quarto. Dona Raimunda e sua neta conversavam, alheias a tudo que acontecia no entorno da casa, o que a deixava aliviada. Não seria bom para seus planos que houvesse testemunhas de que ela andava armada dentro de casa com uma criança.
― Dona Raimunda, desculpa eu não lembrar o nome da sua neta. É que hoje foi um dia corrido. ― Na verdade, ela nunca lembrava o nome das diaristas; todo dia eram pessoas diferentes que a agência enviava. ― Enfim, estou com visitas. Vamos ensaiar uma peça de teatro.― Mentiu descaradamente com um sorriso que parecia ingenuou, não tinha como duvidar. ― Por isso, estão livres pelo resto do dia.
Não demorou mais do que o necessário dando explicação. Aproveitou para pedir o transporte por aplicativo, deixando a corrida paga, a senhora agradeceu e começou a arrumar suas coisas junto a neta. Marcela foi para o quarto. No momento em que a porta foi aberta, Alex veio ao seu encontro com um olhar preocupado.
O quarto era todo mobiliado para um adulto, com um monitor de TV na mesa ao lado do computador ligado, mostrando tudo que acontecia lá fora, nas proximidades da piscina. Havia também outras imagens de cantos específicos da casa. Toda a segurança do imóvel havia sido instalada pela própria mulher, que entendia muito bem de espionagem.
― Está tudo sob controle, foi só um susto. O amigo, aquele que falei que vinha cortar seu cabelo, apareceu com um homem que eu não conhecia, por isso mandei você entrar. Agora eles estão lá fora esperando para cortar seus cabelos. Vamos?
Ela pegou na mão fria de Alex e saíram. Percebeu a filha examinando tudo quando chegaram na frente da casa. Sentiu que Alex respirou aliviada ao ver Jacinto sentado, mexendo no celular.
― Então é essa moça que vai cortar o cabelo para ficar igual a um rapaz? Realmente, meu jovem, suas madeixas estão muito grandes, parece até uma garotinha. ― Leleco brincou quando as viu. Ele já estava com tudo pronto: uma cadeira vinda da sala de jantar ao lado, pentes, tesouras, canivetes, uma bata infantil e um espelho pequeno para Alex observar sua imagem durante o corte.
― Leleco, não corta o cabelo da minha filha igual aos cortes da Marinha. Eu não quero corte militar, quero um desses cortes modernos que os garotos usam, mas que também sirva para meninas. Se cortar errado, eu te capo.
― Ai, que delícia, minha perereca vai ficar lisinha. ― Leleco colocou as duas mãos no peito e revirou os olhos, dramático. Alex olhava sem entender nada.
― Eu vou fazer um relato na corregedoria, vou entregar a seu superior e dizer que ele casou com uma bicha.
― Vai, X9, deixa eu trabalhar em paz. Vá encher o saco do RG ali, vá entregar sua documentação e me deixe fazer minha magia nessa coisinha linda.
Marcela caminhou olhando para trás, notando o amigo resmungando algo engraçado. Alex ria e balançava a cabeça, confirmando que ele, com certeza, estava falando de seu humor e sua maneira grosseira.
― Aqui está meu RG.― Ela colocou o documento em cima da mesa.
― Qual vai ser o nome do seu filho?― o homem olhava o documento sem levantar a cabeça enquanto falava.
― Alexsandra Lee Almeida Fernandes, nascida em 12/07/2016. Aqui está o CPF dela. Faça o RG conforme o registro de nascimento, sex* feminino. Eu quero que ela mude só a aparência."
― Essa data é a mesma que ela nasceu?
O ano, sim. O dia e o mês, não. Segundo a mulher que a pariu, Alex nasceu em 2015. Quando estava lúcida, falava um dia e mês, e quando estava drogada falava outra data completamente diferente. Mas a data é o dia em que a encontrei quase morta atrás de uma lata de lixo, tentando fugir do frio. Nesse dia, ela renasceu nos meus braços.
Sempre que falava sobre isso, as lembranças voltavam fortes e doloridas, como naquela madrugada em que ouviu um choro fraquinho. Pensou que fosse um filhote de animal com fome, mas quando chegou mais perto e encontrou o local de onde vinha o som, viu Alex morrendo. De fome, frio e abandono. Sentiu o frio na pele invadir seus ossos, tal qual naquela madrugada em que Jacinto a ajudou a colocá-la dentro de seu uniforme noturno para mantê-la aquecida enquanto o socorro chegava.
Alex não se mexia. Seus lábios estavam roxos, quase não respirava. Quando a ambulância chegou, a mulher teve que deitar na maca, e colocaram Alex sobre ela, cobrindo-as com vários cobertores para tentar aquecê-la. Desde então, estavam lutando para sobreviver.
― Ótimo, vai ser essa data mesmo. Assim que o Leleco terminar de cortar o cabelo da sua filha, vamos tirar a foto. Amanhã bem cedo estará tudo em suas mãos.
A voz do rapaz chamou a mulher de volta à realidade, enquanto ela registrava no celular particular cada passo da transformação. Quando terminou, salvou na pasta e trancou com a digital. Leleco tirou a batinha de Alex, que passava a mão no pescoço, impaciente com os fios de cabelo espetando. A menina ficou irreconhecível. Mesmo usando shortinho e blusinha unissex, parecia realmente um menino de nove anos.
Alex olhava para o espelho, tentando reconhecer a imagem refletida. Virou para onde a mulher permanecia sentada e sorriu satisfeita, correndo ao seu encontro.
― Vai ser só por uns tempos, minha princesa. Só para você poder ter uma vida normal, ir ao médico, estudar, brincar... Ser uma criança como outra qualquer. Assim que eliminarmos as pessoas que estão na nossa cola, você volta a ser você mesma. Combinado?
Alex fez um gesto com a cabeça para dizer que estava tudo bem, ao mesmo tempo, em que mostrava o formulário onde estava escrito seu nome e data de nascimento. Nem ela mesma sabia a data do seu aniversário.
Fim do capítulo
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