Capitulo 8
CAPÍTULO OITO
MARCELA
Marcela parou a moto no acostamento. O sol escaldante castigava o asfalto da Avenida Washington Soares, tremular como brasas vivas. O trânsito parecia um organismo caótico: buzinas, freadas bruscas e manobras arriscadas e desesperadas de quem queria ganhar segundos. Motociclistas apressados disputando cada palmo das seis pistas, serpenteavam entre os carros ignorando faixas ou placas como se fossem meros enfeite urbano.
Ela observou aquilo com um misto de irritação e compreensão, conhecia bem aquela pressa. A avenida ladeada de escolas e universidades, além de shoppings ― garantia que a pressa dominasse quem ia ou voltava do trabalho e dos centros acadêmicos.
Alguns olhares curiosos pousaram nela quando desligou o motor. Quem passava devia pensar que a moto tinha quebrado. Marcela retirou a chave, pendurou-a no pescoço e se curvou sobre o tanque, tensa, procurando o celular que vibrava sem parar. Sentia o latejar do sangue nas têmporas, aquela chamada era importante, a pessoa do outro lado da linha sempre tinha novidades.
Com um movimento ágil, abriu o zíper na lateral da perna esquerda e desabotoou o coldre, onde guardava o aparelho. Ela costumava usar um coldre duplo, um em cada coxa, para o celular e a faca tática que herdou do pai, com a casa da que sua mãe biológica ocupava, e outras propriedades. Deslizou a mão pela outra perna, sentindo o cabo de sua pistola por baixo da roupa, agradecendo aos céus por Ágata não ter percebido que estava armada.
Destravou o celular com a senha. O nome na tela lhe causou um nó no estômago. Problemas.
―Diga, estou ouvindo. ― A voz saiu firme.
A resposta veio grave, masculina, familiar. Um primo distante, mas próximo o suficiente para saber mais do que devia. Sua fonte.
―Essa semana chega um delegado transferido do Rio para assumir a delegacia de Caucaia.―
Enquanto ele falava sobre o delegado vindo do Rio, o pensamento de Marcela disparava. Um delegado transferido para Caucaia? Cidade pequena demais para alguém do Rio. Isso fede a coisa grande. Se vieram atrás de mim…
―Não estou gostando nada disso. Caucaia é logo ali. O que aconteceu com o delegado antigo?
A cada frase, o suor descia pelas costas, grudando a blusa na pele. Ela ajeitou-se na moto, tentando parecer natural para quem passava, mas a sensação era clara: estava exposta, vulnerável. Um alvo fácil.
―Se aposentou. Não se preocupe. Lá no Rio, estão procurando uma garota que desapareceu e uma policial que pode estar envolvida na prisão de dois traficantes. Ninguém está associando uma coisa à outra.
―Por enquanto― rebateu inquieta― Eles podem cruzar o local de nascimento das PFEMs e descobrir que a policial que sumiu e a que tirou licença são da mesma cidade. Preciso desligar, estou no meio da rua, os carros estão passando direto. Sou um alvo fácil.
―Não se preocupe. Puxei umas fichas, andei sondando meu pessoal. Ninguém sabe que você morou na Baixada Fluminense, na favela da Coreia. Ninguém sabe que você é policial. E no batalhão, ninguém sabe do seu envolvimento com a mãe da garota. A única coisa que a corporação sabe é que você estava na fila da adoção de uma criança que salvou a vida e que ficou sob sua custódia. Isso é tudo.”
―O processo já foi concluído. Ela é minha filha legítima. Inclusive, já entrei com os papéis para o pedido de licença-maternidade.
―Parabéns, garota. Seu pai ficaria todo contente.
―Eu sei.― Falar do pai sempre lhe trazia saudades. O velho Marcelo não lhe daria sossego como mãe, carregando Alex para todo lado, assim como fez com ela quando criança. Um sorriso brincou em seus lábios com a imagem.
―Vou enviar por e-mail os documentos para você matricular sua filha no colégio militar. Pode escolher entre o colégio da polícia ou dos bombeiros. E vou mandar junto uma carta para ser entregue ao delegado do Instituto de Identificação para tirar o RG dela.
―Não se preocupe. Este ano ela continua estudando comigo. Ano que vem eu a matriculo. Já estamos quase na metade do ano. Mais alguma coisa que queira me contar?― Não confio em expor Alex sem ter certeza de que é seguro.”
―Por enquanto, as novidades são essas. Ah, quase esqueci. Continua naquela casa que te indiquei?
―Sim.
―Ótimo, fique por lá mesmo. O Jacinto ainda trabalha com você?
―Sempre. Somos unha e cutícula.
―Uma pena que ele tenha sido julgado e condenado.
―Não quero julgar os atos do amigo. Dois anos passam logo.― disse com um suspiro resignado. Jamais concordaria com a sentença da juíza que condenara Jacinto por beijar o namorado na formatura da polícia. Os dois foram condenados, obrigando-os a se separar.
―Eu sei disso, mas ele mostrou o rosto. Isso prova que tem culhões na hora certa. Preferiu a farda.
―Senhor, a gente sabe que não foi bem isso. Mais uma vez, eu repito: estou parada no meio da rua.
― Bem.. As novidades eram só essas, qualquer coisa me chame.
Guardou o celular, respirou fundo e ligou a moto. O ronco do motor era quase um escudo contra os pensamentos que a perseguiam. Mas eles estavam lá, insistentes: delegado do Rio, tráfico, policiais sujos, Alex. Se descobrirem, estamos perdidas, o medo de ser pega numa emboscada só aumentava. Teria que ser rápida, os planos haviam mudado.
A estrada levou-a até o colégio. O muro branco, alto, imponente, parecia erguer-se como um desafio. Câmeras vigiavam cada ângulo, guaritas em cada esquina. Segurança de ferro, digna da elite que estudava ali.
Marcela se aproximou da entrada. Na fachada, em letras grandes, lia-se: Colégio Montserrat Fernandes. Desceu da moto e se apresentou.
―Bom dia, eu gostaria de falar com Dona Montserrat.― ela falou pelo interfone. Um senhor, na faixa dos trinta e poucos anos, saiu da guarita e veio até um portão pequeno, ao lado do principal. Marcela aproveitou para entregar sua identidade. O homem olhou, digitou algo no tablet, e momentos depois devolveu o documento, abrindo o portão.
―Pode entrar. Dona Montserrat está no final do corredor, a última sala é a dela. Quando entrar no saguão, siga para o lado esquerdo, não tem erro. Não se preocupe com a moto, vou mandar colocar no estacionamento aqui em frente.― Ele apontou para o local onde a moto ficaria.
Marcela entrou, um misto de nervosismo e ansiedade a dominando. Mesmo tendo contato por telefone ou videochamada, era a primeira vez que se viam cara a cara em dois longos anos.
A entrada era repleta de plantas e um jardim com roseiras de dar inveja. O edifício em si parecia mais uma universidade, com tantas salas espalhadas por quatro andares, todas iguais. No saguão, seus olhos percorreram o ambiente. Todos os andares eram em formato de cubo, deixando um pátio central aberto, claro, luminoso, arejado e com cheiro de rosas. Dentro do colégio, havia jardins espalhados, pequenos espaços com cadeiras, pufes e tomadas para celular. Os funcionários passavam apressados, sem dar muita importância à sua presença. Todos tinham pressa. Marcela ouviu barulho de panelas e pratos mais distantes, alguém cantava uma música que não conseguiu identificar. Chegou na última porta e deu duas batidas, quando ia falar com ela, sempre batia três vezes em sua porta.
―Pode entrar, Carlos, e deixe os formulários aí. Depois do almoço eu reviso tudo.
A sala, ampla e aconchegante, mas parecia um flat. Paredes brancas, janelas grandes abertas, as cortinas vermelhas balançavam ao sabor do vento. No canto, uma mesa, um minifogão elétrico e depósitos de mantimentos guardados, além de um frigobar. Marcela tinha certeza de que em algum lugar daquela sala havia um banheiro todo equipado.
Ela estava linda, com seus cabelos curtos e grisalhos, e óculos de grau, um retrato fiel de como seu pai estaria se fosse vivo. A maquiagem pesada, talvez para durar o dia todo. Sempre foi uma mulher elegante e vaidosa. De cabeça baixa, examinava uma pasta, e ao seu lado havia uma pilha delas. Com certeza, por trás de toda aquela elegância e seu ar de rainha, ela estava com os pés descalços debaixo da mesa.
―Your blessing, Mom”, a voz de Marcela falhou com a emoção.
Ao ouvir a voz, ela tirou os olhos da pasta e a encarou, espantada por segundos, antes de se levantar e correr em sua direção, atrapalhando-se nos pés com o tapete. Em seguida, a abraçou forte.
―My God bless you, my love! Quantas saudades eu tinha de você, meu amor. Chegou quando? Como anda o processo de adoção? Já posso dizer que tenho uma neta? Lembro que, na pandemia, quando fomos conhecê-la, ela estava sempre ao seu lado agarrada com medo de te soltar.”
A senhora puxou Marcela e se sentaram de uma vez no sofá vermelho no canto da sala, que Marcela suspeitava ser usado por ela para dormir quando estivesse cansada.
―Calma, Mamãe, uma pergunta por vez. Sua neta é uma linda menina de nove anos, se chama Alexsanda Lee, e quero que ela estude aqui com você.
―Estamos na metade do ano. Você acha que ela acompanha a turma? Tenho reservado quatro salas para cada série do Fundamental I, e o restante é dividido entre o Fundamental II e o Ensino Médio.”
―Ela acompanha. Eu mesma a ensinei.―respondeu Marcela antes de jogar o peso da verdade sobre seus ombros. ―Mamãe, eu e minha filha estamos fugindo.
Sua segunda mãe a olhou com aqueles olhos protetores, sem julgamento, motivo pelo qual Marcela a escolheu para ser sua mãe, além de ser sua tia amada e sua madrinha.
―Eu sabia… Meu coração avisou no dia em que me pediu para alugar a casa toda mobiliada e perguntou o nome da agência de emprego. Eu sabia que algo estava errado e que você não podia me contar a verdade. Por isso coloquei o Anderson a seu dispor. Além de sermos casados há mais de quarenta anos, ele é o melhor advogado que conheço e te ama como uma filha.
―Eu contei a ele quase tudo e pedi para não contar a você, para não deixá-la preocupada.
―Eu sei, minha filha. Você sempre foi assim, guarda suas dores e medos só para você.
―Mas, desta vez, a coisa é mais séria. ―Ela a conhecia melhor do que ninguém.
―Sou toda ouvidos.
―Alex testemunhou um crime praticado por policiais do alto escalão e traficantes juntos. Não sei o que ela viu, mas foi grave. Ela ficou sem falar por causa do trauma e, agora, começou a pronunciar poucas palavras. A mãe biológica a entregou ao dono do morro, alegando que ela era filha dele. Eu e Jacinto a resgatamos da casa onde estava vivendo em cárcere privado, aguardando o chefão decidir o que fariam com ela.”
―Pois venham morar comigo. Na nossa casa, estarão seguras.
―Não, Mom. No começo, até pensei nessa ideia, mas acontece que já sou adulta. Tenho que me resolver com Dona Salete, afinal, foi ela que me pariu, é minha mãe também. Vou fazer essa tentativa. Se não der certo, vou morar no sítio que comprei em Cumbuco.”
―Nada disso! Quero a senhora perto dos meus olhos. Quero minha neta correndo solta com os primos na fazenda, bebendo água suja e comendo fruta no pé.
―Minhas melhores lembranças são dessa época. Estou com saudades das gêmeas.
As primas (e irmãs) de Marcela eram mais velhas do que ela. Quando Marcela passou a morar definitivamente na casa delas, já estavam na faculdade, mas a receberam de braços abertos, sempre foi a irmã caçula. Na época, Marcela tinha catorze anos e estava assustada com a enxurrada de sentimentos novos e a descoberta de ser lésbica. As gêmeas Evy e Ivy — a primeira tinha um casal de filhos, a segunda dois meninos e uma menina, todos entre 17 e 12 anos —, suas "irmãs" na época da faculdade, eram descoladas e loucas, aceitaram de boa sua sexualidade, até a carregavam para as festas escondido da mãe, tudo isso e o amor que sua tia tinha por ela ajudou a passar pelo luto que quase a deixou louca.
―Agora, pode me contar por que sua roupa está suja de sangue?
Sem querer, Marcela olhou a blusa amarrada na cintura, ainda com manchas de sangue, e sorriu descontraída ao lembrar do acontecido.
―Eu conheci uma garota.” Mom gargalhou.
―Só podia ser você! Minha filha conhece uma garota e chega em casa nove anos depois de sair para trabalhar, com uma mancha de sangue e um sorriso escancarado! Venha, vamos almoçar e você me conta sobre essa garota. Anderson ia adorar ouvir.
Mom calçou os sapatos e saíram da sala. Assim que a sirene tocou, uma avalanche de crianças saiu, igual uma manada, de dentro das salas em direção ao refeitório.
―Parece uma manada, né? Mas essa é a melhor fase na vida deles, aqui tudo pode e tudo é permitido, menos sex*, droga e bebidas.
―Então não é tudo, a melhor parte você proíbe.
Ela gargalhou alto, chamando a atenção de algumas adolescentes que passaram examinando Marcela da cabeça aos pés.
‛Pelo que vejo, o sex* feminino parece que ainda fica preso em suas teias como antigamente.
Agora foi a vez de Marcela rir.
―Filha, agora falando sério, saia de onde você está morando quanto antes. Eu não confio cem por cento na bondade do coronel. Ele tem muita gente por perto que pode te trair.
―Por isso que estou aqui. Ele está muito interessado que eu leve minha filha para estudar no colégio da polícia, já me enviou até a documentação. E, para completar, veio um delegado transferido do Rio para cá.
― Pois saia ainda hoje. Vá para a casa da Salete e deixe Alex vir para cá. Aqui ninguém encosta nela.
―Mamãe, o Jacinto veio comigo. Está respondendo a um processo e foi afastado da corporação.
―Faz tempo que não vejo o Jacinto. Mande ele ficar aqui também no colégio, não vai faltar trabalho para ele, quando os pais souberem que ele é da polícia vai chover oferta de trabalho. Aqui estuda muito aluno que os pais são empresários ricos e que necessitam de segurança.
Entraram no refeitório, pegaram as bandejas e foram para a fila. Ninguém parecia surpreso por ver a dona do colégio ali. Sua mãe sempre dizia: "Se meu funcionário come uma comida, eu tenho que comer também, para saber se ele está sendo bem alimentado."
Marcela ficou no colégio até depois do almoço. Quando se despediu, prometeu não sumir.
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Fim do capítulo
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