Capitulo 64
Cap 63 - Flávia
Eu estava na aula da faculdade, mas como sempre com a cabeça em qualquer outro lugar e nesse momento estava no jantar que eu havia proposto para a Bia. Quero que seja um momento legal para nós duas. Vamos em uma pizzaria artesanal na Mooca, bairro italiano de São Paulo. Nós duas adoramos pizza, é um role barato e acredito que depois da tensão de ontem, causada pelo Ricardo, vamos conseguir nos divertir um pouco.
Eu vim para a aula por dois motivos bem simples, um é que estou quase quase estourando em faltas, não quero perder o último semestre por bobagem pouca. E o outro é que hoje foi a entrega do último estudo de caso, que vale 50% da nota do semestre. Agora vou ter uma semana para estudar o caso, confeccionar as peças, dar andamento e entregar. Um tempo curto, mas viável.
Assim que a turma foi liberada, eu me despedi da Ana Lu e sai rapidinho do campus. Sabem que a faculdade é pertinho de casa, então fui andando rápido. Eu estava bem ansiosa para nosso jantar. Cheguei em casa e assim que abri a porta senti cheiro de banho, mas confesso que desde que comecei a namorar a Bia, sinto paz toda vez que chego em casa.
- Linda, cheguei.
- Amor - falou do quarto dela - já vou. Não posso parar aqui.
- Tudo bem, vou tomar um banho rapidinho e já vamos. Conseguimos sair em 20?
- 20 pronto - passei pelo quarto dela, vi que a porta estava fechada. Imaginei que não era para eu entrar. Então segui para meu quarto, deixei minha mochila no guarda roupa, e segui para um banho rápido. Aproveitei que iríamos sair e lavei o cabelo. Me enrolei em uma toalha e voltei rapidinho para o meu quarto.
O que vou vestir? Não vamos em um restaurante chique, nem tenho condições para isso, mas vamos sair, como se fosse um encontro, então quero ir arrumada. Meu cabelo não vai dar tempo de secar, então sei que ele vai no bem ondulado. Minha progressiva está vencida, meu cabelo está casa vez pegando mais o ondulado e bagunçado de origem. Lembrei da Bruna falando que gostava do meu cabelo quando eu deixava liso. Ri comigo mesmo de lembrar isso, sem contexto algum.
Roupa…. A Bia gosta quando visto camisa, então vamos de calça e camisa. Peguei uma calça bege que tenho, bem confortável e uma camisa preta, fresquinha que tenho. Claro que dobrei as mangas até o cotovelo e de calçado um tênis marrom que tenho. Está ótimo. O cabelo meti um coque mesmo. Não passei maquiagem, não é algo meu e eu não tenho mais idade ou saco para me forçar a algo por ninguém. Sendo assim, estou pronta.
- Bi, pronto?
- Rapidinho amor - ela saiu do quarto e como sempre, me encantei. O cabelo curtinho estava escovado, com a franja de lado, quase delicado. Mas era possível ver a ansiedade, a animação dela no olhar. Sei o quanto a Beatriz precisava de distrair. Estava com uma calça jeans e uma regata marrom, mas a regata tinha umas pregas, uma gola diferente, não sei explicar, mas encaixou muito bem nela. Acho que devo ter olhado ela tao profundamente que a Bia perguntou: Gostou?
- Está linda! - estiquei a mão, que foi prontamente preenchida pela dela, delicadamente puxei a Bia e aproximei nossos corpos - Hummm, que perfume gostoso - falei dando um cheiro em seu pescoço. Em seguida, não perdi a oportunidade de dar um beijo prolongado em seus lábios - Está linda!
- Você também amor. Linda e cuidadosa como sempre. Te amo! - pela segunda vez a Bia falou isso, acho que dessa vez não travei tanto, tentei sorrir. Não me forcei a responder, mas não travei.
- Pensei em irmos com a nossa moto, nós duas estamos de calça - comentei.
- Pode ser Fla. Nossa moto?
- Claro, se estamos juntas e amadurecendo nosso relacionamento, o que é meu é seu.
- Ah é?! Vou lembrar disso quando chegar a fatura do meu cartão de crédito.
- Aí não tenho nada a ver. Você e seus equipamentos de fotografia que se virem juntos - rimos, leve, sutil. Fechamos o apartamento e seguimos para a garagem. Minha CG usada e em bom estado estava nos esperando para a viagem até a Mooca.
- Tudo bem ser de moto?
- Claro, gosto da ideia de irmos de moto. Posso ir te abraçando e te bulinando até lá - Eu fiquei sem graça, mas sei que é um comentário real e verdadeiro - Quanto tempo até lá, mozi? - Bia me perguntou
- Com segurança acho que uns 15 minutos. Não é longe não.
- E com emoção? 5 minutos?
- Não tem a opção com emoção. No trânsito de São Paulo e com uma gostosa dessas na garupa, toda segurança é pouco - dei a resposta na mesma altura e ela ficou tímida, envergonhada, o rosto ficou visivelmente vermelho - Vem, coloca o capacete e vamos.
Fomos cortando a cidade, com calma e segurança, em uma velocidade tranquila. Desde os últimos acontecimentos eu dirijo olhando mais ainda no retrovisor, vendo se ninguém está me seguindo, ninguém querendo passar algum recado. Chegamos tranquilamente a pizzaria na mooca. Estacionei minha moto em uma rua lateral. Assim que descemos, já deu pra ver a muvuquinha na frente da pizzaria, sei que tem tempo de fila.
- Boa noite, coloca a gente na listagem, por favor - falei com a atendente enquanto segurava a mao da Bia.
- Nome?
- Flávia Albuquerque Silva
- Mesa para dois?
- Isso.
- Só aguardar, querem beber alguma coisa ou alguma entrada enquanto esperam?
- Eu quero uma cerveja sem álcool - a Bia pediu.
- Tá certo, vou providênciar.
- cerveja sem álcool Bi?
- Eu gosto de beber, gosto mesmo. Mas sei que você não gosta que eu beba, então estou tentando mudar para sem álcool.
- Bia, não vou negar que prefiro que beba sem álcool. Mas não tem que mudar por minha causa, por um pedido meu, e sim porque você quer mudar.
- Sim amor, acho que era só a oportunidade que eu precisava. Você me faz bem, vale a pena melhorar por mim e isso refletir em nós.
- Só não quero que se sinta obrigada a nada Bia. Sempre falo que namoro é pra ser legal, se fosse pra ser chato chamava DP.
- Já que entramos nesse tema…
- Humm, lá vem, conheço esse tom Bia.
- Eu estou te achando muito tensa, preocupada. Isso já faz uns dias.
- Não, estou preocupada com o fim da faculdade, só quero terminar isso.
- Mas não é só isso amor. Faz uns dias que está mais atenta ao celular, preocupada com qualquer ligação. Teve aquela situação aquele dia no café da manhã que você me mandou me esconder no banheiro. Está acontecendo alguma coisa.
- Bia, esquece isso.
- Amor, só quero que saiba que eu estou aqui também. Você não precisa segurar tudo sozinha. Sei que viveu muito tempo sozinha depois da Fabi, mas eu estou aqui. Posso ser seu porto seguro se você deixar.
- Esquece isso linda. De verdade - por mais que eu quisesse e precisasse de um porto seguro, essa investigação é sigilosa e envolve exatamente o ex namorado dela. Não posso envolvê-la mais ainda - Está tudo bem. Estou muito feliz em termos esse jantarzinho nosso.
- Fugindo do assunto né?! Tudo bem. Quando quiser saiba que estou aqui, no seu tempo - esticou e me deu um beijinho rapido - Tambem gostei do seu convite, não tínhamos tido um jantar romântico ainda.
- É um pouco diferente da nossa história. Já moravamos juntas antes mesmo de nos conhecer em si.
- Mas acho que isso dá mais força. Tipo, eu fui te conhecendo aos poucos, fomos nos aproximando, criando uma relação. Não sei explicar, já estava encantada por você antes mesmo de entender que te amava - travei de novo - E amor, não estou te exigindo um “eu te amo”, nunca. Acho que se um dia você falar, vai ser no seu tempo, na sua realidade. Mas não me tire esse direito.
- Bia, não quero nunca te proibir de nada. Acho que você já foi cortada demais. Quero você livre, só isso.
- Sei disso Flavinha, e me apaixono por você todos os dias por esse cuidado - passei minha mão por sua cintura, aproximando mais nossos corpos. Dei um beijo casto e rápido em sua testa, baixinha. Ficamos abraçadas naquela posição por alguns minutos. Foi possível sentir o quanto a Bia vai relaxando no meu abraço, no meu carinho. Gosto tanto dessa menina.
- Flávia Albuquerque - a atendente gritou da porta da pizzaria. Estiquei o braço me apresentando e nos soltamos do abraço. Seguimos a atendente para dentro do restaurante, cheio, cheio, até justificando o tempo de quase 1 hora que levamos esperando. Agradecemos ela e nos sentamos.
Em seguida, uma segunda atendente apareceu para nos apresentar o cardápio. Ela foi simpática e bem atenciosa, explicando sobre as maneiras de pedir a pizza. Terminando o atendimento inicial ela abriu um sorriso muito bonito e encostou a mão no meu ombro enquanto voltava ao seu serviço habitual.
- Vai querer pedir do que Bi?
- Você conhece a atendente? Ela sorriu muito pra você.
- É o serviço dela. Vai querer do que Bi? - não dei moral a queixa - tem de shitaki. Sei que você gosta.
- Humm, pede metade de shitaki e metade de lombo, você gosta de lombro.
- Tá, pede marguerita e frango também?
- Não é muita coisa? Pede só a de shitaki e lombo, se precisar pedimos mais. Pode ser?
- Vou chamar a atendente - estiquei a mão. A moça assim estava olhando pra mim já, assim veio rápido a nossa mesa, sorrindo, brincando - Me ve uma pizza grande, metade shitaki e metade lombo. Para beber - olhei para Bia, que apontou para a long neck dela - uma cerveja sem álcool e um suco de abacaxi com hortelã.
- Mais alguma coisa?
- Não, não, só isso. Obrigada - a menina saiu novamente sorrindo e encostando no meu ombro.
- Será que ela quer seu telefone também? - A Bia soltou com o bico batendo lá na China.
- Amor, esquece isso. Foca aqui.
- Não tem como, ela não para de olhar pra você. Estou ficando irritada já - estiquei minha mão na mesa, segurando a mão da Beatriz, tentei olhar em seus olhos, bem firme e voltei a falar.
- Ela pode olhar pra cá o quanto quiser, eu estou olhando pra você e apenas você. Estou aqui com a minha namorada linda, só você me importa.
- Mas Flávia…
- Bia, meu jantar é com você! Não tem motivo para ciúmes. Esquece tudo que está longe desse caminho aqui - apontei com o dedo meu olhar em direção ao dela - É só você que me importa hoje. Tá bom? - comecei a puxar outro assunto para tentar aliviar o clima - A decoração está diferente da ultima vez que vim aqui, gostei desse toque industrial.
- Quando você veio aqui?
- Nossa, tem anos. Acho que foi logo depois de eu entrar na civil. A Fabi me trouxe para comemorar o concurso.
- Está me trazendo nos lugares que vinha com a Fabi? - que pergunta desnecessária, ainda mais no tom de ciúmes que a Bia soltou. Nunca tinha visto esse lado ciumento dela. Lembro que uma ou duas vezes o Cantão comentou, mas não tinha importância na época.
- Bi, linda, te trouxe porque a pizzaria é boa e tenho boas lembranças daqui. Quero ter essas boas lembranças com você também. A Fabi faleceu, estou tentando seguir em frente. Vamos parar com esse ciúmes bobo? Não tem motivo, e mesmo que tivesse motivo não é o lugar - falei um pouco mais firme, mas sem brigar, sorri com calma pra ela, tentando passar sinceridade, paz.
Comecei a ler o cardápio , folhear na verdade. Eu só queria cortar completamente esse assunto. É uma forma também de mostrar para a Beatriz como eu sou, e uma coisa que não gosto é ciúmes e possessão. Estamos nos conhecendo. Imagino nitidamente o que vai acontecer nos próximos dias por conta do caso e das ameaças, quero um jantar gostoso, cheio de carinho hoje.
Ficamos em silêncio por alguns minutos. A Bia pediu licença e foi ao banheiro, quando voltou, com uma expressão mais leve, a pizza e as bebidas já haviam sido entregues.
- Chegou Bi, vem, tô salivando - falei puxando assunto - Quer de qual primeiro? Deixa eu adivinhar, shitake? - Ela sorriu e sacudiu o rosto afirmando. Servi um pedaço para ela e coloquei uma de lombo no meu prato. Ainda em silêncio, ela colocou um pedacinho na boca e logo sorriu.
- Nossa, que gostosa.
- São seus olhos - roubei algumas risadas dela.
- Fla, desculpa - olhei sério pra ela, como seu eu não entendesse do que estava falando - Fui ciumenta de bobagem e quase estraguei nosso jantar. Agi com você de um modo compulsivo e reproduzi a forma como sempre fui tratada.
- Tinha um consultório de terapia no banheiro? - ganhei mais algumas risadas.
- Eu estava desconfortável aqui, fui ao banheiro tentar me acalmar. E percebi que estava sendo ciumenta sem motivo e mais ainda, dando voz ao Ricardo que vive em mim.
- Você tem um Ricardo dentro de você? - olhei séria - devo me preocupar?
- Só desculpa, estou aprendendo a estar em uma relação legal. Não quero te perder por bobagem.
- Bi, estamos nos conhecendo, alinhando nossos chacras. Não terminaria com você por uma crise de ciúmes pontual, o problema é ser corriqueiro, sempre. Esquece isso, curte a pizza.
- Obrigada por ser sempre calma, protetora.
- Bi, de novo, é pra ser legal. Se fosse pra ser chato, chamava faculdade de direito - ela sorriu, nitidamente sem graça com o que aconteceu. Eu aproveitei o momento e puxei um papo que estava querendo - Amor, como você conheceu o Ricardo? Ele era tranquilo?
- Precisamos falar isso?
- Amor, esse cara estava te ameaçando ontem. Eu quero saber com o que e quem eu estou lidando. Não sei como foram seus outros namoros, se você chegou a falar sobre o Ricardo, mas eu sei sobre ele e eu não sou do tipo que deixa as coisas irem acontecendo. Gosto de ter controle sobre isso.
- Não se envolve com ele Flávia, ele é perigoso.
- Normal, mexe com minha namorada que também sei ser perigosa.
- Não, você cuida de mim, me protege. Não imagino você matando alguém por prazer.
- Não mesmo. Mas por isso queria entender. Não vou voltar a te perguntar dele, prometo, mas acho que tenho direito de saber.
- Tá, mas não quero que me julgue, por favor. Eu mesma já me julgo muito quanto a isso tudo.
- Porque eu te julgaria?
- Ah, porque a culpa é sempre da mulher, eu não me dou ao respeito, eu aceitei ele na minha vida, enquanto ele era bonitinho, eu tava feliz, essas e mil outras coisas que eu já ouvi.
- Linda, não estou aqui pra te julgar. Eu estou com você! Você é minha namorada, quero você bem. E outra, mesmo quando não era minha namorada eu também queria você bem.
- Nós dois crescemos no mesmo bairro e acabamos estudando na mesma escola. Ele é quatro anos mais velho que eu. Nós brincávamos juntos na rua, jogava queimada, pega pega, essas coisas. Quando ele estava se formando no ensino médio, eu já estava menos menina, ficamos algumas vezes, mas coisa sem importância, molecagem.
- Nessa época ele era ok?
- Era de boa, na verdade sempre foi briguento, resolvia as coisas com soco, tapa, mas coisa de moleque, nada sério.
- Hum, e aí vocês continuaram juntos ou..
- Ele foi viver a vida dele e eu continuei a minha. Fui estudar um pouco mais longe, onde tinha técnico de artes visuais que na época era design gráfico. Nunca mais tinha visto ele. Só fui rever o Ricardo quando entrei na faculdade. Quando comecei o curso de fotografia, ele estava no quarto ano de direito na mesma universidade. Eu no começo do curso, perdida no campus, acabamos nos reencontrando, conversa aqui, conversa ali.
- E começaram a namorar?
- Isso. No começo ele era super de boa, carinhoso, um pouco ciumento, grudento. Mas sempre estava lá comigo. Estudava comigo até tarde, me levava para os ensaios fotográficos, me buscava. Estava sempre junto. Era uma coisa boa - percebi que ela estava incomodada.
- Bia, isso não é nenhum problema, nem escudo seu. Em geral a violência ocorre nesse ciclo, no início hiperproteção, ciúmes, sempre com cara de cuidado, de bom moço.
- Eu me culpo muito, sabe? É como se eu tivesse sido cega. O Ricardo no começo era isso, atencioso, cuidadoso. Estudava comigo, me acompanhava nas coisas. com o tempo ele foi ficando mais ciumento. Reclamava da roupa, do cabelo. Se eu colocasse um vestido era o fim do mundo. Depois ele foi cortando meus amigos, até meus colegas de turma tinham medo de falar comigo, o Ricardo sempre estava junto, olhando feio, as vezes sendo rude. Eu não fui percebendo isso, eu achava que ninguém compreendia ele, meus amigos tinham que respeitar meu namorado, afinal, um cara tão bom, protetor.
- Linda, sei que falar é muito simples, mas não é sua culpa. Não se martirize por não ter conseguido se afastar antes, você fez o que achou certo naquele momento.
- Se eu pudesse voltar no tempo nunca teria namorado com ele. Teria me posicionado mais, teria cortado.
- Ninguém muda ninguém, Bia. A gente consegue fazer coisas para nós apenas, não temos governabilidade em relação ao outro. Ninguém começa um namoro pensando “Ah, vou namorar por duas semanas, porque na terceira fulano vai começar a ser agressivo”, não existe isso.
- Não existe mesmo. Ele era um ótimo ator no começo, depois que ele entrou para a civil, aí descarrilou de vez. Cada vez ficava mais estressado e descontava em mim. Acontecia alguma coisa no DP e eu era culpada. Eu já estava trabalhando como perito quando começaram as agressões físicas, no começo era um empurrão, um apertão. Sempre seguido de mil desculpas, perdão, não vou repetir. Ai eu me sentia péssima, como se eu não tivesse apoiando ou causando esse nervoso dele.
- Seus pais não perceberam nada?
- Nessa época eu estava morando com o Ricardo, eu sempre inventava uma desculpa. Ah, arranhei em uma ocorrência, tropecei e caí na calçada. E meus pais, ah, os dois defendem o Ricardo com unhas e dentes, não sei como ele conseguiu isso. Meus pais me veem como uma pessoa que não estudou, afinal fico tirando foto o dia inteiro. Sou uma pessoa que não me dou ao respeito, afinal, gosto de roupas mais curtas. Quando consegui finalmente terminar com ele, precisei de um espaço seguro, achava que era a casa dos meus pais, mas esse é outro arrependimento.
- Você só morou com ele ou chegou a casar?
- Alguma coisa estava falando pra eu não me casar com ele, para tentar um tempo primeiro. Na separação que conhecemos as pessoas, depois que terminei com ele, aí começou a perseguição. Sempre falando que eu era dele, eu só seria feliz com ele, que se não fosse com ele não seria com ninguém. E em cada DP que eu era transferida, sempre tinha uma visita da corregedoria, contando alguma fofoca, alguma situação desconfortável. E quem não acreditaria em um delegado da corregedoria, um santo?
- De santo ele não tem nada né?! O cara é agiota, matador de aluguel, sem contar o resto das coisas que está envolvido.
- Você está investigando ele? Não se envolve Flávia, não quero ele atrás de você.
- Bia, eu preciso saber com quem estou lidando. Claro que fui atrás, sou investigadora, nada como uma pergunta aqui, uma ali. Quero nos proteger ao máximo, não posso perder você.
Oi- Eu sempre encarei a raiva dele, a violência, sem me preocupar. Ele nunca havia me batido a ponto de causar alguma lesão séria. Na minha cabeça era só me afastar que estava protegida. Mas quando descobri que ele estava fazendo uns extras de matador de aluguel, de limpa calçada, qual o nome? Ah, sei lá, pra mim matar qualquer pessoa por dinheiro é matador de aluguel. Aí eu comecei a ficar apavorada. Se em um surto ele dispara em mim? Foi onde mudei mais uma vez de DP e fui pra esse que estou hoje, no centro. Seria um trabalho mais dentro do laboratório, você me ofereceu um quarto, era a chance de sair da casa dos meus pais, ficar fora do radar, voar baixo. Mas é impossível fugir dele, ele sempre sabe onde estou.
- Bia, porque nunca denunciou ele?
- Não é uma questão de denunciar, é a denúncia ser validada. É igual quando perguntam a uma mulher que foi violentada porque ela estava de saia ou porque ela aceitou que aquela pessoa fosse na sua casa. Eu já recebi tanto preconceito sobre essa situação que eu tenho medo de levar em frente. Medo do interrogatório dele, medo da culpa ser legalmente minha, como vou acusar um delegado de excepcional conduta, ficha limpíssima. Eu sou só uma perito criminal que mal fica parada em um DP, porque a cada 6 meses peço transferência. Então sabe quando vai deixando, só tentando não piorar.
- Amor, Bia, prometo que estou e vou sempre estar do seu lado. Quero te proteger, não sei como ainda, mas vou dar um jeito, tá - ela sorriu pra mim, mas nitidamente machucada, desconfortável. Meu pensamento foi direto na Mayra, ela conseguiria me ajudar. Não é correto, nem ético, mas a mão coça de pedir isso pra ela - Vamos pedir uma sobremesa gostosa pra melhorar esse climão? Tava vendo aqui que tem cannoli, tem torta de pistache, pizza doce.
- Ah amor, escolhe aí.
- Jamais, hoje eu deixo a sobremesa ser sua pedida - dei um sorrisinho sacana - aqui e em casa.
- Olha que em casa, se te conheço um pouquinho, vai gostar da sobremesa que preparei - dessa vez eu fiquei sem graça, acho que mostrei isso - E quanto mais envergonhada você estiver, mas sei que estou no caminho certo - Sorriu nitidamente sabendo o que faz - Pede um canoli de pistache e uma pizza de morango com brigadeiro.
- Tá bom! Não vamos levar nada pra casa né?!
- Acho que não tem necessidade. Já estou bem cheia.
- Sei lá, para depois da atividade física que você está planejando - falei direta.
- Pede uma pizza doce pra viagem e aquela mussarela e calabresa do começo. Vou ao banheiro.
Chamei a atendente, a mesma que a Bia deu o surtinho ciumento no começo, e fiz os pedidos finais. Ainda não pedi a conta, se conheço a Beatriz, ela vai querer um café. Não pude deixar de pensar na raiva que eu tenho do Ricardo e o quanto ele machucou emocional e fisicamente a Bia. É nítido o medo e vergonha que ela sente, o que encaixa completamente no pacote de vítima de violência. Eu não posso e não vou negociar com a Mayra, mas isso não significa que não vou gastar até minha última gota de suor em investigação sobre ele, juro que vou ter tanta documentação sobre ele, que nem o juiz mais corrupto vai conseguir livrar esse cara.
E tenho que comentar o quanto é incrível a proximidade que sinto com a Beatriz, sei lá, é como se a história dela me puxasse, esse cuidado que ela precisa. Me lembro da Isa falando exatamente isso, você sempre precisa de um coitado pra você cuidar. A Bia não é coitada, mas a Isa não estava errada, nunca está na verdade.
- Pediu as pizzas e a sobremesa - A Bia retornou do banheiro, parou atrás de mim e me perguntando isso enquanto me abraçava no ombro.
- Sim, só não pedi a conta. Imaginei que fosse pedir um café para fechar.
- Nossa, você me conhece muito bem - ficamos ali tranquilamente conversando sobre tudo. Ela me comentou que achou um programa de intercâmbio em Dublin, na Irlanda, sobre fotografia de paisagens. Falou que estava estudando sobre esse programa, que achou muito interessante, mas não comentou se iria, se fez a inscrição. Eu nem questionei nada, acabei de falar que não prenderia ela, nem proibiria de nada - Vou pegar um café pra mim, quer um também?
- Humm, cafezinho combina com seu beijo. Está me devendo uns 10.
-10 beijos? Só isso?
- Pode parar mais se quiser. Pede o café e pedi a conta. Vou ao banheiro, tomamos o café e partimos. Pode ser?
- Claro - completou com um sorriso lindo, encantador.
Fui ao banheiro rapidinho, por sorte não tinha fila, então foi bem rápido. Quando estava voltando para perto da Bia, vi algo que me gelou a espinha. Sabia muito bem o que significava. Vi a Bruna e a Mayra acompanhando uma atendente até sua mesa.
- Flávinha?! - a Bruna falou quando não consegui desviar o caminho.
- Bruna - fui simpática - Você está linda - não era mentira, estava linda mesmo. Ela sempre se vestiu muito bem, e dessa vez não foi diferente, estava com uma calça salmão e uma regata branca, um blazer salmão e o salto que nunca falta na roupa dela.
- Essa é a Mayra, não sei se já se conheceram formalmente - quase ri na cara delas, mas mantive o teatro.
- Tudo bem Mayra? Cuida bem dela hein, é uma menina de ouro - dei um tapinha no ombro do armário e pedi licença, seguindo de volta pra mesa que a Bia Estava.
- Quem era?
- A Bruna e a namorada dela, a Mayra - tentei não dar importância aquele ponto, por mais que eu estivesse ainda suando frio - O café já chegou! Que rápido!
- Sim, chegou rapidinho, estava esperando você para tomar.
- Não precisava, amor.
- Não queria finalizar com você. Gostei muito daqui, o atendimento é rápido, a pizza é ótima, atendimento legal, companhia boa.
- Humm, companhia boa?
- Sim, você é uma ótima companhia, sabe ser direta, mas delicada. É educada, com um papo bom e um sorriso tímido que me encanta.
- Vamos ver se daqui 10 anos continuo com esse papo bom - rimos em um clima leve, mas por dentro eu estava tensa, quase tremendo. Terminamos nosso café nesse clima tranquilo e eu me segurando por dentro. Dividimos a conta, sem nenhuma pressão ou obrigação. Saímos do restaurante de mãos dadas, foi uma delícia ver a Bia sorrindo, calma e leve.
Assim que saímos da pizzaria, quase de frente, eu percebi um entregador olhando nitidamente para a porta e que mudou a expressão quando me viu. Meu coração acelerou novamente, que merd*. Um pouco mais a frente, um segundo entregador que estava mexendo no celular, mas muito atento para quem mexe no celular, olhou rapidamente pra mim, me seguindo com o olhar.
Fui até onde minha moto estava estacionada, a Bia estava de boa, sem nem perceber o que estava acontecendo. Entreguei o capacete pra ela - Bia, agora na volta é um pouco mais perigoso, fica mais atenta aí na garupa, capaz de eu dar uns gatos no caminho tá - ela não desconfiou de nada, só concordou. Não vou deixar ela aqui, mas sei que não vai ser uma volta tranquila. E assim iniciamos nosso retorno para casa. Logo na rua do restaurante, que era mão única, eu direcionei a moto na contra mão e dei um pelé na avenida que estava à nossa frente, passei por meio de um gramado e peguei o sentido do outro lado. Olhei no retrovisor, claro que não adiantou muito, duas motos estavam atrás de mim.
Fui seguindo um pouco mais acelerada que o habitual e tentando desviar pelos carros. Se eu for abordada por eles, quero que seja o mais próximo possível de casa, que é o perímetro do DP que trabalho, isso vai facilitar muito as coisas. Pelo retrovisor dava para ver que eram 2 em cada moto, isso complica um pouco mais a situação.
Consegui manter uma distância segura deles até chegar na Rua da Consolação. A Bia não tinha percebido nada, estava com o corpo bem leve na garupa. Um pouco antes do cemitério da Consolação as duas motos aceleraram, uma delas entrou na minha frente quase freando, foi o tempo mínimo de eu ter reação de jogar a minha CG para uma ruinha à direita, quase um beco. Nesse momento a Bia se assustou, apertou mais a minha cintura e endureceu o corpo na garupa, dificultando. Novamente uma das motos acelerou e ficou do meu lado.
- Encosta, encosta - falou o idiota do meu lado, quase me empurrando da moto - encosta caralh*.
- Desce Bia, Desce! - foi o que consegui falar pra ela.
- Desce porr*, já falei - o imbecil gritou com ela. Ela desceu da moto, nitidamente já chorando. Assim que ela desceu, mas antes de eu descer, o cara que estava na garupa, que já estava em pé chutou minha moto, comigo em cima ainda. Acabei caindo na guia e a moto em cima de mim, o tanque em cima do meu joelho. Na hora eu gritei de dor. Um outro, imagino que da moto de trás, mandou eu calar a boca com a arma já apontada pra mim. Apesar de toda a dor que eu estava olhei em volta procurando a Beatriz, que estava sendo segurada no braço pelo quarto elemento, ela já sem capacete.
- Cala a boca todo mundo! Levanta essa bosta aí - o que estava gerenciando a ação deu a ordem dos outros dois me levantarem. Enquanto eu era puxada por esses dois, ele ligava para alguém - Tudo pronto chefe. Em condições. - Eu não conseguia apoiar a perna no chão, a dor era grande. A Beatriz estava ao meu lado, em pé, chorando.
- Cara, deixa ela ir. Ela não tem nada a ver com isso - falei pro cara que estava mandando.
- Cala a boca!
- Mano, libera ela, fica com a moto. Ela não tem nada a ver com isso - foi a hora que tomei o primeiro soco no rosto ou na boca, nem sei exatamente. Escutei o grito da Bia proximo a mim. Tentei abrir os olhos e voltar a mim, mas não dei muito, eu tinha um me segurando de cada lado. Comecei a sentir o gosto de sangue junto com a ardência da pele, consegui cuspir um pouco.
- Se não calar a boca vai ter mais - Mas não demorou muito tempo o mini cooper azul encostou no beco que estávamos. Óbvio que seria ele, ele havia prometido vir cobrar a divida dele e ele não é gente pra me enfrentar sozinho. A Bia começou a gritar quando ele saiu do carro e mesmo eu tentando me soltar, foi em vão. O Ricardo se aproximou da Beatriz e falou alguma coisa bem no ouvido dela, percebi que ela aumentou o choro.
- Não encosta nela. Deixa ela ir. Seu problema é comigo.
- Ah Flávia, ela não vai sofrer hoje não. Vai ver você apanhar - A Bia gritou alguma coisa que eu não entendi - vi que ele segurou o rosto dela, pelo queixo e bochecha bem firme, quando tentei gritar algo uma pancada me atingiu na costela direita, e outra no rosto, e mais na costela e mais no rosto. O sangue preenchia minha boca, acho que estava escorrendo, tava ficando difícil de respirar, que dor. Meu olho ardia, estava embaçado pra ver. Senti que cai no chão, só senti por que começou a doer a cabeça atras, tentei proteger a barriga ou as costas ou o rosto.
Com a visão muito embaçada e tossindo, engasgando com meu sangue, consegui ver a Beatriz correndo, onde ela foi?
Fui puxada pela camisa, quem me puxou? Ah o Ricardo mesmo. Eu comecei a gargalhar na frente dele, tenho certeza que tem sangue meu escorrendo.
- Tá rindo do que filha da puta? Não apanhou o bastante não?!
- Seu frouxo! - cuspi sangue - só bate na sua mulher né? - gargalhei de novo.
- Bato nela e bato em você. Não encosta mais nela! Já falei que ela é minha! - gargalhei de novo, babando sangue e tossindo - A Mayra mandou te falar que já deu seu tempo de pensar.
- Manda a Das Letras se fuder - tomei mais um no rosto.
- E se não me pagar, eu mesmo te mato, sabe que mato por muito menos - ri dele, babando mais ainda, quase inconsciente.
- Juba, seja homem! - A partir daquele momento eu não consigo descrever mais nada, não consigo identificar onde apanhei nem o quanto, fechei os olhos e pensei: espero que a Isa tenha gravado tudo.
Fim do capítulo
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