Capítulo 29 – O tratado de paz
Alice teve uma péssima noite de sono. Depois que Bruna saiu, ela ficou em frente ao computador lendo e relendo aquele maldito relatório! Quando as palavras pareceram finalmente registrar, ela freneticamente começou a procurar por sinais, tentando provar para si mesma que aquilo tudo era um exagero. Ela leu os relatórios passados de Enzo e os de Gael quando tinha a sua idade. A diferença entre os dois meninos era gritante. Com os dois arquivos, um ao lado do outro, ela conseguia ver que Gael na idade de Enzo não apenas já falava tudo nos mínimos detalhes, como ele também era muito mais independente e sociável.
Ainda com todas as provas em sua frente, ela tinha dificuldades de aceitar e entrou em um pranto desesperado. A grande diferença da criação dos seus dois filhos era ela. A gravidez de Gael, apesar de inesperada, havia sido alegre! Recém casados, ela e Gustavo viveram a melhor época do casamento. Enzo também não foi planejado e ela estava em um período difícil no trabalho. Tinha medo de não conseguir dar conta da empresa com mais uma criança e, além de tudo, ainda se sentia estranha com as mudanças do seu corpo. Quando Enzo nasceu ela não conseguiu sentir a mesma conexão que sentira com o Gael. Tudo foi muito diferente! Ela se sentia sobrecarregada e sempre cansada. A impressão que tinha dos dois primeiros meses de vida dele é que seu corpo nunca descansava. Ela mal conseguia dormir e mesmo que tivesse algumas horas de sono, pareciam ter sido apenas minutos. Depois de muito desespero, finalmente dona Luíza conversou com ela sobre a possibilidade de estar com depressão pós parto e ela finalmente foi buscar um tratamento. Demoraram meses até que ela finalmente conseguisse sentir-se melhor em relação ao Enzo e definitivamente tudo aquilo havia afetado ele muito. A culpa era sua.
Alice se sentia completamente perdida e sem direção. Sua mente repetia incessantemente tudo que havia feito de errado.
Ela só conseguiu pensar na Bruna e na discussão que tiveram quando foi deitar e viu na mesa de cabeceira a garrafa de água da namorada que sempre passava a noite ali quando dormiam juntas. Então Alice sentiu mais culpa, dessa vez por um motivo totalmente diferente. Ela havia sido uma total imbecil e havia machucado a sua namorada que estava apenas tentando ajudar e defender seu filho da incapacidade de Alice de lidar com a situação. “Estúpida!”, ela repetiu mentalmente para si mesma. Ela era uma estúpida! Sua vontade era pegar o carro, ir até a casa de Bruna e implorar o seu perdão de joelhos, mas ela não podia fazer aquilo aquela hora da madrugada. Com certeza seria mais um motivo para a namorada ficar irritada. Ela ainda era namorada, certo? Bruna não terminou com ela de verdade, né? Elas tinham discussões e aquela era apenas mais uma. Ela precisava acreditar naquilo.
No entanto, quanto mais Alice repassava a briga em sua mente, mais ela se convencia de que era uma total idiota que não merecia a namorada maravilhosa que tinha. O que ela podia oferecer a Bruna? Ela era uma mulher mais velha, divorciada e completamente quebrada emocionalmente. Alice nem sabia como ser mãe direito e havia ferrado com seu filho mais novo. “Estúpida!”.
Depois de muita autopiedade ela finalmente conseguiu dormir agitadamente algumas horas e acordou bem cedo com a mente um pouco menos autodestrutiva, mas com o emocional igualmente destruído.
A Culminância na escola começava às nove e ia até às onze e Gustavo havia combinado de aparecer com os meninos por volta das dez e quinze, mas ela estava ansiosa e chegou antes. Ana estava ocupada e ela não procurou pela amiga, querendo evitar ao máximo o seu olhar inquisidor. Apesar de ter exagerado na maquiagem para não aparentar tanto sua feição de derrota, ainda era evidente em seu rosto o cansaço e o desespero.
Ela respirou fundo e entrou na sala de Enzo. Seu coração parou quando Bruna olhou para ela. As duas se encararam por alguns segundos mais longos que o normal e parecia ter apenas elas na sala, apesar de mais duas famílias estarem vendo as atividades. O olhar de Bruna direcionado a ela era de preocupação. Sua vontade era sair correndo para os seus braços, implorando perdão, mas ela não tinha forças.
Alice focou em sua missão para o dia: ver as atividades de Enzo. Como um detetive procurando pistas, ela procurou todas as atividades individuais de seu filho, comparando-as com as das outras crianças da turma. A diferença era chocante. Enquanto o desenho dos outros alunos já era levemente compreensível, com alguns indícios de formas e cores, os de Enzo eram apenas rabiscos azuis. Nas atividades de colagem, era evidente que enquanto as crianças compreendiam a proposta de colar certa coisa em seu devido lugar, mesmo que com pouca precisão, os de Enzo eram colagens aleatórias. Nas fotos expostas ele sempre estava destacado da turma, geralmente no colo de Bruna ou da auxiliar, com o olhar perdido, sem olhar para a câmera.
Alice estava parada diante de vários autorretratos, perdida em sua mente, vendo os rabiscos sem sentido de Enzo e os desenhos de seus colegas de turma que apesar de desproporcionais já era possível compreender partes do rosto como olhos e boca. Ela nem reparou Bruna se aproximar, mas sentiu o seu cheiro quando estava ao seu lado.
– Você está bem? – ela perguntou de forma carinhosa, com um olhar preocupado.
– Não – Alice falou simplesmente porque diante de todo o turbilhão de pensamentos em sua mente, a única certeza que ela tinha é que definitivamente ela não estava bem.
O olhar de Bruna em sua direção era cheio de compreensão e aquilo fez com que Alice sentisse uma enorme vontade de chorar. Ela não merecia aquilo. A primeira lágrima caiu, mas antes da segunda e de várias outras seguirem, ela se assustou com Gael de repente abraçado em suas pernas.
– Mãe! – ele gritou de alegria e instintivamente, Alice secou seu rosto e abaixou-se para abraçar seu filho mais velho.
Gustavo veio logo em seguida com Enzo no colo.
– Você chegou cedo! – ele falou sorridente, mas ao olhar mais de perto para Alice, sua feição ficou preocupada.
No automático Alice cumprimentou o ex marido e pegou Enzo no colo. O menino já estava se jogando em seus braços e ela agarrou-se a ele como se estivesse pedindo desculpas.
– Você está bem? – Gustavo perguntou.
– Tudo bem – ela mentiu e forçou um sorriso falso.
Bruna havia se afastado com a chegada de Gustavo e já tinha uma mãe conversando com ela sobre alguma atividade, contando de como a filha havia narrado em detalhes em casa a experiência vivida na escola.
– Mãe, vamos na minha sala? Eu quero te mostrar o foguete que eu fiz! – Gael já foi puxando-a animado.
Alice passou os próximos quarenta minutos no automático, tentando fingir que seu mundo não havia colapsado completamente. Depois de olharem todas as salas com Gael animado contando tudo que havia produzido, ele foi brincar com os amigos e ela ficou vendo Enzo brincar no pátio enquanto Gustavo conversava com outros pais.
– Chama o amigo para brincar com vocês – ela de repente ouviu uma mãe falar para um menino da turma de Enzo, referindo-se ao seu filho.
– Ele não fala – a criança respondeu com naturalidade, sem nenhuma maldade, apenas constatando um fato com o qual estava acostumado.
– Ele está aprendendo! – outra menina da mesma idade falou.
– Ele pode brincar mesmo assim – a mãe falou sem graça ao perceber que ela estava olhando.
– Ele não gosta de brincar junto. Ele só brinca sozinho – o menino falou mais uma vez sem maldade nenhuma, sem nem saber o quanto aquilo a machucava – Ele gosta de bola, vou pegar uma pra ele! – o menino disse indo em direção a uma bola rosa que estava no canto do pátio – Toma, Enzo! – falou colocando-se bem à sua frente, precisando chamar a atenção de Enzo algumas vezes até ele ver a bola e sorrir feliz.
Ela e a mãe trocaram um sorriso sem graça e Alice sentiu que seu coração iria sair pela boca.
Um pouco antes das onze Gustavo levou os meninos para almoçarem com sua mãe, apesar da relutância de Gael que não queria ir embora. A escola já estava bem vazia, com poucos pais tentando convencer seus filhos de irem embora. Alice não aguentou mais esperar e entrou novamente na sala de Bruna. Ela estava conversando com outra mãe que havia chegado tarde e Alice passou a novamente observar as atividades de Enzo, sentindo o peso da culpa latente.
=====
Bruna passou a manhã inteira tensa. Ver a dor nos olhos de Alice era muito difícil. Tudo que ela queria era abraçá-la e repetir que tudo ficaria bem, mas ela estava trabalhando e precisava ser profissional.
O olhar de Alice para as atividades de Enzo era de partir o coração, porém o lado bom é que a ficha parecia ter finalmente caído.
Assim que as duas ficaram sozinhas na sala, ela se virou na direção de Bruna, como se não pudesse aguentar nem mais um segundo.
– Eu sinto muito por ontem! – Alice falou com lágrimas descendo pelo seu rosto freneticamente – Eu sou uma idiota! Eu estava me sentindo culpada e com raiva de mim mesma e descontei em você. Me perdoa, Bruna! Me perdoa! – ela repetia em desespero e aquilo partiu o coração de Bruna mais uma vez – Eu não quis dizer nada daquilo!
– Eu sei, meu bem – Bruna falou tentando se conter.
Ela não podia abraçá-la pois haviam câmeras na escola toda, inclusive uma naquela sala, e tinha uma televisão enorme na secretaria com todas as imagens em tempo real. Com certeza, com o evento, várias pessoas estavam por lá e poderiam ver. No entanto, era impossível não a tocar diante da vulnerabilidade que sua namorada apresentava, então Bruna pegou em sua mão gentilmente
– Eu sei! – ela reforçou sua compreensão, tentando fazer com que Alice sentisse que tudo ficaria bem. Que elas podiam resolver qualquer coisa!
Seu gesto e suas palavras pareceram acalmar Alice consideravelmente.
– Eu sei que aqui não é o lugar, mas podemos conversar? Se você não quiser ir lá para casa eu entendo, mas deixa eu pelo menos te dar uma carona?
– Claro – Bruna respondeu, mantendo sua mão na de Alice – Nós precisamos conversar melhor sobre nós, mas também precisamos conversar sobre o Enzo. Você acha que já está mais calma e pronta para essa conversa?
Alice balançou a cabeça que sim.
– Eu sou uma idiota! É tudo minha culpa!
– Não! – Bruna falou com veemência – O que está acontecendo com o Enzo não é sua culpa!
– É sim! Eu não dei atenção devida quando ele nasceu!
– Você estava com depressão pós parto e isso não tem nada a ver com a questão do Enzo! – Bruna falou de forma calma, mas firme, fazendo Alice manter o olhar firme em seus olhos – Eu acredito que o Enzo seja autista e apesar de não se saber exatamente a causa do autismo, eu tenho certeza que não tem relação com depressão pós parto! Não é sua culpa! A genética tem um grande papel e ele não é assim por algo que você tenha feito ou deixado de fazer!
– Você acha que ele é autista? – Alice perguntou ainda parecendo um pouco perdida – Mas ele não tem problema em ser tocado.
– Nem todos os autistas tem problema com toque. O espectro do autismo é bem abrangente e, para termos certeza, ele precisa passar por uma avaliação. Só assim a gente vai saber como melhor ajudar ele! – Bruna falou fazendo um carinho em sua mão.
Alice abriu a boca para responder, mas antes que algum som saísse, Ana entrou na sala.
– Está tudo bem? – ela perguntou preocupada com a amiga.
Disfarçadamente, Bruna largou a mão de Alice, mas viu o olhar inquisidor de Ana para as duas.
– Eu só... – Alice estava com dificuldades de explicar, tanto pela surpresa quanto pelo seu estado emocional, e precisou respirar fundo. Depois de duas tentativas falhas de terminar a frase, continuou – Eu estou começando a entender o que vocês tentaram falar sobre o Enzo – ela finalmente conseguiu falar.
– Eu sei que é difícil – Ana finalmente falou.
– Sim – Alice falou um pouco mais calma – Bruna estava conversando comigo sobre isso.
– Estava mencionando o quão importante é que ele seja avaliado – Bruna falou no tom mais profissional que conseguiu.
– Vamos lá na minha sala conversar um pouco, que tal? – Ana sugeriu.
– Claro.
– Bruna, já encerramos, pode começar a retirar as coisas maiores e você está liberada.
Alice hesitou antes de sair da sala com Ana, claramente querendo falar com Bruna, mas sem saber o que falar na frente da sua amiga.
– Eu espero por você e a gente termina a conversa – ela falou no seu tom mais profissional, sem nem se importar que Ana estava estranhando.
– Podemos marcar uma reunião com mais calma durante a semana, Bruna. Pode ir, você com certeza está cansada – Ana falou.
– Não – Alice falou meio desesperada e completou tentando se recompor – Eu ainda queria conversar um pouco sobre o Enzo e ofereci uma carona para a Bruna.
– Eu agradeço! Vou começar a arrumar as coisas e te espero lá na frente.
Ana claramente não gostou, mas não disse mais nada e as duas saíram da sala, deixando Bruna sozinha.
Eles sempre retiravam as atividades coletivas grandes que seriam descartadas e deixavam para arrumar o restante na segunda-feira. Bruna sempre sentia um misto de alívio e dor nesses momentos. Alívio pelo fim do evento que marcava praticamente o fim do ano pedagógico e dor por ter que descartar atividades que deram tanto trabalho para fazer durante o semestre. No entanto, naquele dia, tudo que ela sentia era uma enorme tristeza pois sabia que aquela era a sua última Culminância na Escola Pindorama.
=====
– Você está melhor? – Ana perguntou assim que entraram na sala.
– Sim – Alice respondeu bem mais calma.
Ter a compreensão de Bruna havia tirado um enorme peso de suas costas, mas ela ainda estava sensível.
– Que bom! – Ana falou com um sorriso estranho.
– O que? – perguntou, sabendo que a amiga tinha algo para falar.
– Não é uma boa você dar carona para a Bruna – falou direta, mesmo que com receio.
– Por que não? – se fez de desentendida, como se isso fosse algo inocente.
– Estão rolando uns boatos sobre vocês duas.
Os olhos de Alice cresceram e ela ficou realmente chocada.
– Como assim?
– Estão achando que vocês têm alguma coisa porque ela ficou de babá para vocês alguns dias. Eu sei que não tem nada acontecendo, mas não é uma boa ficarem muito juntas e alimentar essa história.
Alice sentiu uma grande culpa naquele momento por ter que mentir para sua melhor amiga. Ela mesma não parecia suspeitar de nada, certamente por acreditar que Alice nunca esconderia aquilo dela.
Alice estava muito exausta de tanta culpa.
– Eu prometi que ia dar uma carona para ela e vou dar – ela falou firme – Eu não ligo para nenhum boato de gente fofoqueira!
Ana ainda tentou convencê-la, mas ela insistiu, com a desculpa que ainda queria falar sobre Enzo. A amiga pareceu mais compreensiva ao mencionar o filho e as duas conversaram um pouco sobre a possibilidade de Enzo ser autista. Ana afirmou que essa também era uma suspeita da coordenadora e Alice se segurou para não chorar. Ela não queria mais ficar ali, naquela sala, naquela escola, naquela realidade... Ela só queria sair, fugir para qualquer lugar com Bruna e chorar em seus braços.
Com a desculpa real de uma noite mal dormida e cansaço, Alice saiu da sala de Ana e foi em busca da sua namorada. A escola estava completamente vazia de outros pais e pouquíssimos funcionários que estavam saindo. Acabou sobrando Bruna, Alice e Ana e ela suspeitava que a sua amiga havia enrolado o máximo possível para que ninguém visse as duas saindo juntas.
Elas se despediram de Ana, tentando manter um clima nada íntimo enquanto caminhavam até o carro de Alice. Assim que entraram, ela ligou o motor, mas não saiu com o carro, ficou esperando até que Ana dirigisse para longe.
Como dois imãs se encontrando, assim que perceberam que estavam completamente sozinhas, longe de olhares curiosos, as duas se buscaram e se grudaram. As bocas se encontraram em um beijo desesperado, mas não era um desespero de desejo carnal e sim de uma conexão emocional. Depois da briga que tiveram na noite anterior, tudo que Alice queria era sentir Bruna em seus braços e ter a certeza de que ficariam bem.
– Me desculpa, por favor, me desculpa – Alice falou assim que as bocas se separaram, mantendo o restante do corpo ainda grudado.
– Eu desculpo! – Bruna falou sincera – Está tudo bem, meu bem.
– Quer que eu te leve em casa? – perguntou ainda insegura.
– Não. Vamos para a sua casa.
Elas trocaram um sorriso antes de Alice finalmente sair com o carro.
Fim do capítulo
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S2 jack S2
Em: 12/11/2024
Eu como mãe, não consigo imaginar a dor que a Alice está sentindo. O sentimento de culpa parece que nos persegue, desde sempre, achamos quase que o tempo todo que não somos boas mães suficiente. Mas a Alice ter "caído na real" sobre a situação do Enzo, já é um primeiro passo para mudar toda essa situação que ela está vivendo. E a Bruna é um anjo na vida da Alice, trazendo as melhores coisas possíveis.
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Marta Andrade dos Santos
Em: 12/11/2024
Acordou para Jesus Alice aceita fia e vai cuidar do Enzo.
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Lea
Em: 12/11/2024
Alice começar a aceitar a condição do filho, já é um grande avanço.Ela também precisa de ajuda profissional, assim, conseguirá ajudar o Enzo melhor. Ver ela se culpado o doloroso.
E o namoro,apesar dos pedidos de desculpa e o beijo, será que será salvo?
E a permanência da Bruna na escola, não terá negociação,a demissão é inevitável??
Carol,a estória está maravilhosa,mais uma para fica na memória
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