Morda a mão
“Não acho que seja uma boa ideia, Daniele.”
Sua única ação foi cerrar as sobrancelhas e encarar a uma Fátima temerosa. Depois, a mesma que tinha sido indagada falou que, talvez, no momento certo, Helena se abrisse com ela e falasse sobre ela mesmo. Além disso, no fundo, não achava que Daniele fosse uma das melhores influências ao qual sua estimada sobrinha pudesse ter.
Não que duvidasse do seu caráter, muito pelo contrário. Sabia bem que era uma garota de confiança e que jamais faria mal a alguém, mas, seu estilo de vida não era algo louvável na boca miúda da pequena cidade. Suas amizades, como se vestia, seu modo de ver o mundo, a falta de expectativas perante as coisas, o fato de nunca ter arranjado um namorado. Tudo aquilo levava aos comentários de que talvez Daniele fosse aquilo que ninguém nunca ousava nomear em público, mas, que em pensamentos, corria grosso modo entre aqueles que a conheciam, nem que fosse apenas pelo seu nome.
Mas, se tinha algo que Fátima não podia controlar, era as coisas que eram ditas por terceiros. Sem que soubessem, os amigos de Assis comentavam sobre a “sobrinha surda” fora de sua presença, o dono da venda do final do bairro se perguntava certa vez como a garota fazia para falar e, no encontro na casa da vizinha da outra rua, se questionavam o que ela fazia morando com o casal.
Porém, eles não sabiam nada além do inevitável, e até ali, estava tudo bem. Sem contar que sair com a filha de Sueli, apesar dos pesares, ainda a daria um maior controle sobre a situação, já que sua fiel amiga jamais deixaria de falar sobre qualquer coisa que acontecesse ou deixasse de acontecer sob sua visão.
Assis a chamou de fundo. Despediu-se, deixando uma Daniele com mais perguntas do que outrora. Toda essa superproteção era pelo fato de sua surdez? Helena parecia poder se expressar muito bem para uma não ouvinte. Tinha também o fato de que se questionava o motivo de nunca a ver usando aparelho. Se ela falava com as pessoas sem ser por sinais, por que não o usava? Não seria mais fácil de entender o que as pessoas falavam usando um?
Mas, ainda assim, esse não era o maior dos questionamentos.
No outro dia, quando Daniele levantou o olhar, às quatro da manhã na recepção, tentou não ficar surpresa ao ver Helena a encarando com os braços apoiados no balcão. De primeira, perguntou como ela havia conseguido ser tão silenciosa, mas tentou dizer a si mesmo que estava distraída. Tinha ido cobrar o prometido.
“Mais tarde”, falou Daniele ao olhar para os lados e se voltar para ela, “eu passo lá com você. Deixe a porta aberta, por favor.”
A verdade era que Helena estava ansiosa por aquilo, afinal, nunca deixavam nada no mínimo excitante acontecer durante todo o seu dia. Toda vez era a mesma coisa, então até mesmo o gesto de ir para outro lugar para comer a deixava animada. Desde que tinha dado o horário do seu turno, tentava se distrair com o que tinha à sua frente e, mais uma vez, o faria até que Daniela a chamasse. Começou a conferir o que tinha no almoxarifado, batendo cada número com a quantidade que deveria ter à sua frente. Sabonetes, xampus, hidratantes, até mesmo as toalhas e colchas, contadas por todas as noites em que estava ali, seja para repor ou para avisar que estava faltando.
Do outro lado, na recepção, alguém deixava seu posto vago e corria para a cozinha, perguntando o que seria naquele dia. Nada de diferente do habitual, a não ser que não deveria deixar um prato pronto, e sim dois. Perguntou se era para guardar o seu, mas, dessa vez, era diferente. Eram dois. Paulo, um dos cozinheiros e principal amigo de Daniele naquele espaço, levantou uma das sobrancelhas, mas nada disse.
Seguiu para a porta que já a esperava destrancada. De lá, uma garota de costas para ela se distraía olhando para a diferença que poderia ter entre o sabonete de lavanda e jasmim. Ou melhor, que pensou estar distraída, porque no instante em que ela girou a maçaneta e deu o primeiro passo para dentro, Helena se virou em sua direção. Não perguntaria como ela soube que ela já estava ali antes mesmo que entrasse por inteiro.
“Já está com fome?” perguntou. Helena assentiu que sim e, abandonando o trabalho, seguiu com a colega para a cozinha, onde um mundo novo a esperava. Rodeados por lajotas brancas e o piso marmorizado, pessoas de aventais corriam carregando grandes panelas de inox de um lado a outro. O ambiente cheirava a molho de tomate e especiarias, e o café era passado de fundo. Daniele seguia na frente enquanto Helena olhava para tudo em silêncio, mas não mais do que os olhares nada discretos para a novata.
“Paulo, essa é a Helena”.
Cumprimentaram-se normalmente. Ele já havia ouvido falar sobre ela, mas realmente não era nada do que esperava. Era uma garota franzina que parecia jovem demais, e ainda assim, bonita demais. Não sabia dizer o que tinha nela que chamava sua atenção. Talvez as grossas sobrancelhas, ou o olhar sério e fixo que tinha sobre as coisas, ou o cabelo que caia por seu rosto. Daniele o encarou. Sabia o que aquilo significava. Chamou sua atenção, o que o fez prontamente entregar o prato feito nas mãos de ambas.
Era algo simples. Pão frescos, ovos fritos, frutas cortadas em cubos dispostos em um pote, salsichas ao molho junto a queijo e presunto. Já era o café da manhã dos hóspedes, mas no qual os ali funcionários acabavam tendo a prioridade antes dos demais. Sentaram-se na última mesa, já no final do salão ao lado esquerdo, afastada dos demais. Era sempre onde Daniele ficava.
Enquanto comiam, Helena balançava os pés devagar embaixo da mesa. Olhava para uma Daniele em silêncio, de olhos baixos, parecendo estar concentrada demais no próprio prato para poder falar alguma coisa. Não era o caso. Ela só não sabia o que falar, ou melhor, como falar. No entanto, Helena estava disposta a quebrar o silêncio que ali se instaurou.
“Isso está muito bom.”
Daniele levantou o olhar, e viu Helena dando uma garfada antes de voltar os olhos para ela. Concordou, e disse que o cozinheiro era seu amigo. Perguntou onde haviam se conhecido. Era da escola, estudavam juntos no ensino médio. Fez o breve comentário que ele havia engravidado a namorada ainda naquela época e teve que acabar parando a escola, mas tinha conseguido terminar. A mulher acabou o largando por outro. A desculpa era que trabalhava demais, ou pelo menos era isso o que Helena entendia. Ela estava falando muito rápido e colocando a mão contra a boca.
Continuou falando sobre como não gostava do outro cozinheiro, que era rude, grosseiro... e que talvez ele tenha brigado com ela? Não saberia dizer. Ela continuava falando sem parar daquele jeito, e Helena se prestou a fazer o que fazia comumente: concordar e balançar a cabeça como se estivesse entendendo.
Quando parou de falar, já no final da refeição, Daniele notou que Helena olhava com o cenho franzido até demais em sua direção. Com a mão apoiada ainda na boca, perguntou o que havia acontecido. Mais uma vez, a feição fechada e a falta de resposta. Só assim que ela percebeu que tinha alguma coisa errada. Pensou por alguns segundos se fosse a comida, ou que alguém tivesse feito algum gesto, até que reparou que o problema era com ela mesmo. Suas bochechas logo coraram.
“Me desculpa”, disse assim que afastou a mão do rosto e falou com mais calma. Helena se prestou a dar um sorriso acanhado e responder em um sussurro que não tinha problema. Quando terminaram de comer, pegaram os pratos e levaram até a suntuosa pia para adiantar o serviço dos demais.
Daniele estava envergonhada. Por um momento, tinha esquecido de que Helena não a podia ouvir e, do pouco que a conhecia, sabia que ela ficaria acanhada o suficiente para pedir que parasse por um instante e falasse olhando para ela sem nenhum impeditivo à sua frente. Mas, como pediria desculpas além das palavras?
Antes de voltarem aos seus postos até dar o horário, Helena agradeceu o convite e disse que não era para esquecer dela no próximo. Daniele confirmou que não esqueceria de forma alguma. No entanto, assim que deu as costas e voltou para a solitária sala, exasperou. Por alguns segundos, o pensamento de que, talvez, se estivesse com o aparelho, pudesse ser diferente... Mas, rapidamente isso se dissipou de sua mente.
Na hora de ir embora, acabaram não se encontrando. Daniele tinha sido chamada até o financeiro para as prestações de contas, e quando foi liberada, Helena já tinha saído. Pensou que talvez pudesse ir até a sua casa, mas, logo lembrou de como sua tia havia ficado quando a viu ali, e que também não iria saber o que dizer. No final das contas, não era uma boa ideia.
O dia se seguiu como o habitual para cada uma, ou melhor, como quase sempre se seguia. Daniele, antes de chegar na casa de sua amiga para ensaiar, passou em frente à loja em que a tinha visto daquela vez. E, logo após esse pensamento, outro veio em seguida, e foi esse que deu o ímpeto para que entrasse e seguisse para uma das gôndolas que havia espalhado por ali.
Helena chegou no seu turno posterior brevemente atrasada. O carro de Assis havia dado problema e teve que ir para a oficina, o que a fez ter que ir andando sozinha, para o desespero de Fátima. Chegou e logo foi convocada para ajudar a limpar a bagunça que os hóspedes anteriores tinham feito na piscina.
Quando finalmente pôde entrar na sala que sempre a acolhia naquelas noites, viu algo diferente em cima da mesa junto à pilha de papéis que a aguardava. Aproximou-se e viu o que se tratava, já logo o segurando. Uma barra de chocolate amargo com amêndoas, da sua marca preferida, com o seguinte bilhete colado nele:
“Não irá mais acontecer. Eu prometo.
Dani.”
Fim do capítulo
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