Perfeitas desculpas
Para Helena, passar a noite ali não era problema algum. Na verdade, apesar de estar em um lugar fechado fadada a fazer os serviços aos quais ninguém queria e que sempre acabavam sugerindo que a “prestativa novata” o fizesse, ainda era melhor do que ficar em casa o dia inteiro sem poder fazer nada.
Pelo menos ali ela podia dar a desculpa perfeita de falar para Cassandra que não pôde responder suas inúmeras mensagens por estar ocupada. Da hora que dormia até a hora de acordar, aquele nome sempre aparecia nas notificações. Dentro daquelas acomodações, mesmo com suas obrigações, podia sentia um resquício de independência em estar distante do controle familiar.
E, enquanto limpava a piscina pacientemente – tarefa designada pelo cansado jardineiro que assistia ao jornal da madrugada – da recepção, alguém a olhava.
Pouco se falaram desde que tinham se encontrado fora dali. Para Daniele, Helena era focada demais e não aproveitava os benefícios do turno noturno em um hotel, como os cochilos pelos longos turnos vagos, a comida que era preparada para o café sendo servida fresca, as conversas que se seguiam para se distrair. Helena entrava em silêncio e saía do mesmo jeito. Nunca puxava assunto ou falava com alguém a não ser que a pessoa chamasse sua atenção para isso.
O uniforme azul escuro que ficava brevemente folgado nos ombros, assim como a bainha da calça, enrolada em duas voltas e meia, as botas pretas já gastas na ponta. Boné da mesma cor do uniforme para trás, o cabelo para frente, cobrindo os ouvidos, o olhar sempre compenetrado. Helena vez ou outra pressionava os lábios e cerrava a vista, um gesto inconsciente que dizia a si do que tinha que fazer.
Ali, ninguém ligava para o que ela deixava ou não deixasse de fazer, mas também ninguém ligava para ninguém. Cada um estava dentro de seu mundo, que vez ou outro se colidia por meio de conversas supérfluas e aleatórias, tentando de cada jeito seguir com aquela rotina que desgastava a cada um pouco a pouco, assim como acometia Daniele que, ao mesmo tempo que não queria mais estar ali, também sabia que precisava do dinheiro para ter o mínimo de independência dos pais.
As mãos que seguravam a rede eram esguias, magras a ponto de qualquer força mais que fizesse aparecesse os sulcos dos ossos sob a pele. Seus olhos também eram fundos, como se estivesse cansada demais mesmo que sua postura dissesse o contrário. Mordeu os lábios devagar, parou o que fazia e respirou fundo antes de continuar o que fazia. Os olhos que vinham da recepção seguiam cada passo dela antes de ser interrompidos por um carro de limpeza passando em sua frente, seguido de um questionamento do que tanto olhava. Ao seguir em direção, um sorriso sugestivo.
“Qual é seu interesse na surda-muda?”
Daniele fechou a cara no mesmo instante que aquelas palavras foram ditas. Disse que Helena não era muda, e Márcia continuou com o mesmo tom, alegando que não duvidaria que fosse, já que nunca abria a boca. No entanto, continuou perguntando qual era o interesse nela.
“Nenhum”, alegava Daniele, dizendo que só se tratava de simpatia pelo que ela tinha feito com ela naquela vez. Sua colega, todavia, balançou a cabeça em negativa e disse que talvez sua mãe tivesse razão em alegar que ela tinha que perder peso, e não ser incentivada ao contrário.
Questionou-se qual a desculpa para falar do seu corpo dariam dessa vez. Para poder se sentir bonita, caber num manequim menor, ser desejada? Ela já não odiava sua aparência o suficiente no espelho para que a odiassem ainda mais? Discutir sobre aquilo não daria em nada. Prestou a ignorar a colega olhando para os lados, que pegou o telefone e mostrava uma nova dieta que tinha visto, procurando chamar sua atenção.
Helena sentia as vibrações da água passando por aquela rede. Era quase como se pudesse sentir o toque da água em suas mãos. Por vezes, pensava em se jogar naquela piscina, sujá-la com a poeira de sua roupa e tomar uma advertência. Parecia muito divertido em sua cabeça, mas a dor de cabeça que teria ao explicar para as pessoas de sua casa e outro surto da sua irmã a impedia mais do que o trabalho de fato.
A noite estava clara, e o céu reluzia. Também estava abafado. Era aquele meio de troca de estações, onde o clima ainda não tinha se decidido. Logo o tempo esfriaria e as noites também seguiriam assim. Olhou para o seu colega, que estava concentrado vendo alguma atualização sobre guerras na televisão que vez ou outra a transmissão tremulada. Pegou a sujeira que tinha tirado da piscina, as colocou no saco e jogou no lixo.
Seus olhos se voltaram para a recepção, onde encontraram uma Daniele que olhava para os lados, aflita contra uma Márcia – se era bem esse nome que ela lembrava – que não parava de apontar para o telefone e balançar em sua direção. Reconheceria aquela feição em qualquer lugar. Era a mesma que fazia quando Cassandra falava sobre como ela sabia o que estava fazendo e que devia agradecer por toda o cuidado que tinha com ela.
Por isso, sabia como ninguém de como nessas horas ela gostaria que fosse socorrida ou até mesmo abduzida, se possível. Colocou a rede já limpa no lugar, e seguiu a passos lentos até chegar a elas. Ambas viraram, mas as reações foram diferentes. Enquanto a da frente olhava em um breve choque, a de trás parecia aliviada. Márcia falou de como ela era silenciosa e ria envergonhada, já Daniele a encarava sem dizer nada.
“Daniele”, dizia em um tom sério “tem como você me ajudar com um negócio ali, por favor?” A resposta foi um “claro!” seguido dela se levantar, pedir licença e seguir ao seu lado.
Pararam em frente ao almoxarifado, onde Helena destrancou a porta, ligou as luzes e se sentou indo pegar o lanche que estava ao lado da cadeira, deixando uma Daniele confusa. Perguntando do motivo que a tinha chamado. “Nenhum”, voltava a falar em seu tom marcado e compassado, abrindo a lancheira e se deparando com o sanduíche de frango com salada cortado ao meio, uma garrafa de café com leite – que já estava morno – e uma banana a tiracolo, “só achei que você queria sair dali.”
Daniele riu, falando em como a achou perspicaz, pegando a cadeira ao seu lado e também se sentando, mas ela não estava prestando atenção. Desembrulhava o lanche e dava a primeira mordida. Pegou a outra metade e ofereceu a colega, que negou.
Olhava para aquelas mãos que seguravam o lanche e o levava até a boca, em um mastigar e outro. Esperou até que olhasse em seus olhos mais uma vez e apontou para a boca. Helena logo seguiu o movimento.
“Fornecem lanche toda madrugada para os funcionários. Por que você não pega lá com a gente?”
Helena cerrou os olhos, baixou o olhar, mastigou o sanduíche, o engoliu e voltou a falar que não sabia, mas que talvez tivessem dito para ela e ela não deve ter ouvido. Nisso, levou os olhos até Daniele, que ficou séria sobre o comentário, mas, logo que viu Helena deixando escapar um riso, riu do mesmo jeito.
“Então na próxima vez você vai lá comigo, tá bom?” e acenou que sim. Helena terminou de comer e ofereceu o café para Daniele, que acabou aceitando e alegando que aquele era melhor do que serviam.
Logo tinha que voltar ao seu posto, mas não antes de agradecer pelo café e pelo que tinha feito. Para Helena, não era nada e que não tinha o que agradecer, mesmo que, no fundo, quisesse saber sobre o que estavam falando que a deixou tão incomodada. Mas, concluiu que, se ela não tinha dito, era porque não gostaria de compartilhar.
Aquele era um caso de pessoas cheia de perguntas, mas sem a intimidade suficiente para seguir em frente com elas, mesmo com coisas simples como qual era sua rede social ou do que gostava de fazer nas horas vagas.
Na hora da saída, já pela manhã, Helena olhava para o relógio, parada em frente ao hotel. Assis estava atrasado. Tinha chegado tarde em casa e ainda não tinha acordado, deixando Fátima furiosa chamando por ele enquanto estava mergulhado em um sono profundo. Daniele, que já tinha trocado de roupa e se preparava para a caminhada, parou em frente a colega que já havia notado sua presença, perguntando o que tinha acontecido. Falou que Assis estava atrasado, que provavelmente ainda estava dormindo e que não queria incomodar perguntando para a tia sobre o que tinha acontecido, já que o que ele fazia era um favor.
“Bem, a minha casa é na mesma direção”, apontou Daniele ao caminho oposto em que estavam, “você não quer ir comigo?”
Para Helena, estava tudo bem, mesmo com os pés cansados depois de todo o turno com as pesadas botas. Agora, já livre delas, concordou com um aceno em seguida de uma mensagem para a tia dizendo que ela já iria com Daniele para casa.
O caminho foi silencioso, mas apenas verbalmente falando. Helena pensava em tantas coisas quanto Daniele para puxar assunto, e ela pensava que não queria parecer intrusiva a cada momento chamando-a por um toque nos ombros. Ficaram tanto tempo pensando no que deveriam falar que, ao perceberem, já estavam na esquina da casa de Helena, onde uma Fátima apreensiva a esperava na frente.
“Graças a Deus!” dizia ao ver a sobrinha parada no portão “Estava tão preocupada contigo!”
Helena, por outro lado, agradeceu a companhia, se despediu com um breve sorriso e o desejo de um bom dia, passou pelo portão que a tia tinha acabado de abrir, desejou bom dia para a mesma e seguiu para dentro de casa.
Assis, que estava no sofá ainda com as vestes de dormir, deu um pulo e foi em sua direção, parecendo clamar por seu perdão em ter perdido a hora. Helena negou com a cabeça e disse que não tinha do que se desculpar, agradeceu a preocupação e seguiu para o quintal, indo pegar a toalha para tomar seu banho antes de dormir.
Já no portão, Fátima segurava as mãos de Daniele, agradecendo imensamente pelo que tinha feito em zelar pelo caminho de Helena, mesmo ficando a algumas quadras distantes de sua casa. No entanto, mesmo dizendo que não era nada, acabou confessando que gostaria que ela fizesse um favor, se não fosse pedir muito. Fátima não hesitou em falar que ela podia pedir o que quisesse, contando que estivesse ao alcance.
A única coisa que Daniele pediu era que, quando possível, elas pudessem conversar sobre o único assunto que uniria aquelas duas pessoas tão distintas uma da outra: Helena.
Fim do capítulo
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Marta Andrade dos Santos
Em: 01/11/2024
Ótima história.
Helena e Daniela vão ser ótimas amigas.
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