Bruna nunca imaginou que ficaria tão tensa em uma reunião com a fonoaudióloga de um aluno. No entanto, era compreensível seu desconforto quando ela considerava que a profissional estava ali para falar do filho da sua namorada, o que era ainda um assunto delicado entre as duas.

            – O tratamento do Enzo tem sido bem complicado. A família me parece um pouco desorganizada com horários e para cada semana que ele vai, ele falta duas.

            “Eu vou matar a Alice!”, Bruna pensou enquanto ouvia a profissional falar de como estava tendo dificuldades com o Enzo por conta da falta de constância das consultas.

            – Ele é uma criança que me preocupa – ela falou séria – E não apenas na questão da fala. Ele tem outros comportamentos que eu consegui reparar, mas como tenho pouco tempo de convivência, queria ouvir um pouco mais de vocês.

            Essa era a hora que Bruna prontamente listaria tudo que ela havia reparado sem pestanejar, mas ela hesitou, pensando que aparentemente o relacionamento das duas que não deveria afetar em nada o seu trabalho, estava afetando.

            – Nós também temos algumas preocupações com ele – Maria Tereza falou em seu lugar, mas lançou um olhar para que Bruna complementasse.

            – Sim sim – ela tentou retomar o foco para a reunião, sabendo que aquilo era importante para o Enzo.

            Junto com a coordenadora, Bruna passou a falar um pouco de algumas características de Enzo como a falta de socialização, a dificuldade com mudanças e frustrações e outras inúmeras pequenas coisas que juntas falavam muito sobre o menino.

– Por isso que conversamos com os pais no inicio do ano – Maria Tereza falou – E escrevemos um relatório detalhando todo o seu comportamento e nossas preocupações.

Bruna se perdeu momentaneamente em lembranças da primeira reunião que tiveram com Alice e não pôde deixar de pensar em como tudo havia mudado naqueles meses.

– Vocês ainda têm esse relatório? – a fono perguntou.

– Não te mostraram? – Bruna perguntou e com a resposta negativa, ficou mais uma vez impaciente com Alice.

– Podemos imprimir uma cópia para você, mas ele já está desatualizado – a coordenadora explicou – Estamos em processo de escrita do relatório do segundo semestre e podemos enviar assim que ficar pronto.

Como já estavam no mês de outubro, Bruna estava já quebrando a cabeça para escrever os relatórios de seus alunos, porém nem havia ainda começado o do Enzo.

– Eu agradeço! Não consigo muitas informações da família. Sempre que tento conversar um pouco mais sobre as questões do Enzo, percebo uma grande resistência de todos. A pior é a avó, que é quem geralmente leva ele. Sempre que tento falar alguma coisa ela conta uma história de um familiar que só começou a falar com quatro anos e hoje é uma pessoa muito bem sucedida. Eu tento falar que vai além da linguagem, mas é difícil, ela parece realmente estar em forte negação e nem considera o que eu digo. O pai ainda ouve vez ou outra e tem se mostrado um pouco preocupado.

– Quando fizemos uma reunião com os pais, o pai pareceu realmente mais aberto a ouvir o que estávamos falando. A mãe ficou completamente na defensiva – a coordenadora falou.

– Sim! – a fono concordou com veemência e Maria Tereza e ela trocaram um olhar impaciente que Bruna teria compartilhado se não fosse sobre a sua namorada – A mãe normalmente mantém o diálogo comigo no mínimo, geralmente para fazer cobranças sobre os avanços dele de forma direta e ríspida – Bruna lembrou de todas as grosserias que ela havia sofrido vindo de Alice – Eu sinto que no inicio ela estava mais tensa, mas agora que ele recentemente começou a balbuciar algumas pequenas palavras, ela parece mais aliviada.

            Durante todo o restante da reunião Bruna se sentiu culpada. Mais uma vez ela havia deixado o assunto delicado do Enzo para segundo plano. Ela sabia da resistência de Alice e desde que a mesma havia colocado o menino na fono, Bruna havia dado um espaço, esperando que mais uma pessoa falando o que a escola falava, ajudaria ela a começar a aceitar, mas pelo que a fonoaudióloga relatou, ainda estavam na escala zero e com o pequeno progresso das consultas, Alice parecia ainda ter se acomodado.

            Assim que chegou em casa naquele dia, ela começou a escrever o relatório do Enzo. A coordenadora pediu que ela fosse absurdamente verdadeira e direta ao falar dele.

            – Escreve tudo, mesmo que pareça um pouco pesado, eu vou ler e qualquer coisa, ajusto. Depois marcamos uma reunião logo antes da entrega para novamente insistir em uma avaliação e conversar com cuidado para eles não se assustarem. Eu sei que a Ana é muito amiga da mãe, então vou conversar com ela com calma para estar presente e ajudar.

            Bruna sabia que a presença de Ana não seria suficiente e sabia que antes de esse relatório chegar nas mãos de Alice, ela mesma precisaria ter uma conversa séria com ela.

            Ao longo do dia, a sua preocupação com o assunto do Enzo não saiu de sua cabeça, mas ao mesmo tempo, apesar da preocupação latente causar certa ansiedade, Bruna não queria apressar a conversa. No inicio de novembro haveria o evento da Culminância na escola, quando as turmas apresentariam os seus projetos e ela já estava na reta final, se preparando. Além disso ainda haviam os relatórios que eram sempre um desafio. “Depois da Culminância. Só mais algumas semanas”, ela pensou e apesar de usar diversos argumentos para justificar a sua decisão, no fundo ela sabia que estava fugindo do conflito inevitável.

=====

            O fato de Alice estar ansiosa para um show de pagode era apenas mais uma prova de como ela estava completamente louca por Bruna.

            – O que achou? – ela perguntou sorridente depois de vestir a quinta opção de roupa que havia separado para o show que seria no dia seguinte.

            – Você está maravilhosa! – Alice sorriu de sua posição na cama de Bruna, de onde observava divertida a sua namorada trocar e retrocar de roupa.

            – Você falou isso das últimas duas roupas que eu coloquei!

            – Porque você está sempre maravilhosa!

            – Isso é muito fofo! – ela aproximou-se para dar um beijo leve em seus lábios – Mas não me ajuda! Sério! Me fala qual é melhor!

            – Eu não sei... – Alice brincou – Acho que preciso de mais umas três opções antes de dar meu voto final.

            – Você só está dizendo isso porque gosta de me ver me trocando!

            – Eu prefiro mesmo é você totalmente sem roupas, mas não é um estilo apropriado para o evento de amanhã – Alice pensou melhor – Na verdade, não é um estilo apropriado para nenhum evento ou para nenhum outro par de olhos além dos meus!

            Bruna gargalhou alto e Alice não resistiu a vontade de se aproximar e envolver sua cintura fazendo com que seus corpos se grudassem. O som da felicidade da Bruna era a sua música preferida e para não os abafar com um beijo em seus lábios, Alice passou a beijar seu pescoço, deliciando-se com as gargalhadas felizes aumentando conforme ela foi puxando-a para a cama, fazendo com que a menina caísse em cima dela.

            Quando as gargalhadas de Bruna finalmente cessaram, ela focou o olhar alegre e intenso em Alice, que sentiu o coração arrepiar.

            – Eu amo que vamos passar esse fim de semana inteiro juntas – Bruna falou e Alice não podia concordar mais.

            Apesar de já terem algumas semanas do aniversário de Bruna, como o Numanice foi seu presente, elas haviam combinado de fazer o fim de semana inteiro especial como uma segunda comemoração. No caminho até a casa de Bruna, Alice comprou uma refeição para o jantar, pois era a noite que descansariam para estarem renovadas para o show no dia seguinte. No domingo iriam em uma feijoada com a prima de Bruna, que estava ansiosa para conhecer sua nova namorada. Alice nunca entendeu muito bem o apelo de feijão, mas estava ansiosa para conhecer a famosa Priscila e sabia o quanto aquilo significava para Bruna.

            – Nós podemos passar todos os fins de semana juntas – Alice disse sem nem pensar.

            É o que ela queria, era o que Bruna queria.

            – Acho que você está esquecendo um detalhe: seus filhos.

            Alice gostaria de dizer que ela queria que os filhos soubessem. Ela queria que todos soubessem! O único problema é que essa decisão tinha que vir de Bruna, afinal, era o emprego dela que estava em jogo.

            – Podemos pensar em algo... A gente faz a mesma coisa que da última vez. Fala para o Gael que você está indo ficar de babá na sexta, eu finjo que preciso trabalhar até mais tarde e você fica o fim de semana inteiro! – Alice respondeu prontamente.

            – E isso não é nada suspeito, né? Nem vão estranhar! – ironizou.

            – Eles são crianças, Bruna, não detetives – brincou e se deliciou ouvindo o som da sua risada.

            Alice aproveitou a deixa para se posicionar melhor na cama, fazendo com que as duas ficassem deitadas uma de frente para a outra.

            – Eu não quero que você seja um segredo – falou de forma séria.

            – Eu sei, meu bem. Mas eu preciso resolver essa questão sobre o meu trabalho e final de ano é sempre muito corrido. Podemos esperar para conversar melhor sobre isso depois da Culminância?

            – Claro! – Alice falou gentilmente, mas ela já tinha um plano para resolver toda a situação.

            – Enquanto isso, eu vou aceitar o seu plano de passar o fim de semana com vocês!

            Alice achou que seu coração ia pular do peito.

            – Com uma condição! – fez mistério antes de responder – Você tem que dizer qual roupa ficou melhor!

            Alice riu.

            – A primeira opção!

            – Ótimo! Agora podemos nos ocupar com outras coisas... – falou de forma sensual, colocando-se por cima.

            Se aquele fim de semana era um presente para Bruna, parecia que também era para Alice. Desde de que as duas haviam assumido um relacionamento a vida de Alice parecia cada vez melhor. Depois de tanto estresse com a sua vida virando de cabeça para baixo, ela sentia que finalmente tudo estava bem, encaixando-se nos seus devidos lugares.

            Meses atrás ela nunca poderia imaginar que a vida de Bruna e a sua pudessem realmente se encaixar. Se no inicio do ano alguém dissesse que ela estaria em um show de pagode lotado, em pé, em um calor infernal, ela definitivamente riria de tamanho absurdo. No entanto, ali estava ela e para seu completo choque: sentia-se realizada.

Naquele momento, Alice estava feliz com Bruna em seus braços. Apesar do som alto, ela conseguia ouvir perfeitamente a sua voz cantando as músicas com uma emoção tão linda que Alice focou naquele som e nos cabelos que roçavam em seu rosto quando a cabeça de Bruna ia para trás em sua entrega total àquelas musicas. Perdida naquelas sensações, Alice constatou que estava gostando. De tudo. De ter Bruna nos seus braços, do show, até das músicas mesmo jurando que odiava pagode. Ela até se pegou cantando alguns versos que sabia de cor de tanto ouvir com Bruna. Ela estava feliz! Não apenas naquele momento, mas há um tempo. Há alguns meses. Ela estava tão feliz! E ela não precisava pensar muito fundo para descobrir que o motivo era aquela mulher nos seus braços. Porque ela a amava. Alice amava Bruna. E aquela realização veio tão forte e tão intensa que Alice precisou abraçar Bruna mais forte para o seu mundo parar de girar. Como se ela sentisse o turbilhão de pensamentos que ocupavam a sua mente, Bruna se virou, abriu aquele sorriso perfeito e a beijou. Aquele beijo. Ele que começou tudo isso! E exatamente como sempre acontecia, aquele beijo mágico fez desaparecer todas as preocupações da cabeça de Alice. De repente ela só tinha espaço em sua cabeça para Bruna, somente Bruna e o amor que definitivamente sentia por ela.

Fim do capítulo