Boa tarde, leitoras!
Esse capítulo tá muito especial, hein? Espero que gostem!
Boa leitura, e não deixem de comentar!
Capitulo 38 – Ela não é a minha tia
Sofia
– Mãe!? – Bato na porta, desesperada, tentando processar o que está acontecendo, tentando processar que isso não é um sonho, que é real. – A Júlia não fez nada, mãe... – Quer dizer, não é bem verdade, se fosse, nós não estaríamos assim agora. Ai, Sofia, foco, você não está ajudando. – Fui eu quem comecei com tudo... – Digo, tentando segurar a vontade de chorar que já estava começando a subir pela minha garganta.
– Cala a boca, Sofia Maria! – Minha mãe grita do lado de dentro.
– Você não está ajudando, Sofi. – Ouço a Júlia murmurar.
– Eu sei. – Deixo escapar com frustração, do outro lado da porta.
– Onde ela está? – Escuto sua voz, acompanhada por passos na escada, e quase não acredito nos meus próprios ouvidos.
Deus, que pesadelo!
– Clóvis? O que você... O que você está fazendo aqui? – Me enrolo nos lençóis com um pouco mais de esmero, por reflexo.
Eu estava de calcinha – agradeço agora a Júlia por nunca me deixar ficar completamente nua por muito tempo, dizendo que pegaríamos bactérias ou qualquer coisa parecida – mas ainda assim, me sentia completamente exposta na frente dele.
– Eu tentei fazer com que ela não viesse até aqui, mas você deve conhecer sua mãe muito melhor do que eu... – Ele diz, parando ao meu lado.
Infelizmente, sim, eu conhecia.
– Você contou pra ela? Depois de uma semana? – Pergunto, incrédula. – Eu não acredito!
Eu sabia que o Clóvis não prestava, nunca prestou, mas eu também não pensei que pudesse jogar tão baixo.
– Eu não teria dito nada se seu pai não tivesse aparecido e vindo nos acusar, como se você e a Júlia fossem o exemplo de integrantes da família, honestas e perfeitas, vítimas das circunstâncias... – Ele ironiza, com o seu humor ácido.
Hã??
Minha nossa, será que eu tinha fumado crack e tinham esquecido de me avisar? Porque nada disso estava fazendo sentido algum.
Nada.
– Eu não acredito nisso... – Ouço minha mãe começar, atrás da porta de madeira. – Como você pôde, Júlia? Como pôde fazer isso comigo? Como pôde me trair dessa forma? Eu te coloquei dentro da minha casa, da minha família! Eu confiei em você... merd*... Você nunca foi esse tipo de pessoa! – Ela cospe aquelas palavras, e pelo seu tom, eu sabia muito bem o que ela queria dizer com “esse tipo de pessoa”.
Sabia porque ela tinha me tratado de uma forma bem semelhante, anos atrás, se referindo a mim da mesma maneira.
– Eu nunca... – A Júlia começa, mas só pelo seu tom de voz percebo o quanto está nervosa. – A Sofia foi a pri... – A sua frase é interrompida por um som de algo se quebrando, como um prato quando se espedaça no chão, ou algo muito semelhante.
– Cala a boca, porr*! – Minha mãe rosna como cachorro brabo.
– Mas eu não queria que ela tivesse vindo pra cá desse jeito... – O Clóvis continua no meu ouvido, como um mosquito irritante que não te deixa dormir. Por um breve momento, tinha me esquecido da sua presença. – Mas a Júlia também não deveria deixar a casa toda aberta...
– Que barulho foi esse? – Pergunto, preocupada, me referindo ao estrondo anterior, é claro, já que os rosnados da minha mãe eu reconheceria até de olhos fechados, que é basicamente como me sentia agora.
– A sua mãe tem uma péssima pontaria, e está arremessando almofadas. – Percebo quando a Júlia usa um tom sarcástico para lidar com tudo aquilo. – Você me deve um abajur novo. – Eu não tive certeza se aquela última frase tinha sido para mim ou para a minha mãe.
Mas não importa, porque escuto um som abafado que interrompe qualquer pensamento.
– Ai, porr*! – A Júlia reclama do outro lado.
Acho que minha mãe tinha acertado dessa vez.
– Mãe... por favor, me deixa entrar... – Peço, quase chorando, de pura impotência, por não poder fazer nada.
– Você vai ficar aí atrás da porta?! – Ela pergunta, transtornada. – Eu quero que você vá pra casa agora!
– É claro que eu vou. – Ficar atrás da porta, óbvio. – Eu não vou deixar você fazer nada, mãe! E além disso... minhas roupas estão aí dentro, esqueceu?
Ela ruge como um urso furioso.
– Sofia, você precisa fazer alguma coisa, eu nunca vi a sua mãe desse jeito. – A Júlia fala, nervosa.
Eu queria poder dizer a mesma coisa, mas eu já tinha visto a minha mãe descontrolada inúmeras vezes, claro que... não sob as mesmas circunstâncias.
– Isso porque você ainda não viu nada! – Nesse momento, ouço o primeiro tapa, e aquilo me deixa verdadeiramente assustada.
– porr*, faz alguma coisa! – Rosno para o imbecil do meu lado.
– Marta, para com isso... – Diz enquanto bate na porta. Ele tinha mais força do que eu, então o som sai mais alto do que todas as minhas tentativas anteriores. – Abre essa porta, também não precisa ser desse jeito...
– Faz ela parar, eu... eu já volto. – Saio correndo pelo corredor, sem nem acreditar que estava pedindo ajuda a esse idiota.
Vou atrás da minha mochila, que tinha ficado lá embaixo, e começo a fuçar nela, às pressas, a procura do meu celular. Aquilo era com certeza a última coisa que eu queria fazer, ainda mais depois de tudo o que meu pai tinha passado, mas não conseguia pensar em mais nada.
– Pai?! – Quase grito, quando ele atende no primeiro toque, um misto de angústia e alívio, mas tento manter a voz controlada. – Você tá por perto? Aconteceu uma coisa... aqui na casa da Júlia... a mamãe tá maluca... ela trancou ela e a Júlia dentro do quarto e eu não sei mais o que fazer... – Preciso me esforçar para conseguir terminar de falar.
Depois de ter tido provavelmente a maior reação "mas-que-merd*-é-essa?" da história, do outro lado da linha, meu pai decidiu atender ao meu chamado, dizendo que já estava a caminho.
Subo para o primeiro andar na mesma velocidade em que desci, apenas para constatar que o idiota não tinha conseguido tirar a minha mãe de lá. O que não chega a ser exatamente um problema, já que em menos de uns cinco minutos a gente escuta um carro estacionar na frente da casa e a porta bater com certa urgência.
– O que aconteceu? – Meu pai olha para nós dois assim que entra na casa e nos encontra descendo as escadas. – A Júlia já ficou sabendo? É isso?
A Júlia já ficou sabendo? Mas de que porr* ele estava falando?
Ele olha para nós dois, mas, como não recebe nenhuma resposta, nem minha, nem dele, apenas continua.
– Você já causou problemas demais, não acha? – Diz, se direcionando ao Clóvis. – Pode ir embora, daqui em diante eu assumo.
– Tudo bem, acho que você e a sua filha têm muito o que conversar... – Ele diz, se direcionando para a saída.
– Babaca. – Xingo, um pouco antes dele começar a atravessar o jardim. – Pai... Eu não tô entendendo nada... – Olho para ele, confusa.
Ele sabia que o Clóvis estava aqui? Como? Então ele também já estava sabendo ou...
– Eu acho que eu também não... – Ele me olha, igualmente perdido. – Por que você está com esse lençol, Sofia? Você estava tomando banho? Teve algum vazamento?
Sim, o da minha vida privada, que morria ali, é claro, junto com a minha dignidade.
– Eu acho melhor o senhor subir lá em cima, pai. – Mudo de assunto. – Você precisa tirar a mamãe de lá... Isso é, se você conseguir. – Acrescento.
Ele olha para mim com um pouco mais de atenção, enquanto estamos subindo as escadas, e é como se alguma chave tivesse virado dentro da sua cabeça.
– Sua mãe já viu isso aí? – Ele olha para a pontinha do meu lençol, a que tinha sujado de sangue, e eu me encolho.
Mas que merd*.
Apenas nego com um rolar de cabeça, envergonhada.
– Então não deixa que ela veja. – Ele me aconselha, antes de ir em direção a porta, e de eu enrolar e dobrar o lençol ao meu corpo de um modo que a parte manchada ficaria para dentro.
– Marta? – Meu pai a chama depois de dar três batidas na porta.
Eu não sei o que aconteceu, ou como ele tinha conseguido fazer aquilo, mas depois de alguns segundos, ouvimos a porta se abrir.
A primeira coisa na qual eu me atento é na Júlia, e em como ela parece assustada, em um cantinho do quarto, agora usando uma de suas blusas curtas, além da calcinha e do lençol que a cobria parcialmente. Seus olhos estavam vermelhos, assim como suas bochechas, e aquilo quebra o meu coração.
– É isso mesmo o que você está pensando. – Minha mãe olha para o meu pai, enfurecida, e depois volta a sua atenção para nós duas, lançando um olhar de mim para a Júlia, como se desse ênfase para as nossas roupas íntimas e os lençóis envolta dos nossos corpos. – A sua querida filha... – Ela não consegue dizer as palavras, ainda bem. – Com a própria tia!
– Ela não é a minha tia, porr*!
– Eu não sou a tia dela!
As nossas falas saem juntas, como em um grito de guerra, reafirmando em forma de palavras tudo o que tínhamos vivido e sentido, juntas.
– O que vai fazer com isso, Marta? – Meu pai diz retirando uma almofada de sua mão.
– O que você acha?! – Ela grita em resposta.
– Olha, eu não sei o que aconteceu aqui, mas é melhor irmos para casa, está bem? Para acalmarmos os ânimos. – Meu pai diz, calmamente.
Eu não sei como ele conseguia manter essa calma, ainda mais convivendo todos esses anos com a minha mãe. Parecia um buda.
– O que você diz, Júlia? Por que não explica para o meu marido, que sempre foi como um pai pra você... O quanto você foi baixa, imunda mesmo... – Minha mãe encena como se estivesse estreando sua peça de teatro.
– Marta, eu posso... eu... você precisa entender que... – A Júlia tenta se aproximar dela, mas a sua fala é interrompida por um novo tapa em seu rosto. Dessa vez, minha mãe usa o dorso de sua mão, lhe atingindo em cheio com aquele maldito anel de formatura.
– Eu não preciso entender nada, querida. – Ela despeja as palavras nela, como se fosse nada. – Não é preciso ser muito inteligente para saber que você é uma puta. – Minha mãe a olha de cima a baixo, conforme a Júlia desvia dos seus olhos cruéis, fitando o chão e colocando a mão no rosto no mesmo instante que começa a sangrar. As minhas lágrimas escorrem na mesma velocidade que as dela, como se estivéssemos conectadas pelas mesmas glândulas lacrimais ou algo assim. – E se você tentar alguma coisa com a Sofia de novo, eu... – Ela avança novamente, mas é impedida de fazer qualquer coisa.
– Vocês estão loucas?! – Meu pai intervém, sua voz alterada pela primeira vez em... anos. – Agora já basta, Marta, vamos embora.
– Não ouse chegar perto da minha família... nunca mais, entendeu? – Aponta o dedo para ela e sai transtornada do quarto enquanto fico ali, paralisada.
Tenho vontade de ir até ela imediatamente, de segurar o seu rosto, enxugar as suas lágrimas, mas algo dentro de mim me detém e permaneço ali, estática.
– É melhor nós irmos atrás dela. – Meu pai coloca a mão sobre o meu ombro, e aquela simples ação me desperta para a realidade.
– Pai, eu não posso, eu... – Digo, olhando para Júlia, consternada.
Eu precisava ficar. Não poderia deixá-la aqui sozinha nesse estado, poderia?
Meu pai olha para ela e os dois trocam um olhar silencioso que não consigo compreender de imediato.
– Leva ela pra casa, Seu Olavo? Por favor. – Ela pede, quase suplicando, ainda com a mão no rosto, cobrindo a agressão da minha mãe, um pouco de sangue ainda visível por debaixo dos seus dedos.
– Vem, filha, vamos embora. – Ele volta a colocar a mão sobre o meu ombro, quase como se quisesse me transferir um pouco de força para sair dali. – Vocês conversam em um outro momento, certo? – Ele olha para nós duas, se certificando.
Então me detenho apenas em pegar as minhas roupas que estavam no chão, vesti-las rapidamente e lançar um olhar para Júlia, como um pedido de desculpas silencioso.
De certa forma, se ela estava passando por aquilo agora, era a minha culpa também. Se eu tivesse me controlado, se não tivesse insistido...
– Eu não queria que fosse assim. – É tudo o que digo antes de sair dali.
A voz engasgada, nossos olhos mal se encontrando. Acho que se eu olhasse em seus olhos agora, desabaria nesse instante.
Eu só espero que ela me perdoasse, por ter uma mãe assim e... por todo o resto também.
xxx
Se o espetáculo na casa da Júlia tinha sido ruim, a volta para casa conseguiu ser ainda pior. Fomos os três em silêncio, quero dizer, minha mãe chorou basicamente durante todo o trajeto, só parou para murmurar mais de uma vez “minha menininha...” – eu não sei se ela estava se referindo a mim ou a Júlia, sendo que qualquer uma das duas opções seria super bizarro – e para me dizer, gritar, na verdade, que eu estava de castigo para o resto da minha vida.
Alguém avisa que eu já tenho dezenove anos e que se ainda estava morando sob o mesmo teto que ela era devido ao fato de eu não querer deixar meu pai sozinho com uma maluca de alto risco? E também ao fato de eu ainda não conseguir me virar sozinha com o salário que eu ganhava, é claro.
Tive vontade de responder dizendo que já era um castigo tê-la por perto, mas resolvi ficar em silêncio. Ou simplesmente não tive forças para dizer coisa alguma. Parecia que a minha alma, ou então, todas as minas forças, tinham ficado lá, com ela, assim como os meus pensamentos. Como ela estaria agora? Provavelmente em pedaços. Se ela já tinha ficado daquele jeito quando o Clóvis descobriu e ameaçou contar tudo para minha mãe... Eu queria nem pensar como ela estaria se sentindo agora.
Mesmo com a porta fechada, e fones de ouvido, eu ainda podia ouvir os gritos da minha mãe, vindos do outro quarto. Depois de algum tempo os berros pararam e, depois de um tempo maior ainda, ouço o meu pai bater na porta do meu quarto:
– Será que eu posso falar com você? – Ele pergunta, com a porta entreaberta.
– E eu tenho escolha agora? – Retruco, sem muita energia.
Diante da minha resposta, ele entra e se senta ao meu lado na cama. Pega uma das minhas almofadas da Taylor e a olha fixamente por um tempo.
– Eu não sei nem como te falar isso, mas... sua mãe está achando que a Júlia se aproveitou... – Ele hesita. – Se aproveitou de você. – É a primeira coisa que ele me diz, parecendo ser a coisa mais urgente para ele naquele momento.
– Quê? – Era só o que me faltava, acabo deixando escapar um riso nervoso.
A Júlia se aproveitando de mim? Era mais fácil o mundo inteiro se aproveitar da Júlia – que era basicamente o que já acontecia – do que ela se aproveitar de alguém.
– Pai, eu sou a Sofia Maria, ninguém conseguiria se aproveitar de mim. – Falo afastando os cabelos para trás em um gesto propositalmente exagerado. Aquilo era sério, e eu via medo em seus olhos. Eu só queria mostrar que estava tudo bem, que eu estava bem. – E a Júlia jamais, jamais faria isso. – Acrescento para confortá-lo, meu tom ficando mais sério.
Ele não acreditava realmente naquilo, acreditava?
– Foi o que eu pensei. – Me diz, aliviado. – Sua mãe tomou alguns calmantes... Ela está um pouco menos nervosa agora.
Só se fosse calmante para cavalos.
Se bem que acho que nem assim.
– Aposto que sim.
Só que não.
– Sofia Maria... – Pronto, lá vem. – Eu te compreendi, quando você ficou com a Karina, e com as outras meninas que vieram depois. Eu e a sua mãe te apoiamos. – Não tinha sido bem assim a princípio, principalmente por parte da minha mãe. Ela nunca me apoiou de verdade, só foi obrigada a me manter em casa, graças ao meu pai e a Júlia. – Mas isso é... – Ele não termina a frase.
– Eu sei, é um pouco demais para uma cabeça limitada. – Ele me olha com ar de reprovação. – Foi um pouco demais pra nós duas também, quero dizer, quando a gente se deu conta, quando nos permitimos nos dar conta, do que estávamos sentindo. Mas depois, quando paramos para pensar que aquilo fazia muito sentindo e explicava muita coisa, não pareceu mais assim tão estranho, na verdade, foi reconfortante... – Digo me lembrando de tudo. – Reconfortante saber que não estávamos sentindo aquilo sozinha... Que não estávamos enlouquecendo... – Deixo escapar um sorriso, perdida em pensamentos.
– Eu já vinha desconfiando... há algum tempo. – Ele confessa, de repente.
– Já?
– Não era muito difícil de desconfiar, na verdade. – Ele tenta sorrir. – Era só ter a mente um pouco aberta e se atentar para a forma com que se olhavam... Mas eu pensei que se fosse algo mais sério, vocês iriam me contar, você ou a Júlia, ou as duas. – Ele reflete por um momento. – Só que nenhuma das duas me contou... então comecei a pensar que fosse coisa da minha cabeça, ou então, não sei, uma dessas coisas modernas que acontecem hoje em dia? – Ele dá um meio sorriso, em seus próprios pensamentos. – Você não está fazendo isso tudo só pra provocar a sua mãe, está? – Me pergunta, um pouco mais sério.
– Claro que não! Eu até gosto de provocar, não vou mentir, mas não desse jeito. Não envolvendo a Júlia. Eu gosto dela de verdade, pai, tanto quanto eu gosto de provocar a mamãe. – Disparo, sem pensar muito.
– Uau, você deve gostar dela pra valer. – Dou um meio sorriso e ele me devolve um sorriso de canto de boca.
– A gente não contou nada, porque... – Tinha um milhão de motivos antes, mas agora, depois de tudo, nenhum deles parecia fazer muito sentido. Nenhum deles parecia pior do que a realidade, e eu não sabia mais o que pensar. – A gente ficou com medo. – Decido dizer aquilo. – Que ninguém entendesse... – Me encolho um pouco. – E a Júlia não estava pronta... acho que ela não estava pronta pra um milhão de coisas, mas, principalmente, pra lidar com a mamãe. E acho que ela meio que estava certa, né? – Digo, lembrando do caos e de tudo o que a minha mãe fez ou falou, horas atrás.
Seu rosto vai enrijecendo de novo conforme algum outro pensamento passa pela sua cabeça.
– Você notou que a primeira reação da sua mãe foi te colocar para fora do quarto e confrontar a Júlia?
É claro que eu notei, meu braço ainda estava ardendo do puxão que ela tinha me dado, o que provavelmente nem chegava perto dos tapas que ela tinha dado na Júlia.
Pensar naquilo me faz ter vontade de chorar de novo.
– Ela estava fora de si, pai.
– Por que acha que ela fez isso, confrontar a Júlia e te tirar de cena?
Dou de ombros.
Aquilo tinha sido bem estranho, é verdade. Eu esperava um pouco de tudo, menos essa reação. Não era a mim que ela devia descontar toda a sua raiva? Afinal, a Júlia quem sempre foi a filha preferida (mesmo não sendo); a Júlia quem era a perfeita; que merecia alguém à sua altura, que obviamente não era eu.
– A sua mãe não é um exemplo de mãe, nós dois sabemos bem disso, principalmente no que diz respeito a você, mas, olhando para a forma com que reagiu... – Ele faz uma pequena pausa. – Acho que ela faria de tudo pra te proteger. Te defenderia de um mundo inteiro, se fosse preciso, até mesmo da Júlia.
Eu não sei se aquilo fazia sentido, sinceramente. Acho que minha mãe ficou mais possessa com a Júlia – e não tanto comigo – porque ela já esperava algo assim de mim antes, sempre esperou, mas nunca da Júlia. A decepção tinha sido bem maior por parte dela, justamente pelo fato de a Júlia ser a perfeita, aos olhos da Dona Marta. Mas se fazia bem ao meu pai pensar daquela forma, eu deixaria com que pensasse.
– Vem, vamos descer. – Ele se levanta da cama e meu coração começa a acelerar com a ideia.
– O quê? Você vai me levar para o covil dos lobos? – Ou melhor, da Loba.
Mas que bela ajuda.
– Uma hora ou outra isso vai precisar acontecer, então melhor que aconteça comigo do seu lado, não acha?
Não, não acho.
– O que você quer que eu diga pra ela? – Me encolho um pouco, conforme caminho em sua direção. – Eu não sei o que dizer.
Eu tinha ensaiado isso tantas vezes. Tinha uma lista das melhores frases que eu falaria para ela. Pensei nisso muitas vezes desde que eu a Júlia trans*mos pela primeira vez, mas, a verdade, é que agora tudo parecia diferente. Era real, estava acontecendo, e eu não sei se alguma coisa que eu dissesse traria algum efeito para a minha mãe, provavelmente não. Além disso, eu não consegui dizer nada, pelo menos nada realmente significativo, quando a Júlia mais precisou de mim, por que eu conseguiria agora?
Me sentia fraca, sem forças. Inútil.
– Só diga a verdade. Seja sincera com a sua mãe da mesma forma que você é comigo, ao menos uma vez. Não pode ser tão difícil assim. – Ele tenta me convencer, com um sorriso.
Mas parecia que estávamos falando de pessoas diferentes ou, então, que ele não conhecia a minha mãe de verdade, pelo menos, não da forma que eu conhecia.
– Eu tenho outra opção? – Pergunto, relutante.
– Eu acredito que não. – Ele sorri, gentil, enquanto me guia para fora do quarto em seus braços.
E é dessa forma que descemos as escadas.
Juntos.
– O que essa garota está fazendo aqui em baixo? – Minha mãe está parada entre a sala e a cozinha, bebendo algo que parece água com mais comprimidos, deixando o copo em cima da nossa ilha.
Oh, mas que bela recepção.
– Eu deixei que ela descesse. – Meu pai intercede. – Vocês têm muito o que conversar. – Minha mãe faz uma cara de contrariada, mas fica em silêncio. – Sofia, o que você queria dizer para a sua mãe? – Ele resolve intervir mais uma vez, notando o silêncio desagradável que tinha se formado, pesando todo o ambiente.
Como eu não tinha outra escolha, decido começar. Pelo menos assim aquele episódio de tortura acabaria mais rápido.
– Mãe, o que eu sinto pela Júlia...
– Vocês só podem estar querendo me matar! – Ela se contrai inteira e eu juro que fosse convulsionar ou qualquer merd* do tipo.
– Por favor, Marta, ouça o que a nossa filha tem pra falar. – Meu pai lança um olhar para mim, como se quisesse me encorajar.
– Eu não fiz isso para te provocar, que fique bem claro, tá legal? Nem tudo gira em torno de você, Dona Marta. – Com o canto de olho, vejo o meu pai me recriminar com o olhar. – O que eu estava dizendo é que... o que eu sinto pela Júlia é de verdade. Eu gosto dela de verdade. – Digo cada palavra, lentamente, como se ela tivesse uns quatro anos. – Eu sei que é difícil pra você entender... – até porque eu não sabia até que ponto minha mãe já tinha realmente gostado de alguém que não fosse ela mesma – mas já faz muito tempo que a nossa relação não é mais de madrinha e afilhada, ou de tia e sobrinha... Nunca foi sobre você... Eu e a Júlia sempre fomos amigas, bom, no meu ponto de vista, e então... se tornou algo maior. Eu não tive culpa, e muito menos a Júlia... – Termino de dizer, por fim.
– Pelo amor de Deus! Se não existisse o fato dela ser a minha melhor amiga, madrinha do seu irmão e a sua... quase a sua tia, o que não é verdade, porque existe, ainda assim, Sofia Maria, a Júlia teria dezessete, DEZESSETE – sim, eu já ouvi, porr*. – anos a mais do que você. Pelo amor de Deus!
– Pensa que poderia ser pior, ela poderia ter a sua idade. – Retruco, furiosa, e minha mãe me olha como o próprio demônio Pazuzu nessa hora, sem exageros.
– Sofia. – Meu pai me repreende.
– O quê? – Pergunto baixinho. – Eu só estou dizendo que... a Júlia também é dezessete anos mais nova do que você, mãe, e isso não te impediu de ser amiga dela. – Tento dar um contorno para a situação.
– A Sofia tem razão. – Meu pai intervém.
Bingo.
Minha mãe o fuzila com os olhos.
– Da mesma forma que ela ser dezessete – faço um tom exagerado, propositalmente – anos mais velha do que eu, não impediu que eu me tornasse amiga dela, ou que me apaixonasse...
Se faz um silêncio.
– Eu acredito na Sofia. Ela está falando a verdade.
– Verdade ou não isso está errado, merd*! – Ela grita. – E não vai acontecer!
Já aconteceu?! Tipo, mais de uma vez? Em todos os lugares possíveis e inimagináveis?
– Você não pode me impedir! Não pode me trancar aqui pra sempre! Eu sou maior de idade, eu já trabalho e assim que conseguir juntar dinheiro eu saio daqui, pode apostar! – Grito para ela, a raiva se apossando de cada parte do meu corpo.
– Tanto posso que eu vou! E você não tem esse dinheiro ainda então se não subir para aquele quarto agora...
– Nem desperdice ainda mais o seu tempo. Eu já tô indo, só porque simplesmente não aguento ficar nem mais um minuto no mesmo ambiente que você. – Jogo as palavras, enfurecida. – Isso realmente foi uma ótima ideia. – Olho para o meu pai com indignação nessa hora.
Com minha mãe não existia diálogo e eu sabia muito bem disso. Só o meu pai que parecia não saber.
xxx
– Ela me odeia. – Digo assim que meu pai abre a porta do meu quarto novamente, depois de um pouco mais de trinta minutos que eu tinha voltado aqui para cima.
– Não é verdade. – Ele volta a se sentar do meu lado na cama. – Sua mãe está nervosa, mas... vai melhorar. É só lembrar de como foi com a Karina.
Tinha sido péssimo, mas ele nunca iria saber o que foi passar por tudo aquilo, estando na minha pele.
– Isso não ajuda. A Karina não era a melhor amiga da mamãe, ou dezessete anos mais velha. – Friso bem aquilo.
– Não vai ser da mesma forma, mas sua mãe chega lá, você vai ver. – Ele diz, calmamente, enquanto me curvo um pouco na cama e acabo me sentindo dolorida lá embaixo.
Ótimo, mais aquilo para lidar, e sozinha.
Eu não tinha mais sentido dor, mas agora, depois de tudo, é como se estivesse doendo umas dez vezes mais, como uma lembrança de algo que eu nunca mais poderia me esquecer.
– Pai, eu e a Júlia, nós... – Fico tentando pensar em um jeito mais fácil de dizer aquilo, só que não tinha jeito fácil. – Eu... eu quis perder a minha virgindade com ela. – Não, não era exatamente do que se tratava. Eu não me sentia virgem desde a primeira garota com quem transei, mesmo que nem tivesse rolado nenhum tipo de penetração na época. Mas como explicar algo assim para o seu pai? Exatamente... – A minha virgindade heteronormativa, digamos assim. – Invento aquilo de última hora, tentando fazer graça da minha própria situação de merd*.
– Então aquele sangue era mesmo...
– Meu, sim. – Me encolho um pouco, envergonhada. – Eu só queria... eu só precisava contar isso pra alguém, me desculpa... me desculpa se é demais pra você. – Começo a chorar.
– Ei... – Ele levanta o meu rosto para olhar em meus olhos. – Você é a minha filha querida, Sofia... e eu te amo. Nada do que envolver você vai ser demais para mim. Nunca, entendeu? – Seus olhos amendoados preenchem o meu campo de visão, e eu quase me sinto segura, como se nada fosse capaz de me atingir. – Fico feliz que tenha me contado.
Mas não era verdade, meu pai não podia me proteger, não de tudo.
– Eu estou com tanto medo... – Abraço ele, bem forte. – Com tanto medo de ter acabado com a nossa família, pai. – Desabo mais uma vez.
– Você não acabou com nada, Sofia... E a nossa família não é tão frágil assim, vamos passar por isso.
Ele estava errado. Tudo o que envolvia a minha mãe se tornava frágil demais, quebrável, e a nossa família ainda era composta por ela, querendo ou não.
– De qualquer forma... Já teríamos que passar por algumas coisas, com ou sem essa história entre você a Júlia. – Eu levanto o rosto do seu ombro.
– Do que você tá falando? – Enxugo algumas lágrimas, olhando-o atentamente.
– A sua mãe não queria que eu te dissesse, e na verdade, eu também não... Não se ela fosse te contar primeiro, mas como já vi que isso não vai acontecer...
Me contar? Me contar o quê?
– É sobre você e a mamãe, não é? – Pergunto. – O casamento de vocês não vai bem, eu sei.
– É claro que você sabe. – Ele tenta ensaiar um sorriso para mim, que acaba se perdendo no meio do caminho. – Você sempre foi uma garota inteligente. – É a minha vez de tentar sorrir.
– Eu já vinha desconfiando há algum tempo, mas, de umas semanas pra cá, começou a ficar cada vez mais gritante. – Digo me lembrando da noite em que ele quase me pegou na piscina com a Júlia, e do dia seguinte, quando descobri que ele tinha passado a noite no sofá.
– É... Você está certa, mas... O que eu queria mesmo te contar, é que a sua mãe não apareceu na casa da Júlia por acaso.
– É claro que não... Aquele idiota contou pra ela... O Clóvis já tinha nos visto juntas, no aniversário da Júlia, e ele se achou no direito de tirar o poder de escolha da gente, principalmente dela. – Digo, ainda bastante ressentida.
– Na verdade, ele contou para a sua mãe, porque... eu peguei os dois juntos aqui em casa. – Meu pai termina de dizer aquilo conforme olho para ele, incrédula, tentando processar as palavras.
– Pegou os dois? – Repito aquilo. – Como...
– Mais ou menos da mesma forma que sua mãe encontrou você e a Júlia.
– Como ela pôde fazer isso? Eu não... Como ela pôde ser tão baixa... E o Clóvis? Como ele teve coragem de fazer isso com a Júlia?
Tudo para atingi-la?
– Foi mais ou menos o que eu disse, assim que vi os dois... Mas é claro que defender a Júlia só deve ter feito o Clóvis querer entregá-la de vez. – Ele se perde em pensamentos. – Na verdade, eu nem sei como, ou por qual razão... mas ele me esperou sair de casa para só depois contar para sua mãe... – Olho para ele, tentando absorver ao máximo todas as informações. – Você me ligou alguns minutos depois de termos discutido e eu ter saído de carro, para pensar... Eu ainda estava por perto quando recebi a sua ligação. – Ele explica.
– Há quanto tempo isso vem acontecendo? – É a primeira coisa que penso em perguntar, depois de ouvir tudo.
Porque definitivamente não fazia o menor sentido. A minha mãe empurrava o Clóvis para a Júlia enquanto dava para ele? É isso?
– Sua mãe me disse que o Clóvis foi procurá-la no início dessa semana, mas não entrou em tantos detalhes... – Ele se limita a dizer.
Aquilo – junto com a camiseta polo que eu tinha visto em baixo da escada, no meio dessa semana – explicava um pouco as coisas, mas não deixava tudo menos perverso.
– Eles nem se gostam... – Não poderiam se gostar, poderiam? – Eles só se usaram, isso é tão...
Eu ia dizer nojento, mas era muito pouco para descrever algo assim.
– Não é da nossa conta, filha.
Não é da nossa conta?
Então por que diabos o que eu tinha com a Júlia tinha que ser da conta de todo mundo?
– Meio que é, né pai? Pelo menos da sua. – O que meus pais sentiam de bom um pelo outro (se é que um dia isso já aconteceu) tinha acabado há muito tempo, ok, mas minha mãe ainda continuava casada com ele. Não deveria ter pelo menos um pouco de respeito?
E como ela se achava no direito de trazer o Clóvis para dentro da nossa casa?
– É... toda a consideração que eu tinha por ela definitivamente acabou ali, porque eu esperava que pelo menos ela fosse um pouco mais honesta, ou sincera... Mas o nosso casamento já estava agonizando há um bom tempo, filha... Acho que ela acabou colocando um ponto final por nós dois.
Queria ter um pouco dessa paciência e sabedoria do meu pai, mas acho que jamais teria.
– Espera... – Digo me dando conta de uma coisa, de repente. – O Clóvis é tipo uns dezesseis anos mais novo do que ela... Isso não faz nenhuma diferença, nesse caso?
– Você sabe que a sua mãe é hipócrita quando quer, não sabe? – Tipo, sempre? – Mas ela vai enxergar, querida, e quando isso acontecer, essa tempestade toda vai passar...
– Algumas coisas talvez passem, sim, mas nem tudo. – Algumas coisas tinham se quebrado depois de hoje, e eu não sabia até que ponto poderiam ser remendadas de novo. – Eu não quero perdê-la. – As lágrimas escorrem pelo meu rosto.
– Eu sei, querida. – Ele sabia de quem eu estava falando, não tinha uma segunda opção.
– Quando? – Ele me olha, confuso com minha pergunta. – Quando isso vai passar? – Pergunto, secando algumas lágrimas.
Ele sorri como se eu tivesse tido algo engraçado.
– Vamos dar tempo ao tempo, hum? – Ele passa a mão na minha cabeça. – Um dia de cada vez.
“Um dia de cada vez.”
Me agarro àquilo como se não tivesse me sobrado mais nada, e meio que não tinha mesmo, a não ser esperar.
xxx
Viver aqueles dias seguintes foi uma verdadeira tortura.
O pior era ver a Júlia me ignorar dia após dia. Ela não respondia as minhas mensagens, ou ligações. Eu tive vontade de ir atrás dela inúmeras vezes, mas me contive, quer dizer, papai me conteve. Ele disse que eu deveria dar espaço a ela. Algumas vezes cheguei a pensar que meu pai já tinha passado para o lado sombrio da força e que aquilo tudo era um plano arquitetado pela minha mãe para me manter longe da Júlia. Mas depois eu me lembrava que conhecia muito bem o meu pai, e que ele jamais faria isso. Mas a verdade é que eu já estava enlouquecendo nessa escuridão de incertezas, sem saber...
O que estava acontecendo com ela?
Fim do capítulo
Boa tarde, Sojulovers do meu coração!
Falando em coração, como está o de vocês? kkkkk (rindo de nervoso)
Entãooo, quem falou que "a semente que eu tinha plantado" no início do capítulo anterior, tinha sido sobre a camiseta que a Sofia encontrou ser do Sr. Perfeito, acertou!
Mas, vamos do início: O que acharam do capítulo e desse momento tão esperado?? Foi como vocês imaginavam? Ou muito diferente??
O que acharam das atitudes de todos os personagens?
E sobre a frase que deu origem ao título da história: "ela não é a minha tia"? Imaginavam que seria nesse contexto? E que a Sofia diria ela para a Marta?
Eu resolvi fazer o desdobramento desses embates/conversas finais por etapas, então, aguentem a ansiedade! Posso imaginar que vocês estejam esperando que a Júlia converse com a Marta, que a Sofia converse com a Júlia, que o Clóvis e a Júlia tenham uma conversa e tudo mais...
O que posso dizer é que vocês verão sim o desenrolar de todos esses embates!
Diante disso, o que acham/esperam que a Marta vai falar para Júlia, estando um pouco mais calma?
Teorias? Suposições do que vem por aí? Alguém tem??
Ainda temos uns 7 capítulos pela frente, e espero que fiquem comigo até o final, hein?
E não esqueçam de favoritar a história!
E de me favoritar como autora!
E de comentar!
Como vocês já sabem, leio todos os comentários e fico extremamente feliz com cada um deles, com todas as teorias e por todo o carinho. Além de ser, de fato, o melhor termômetro para me ajudar a saber como a história está chegando para vocês!
Mais uma vez, obrigada por estarem comigo durante todo esse tempo! De verdade mesmo!
E obrigada pelas leitoras que estão chegando agora!
Obrigada pelos comentários, pelo engajamento, pelo carinho e por tudo!
Então é isso, até o capítulo 39!
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tayl0rmaniac4
Em: 29/09/2024
é normal sentir vontade de chorar pela Julia e pela Sofi?
gente, eu esperei a semana toda que agonia AAAAAAAAAAA to nem respirando direito
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S2 jack S2
Em: 29/09/2024
Eu não me surpreendi com a atitude da Marta quando soube das meninas. Agora pegar o Clóvis? Gzus!!! Que hipocrisia...
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