capitulo oito: a conversa
Desde que finalizamos nossa trans*, estamos há cerca de meia hora em silêncio. Com isso, pude observar o quarto de hotel que Bia estava hospedada, o ambiente que foi testemunha do nosso próprio TBT.
O quarto era elegante, a cama king size estava impecavelmente arrumada quando cheguei, mas agora… estava completamente bagunçada, testemunha da loucura que acabamos de fazer ali. A cama king era pequena demais para comportar duas pessoas com um passado tão amargo. As almofadas eram verde-escuras, o único toque de cor no ambiente, tirando o verde musgo da parede, que criava um ambiente acolhedor, mas neste momento eu não me sentia nada acolhida. Eu me sentia… pequena.
A luz amarela dos abajures em cima da mesa de cabeceira laterais à cama criava um contraste estranho com a tensão entre nós. Elas estavam tentando suavizar o que era impossível ser suavizado.
Perdida também nós próprios pensamentos, abraçada na cama comigo como fizemos tantas vezes na casa da sua mãe quando ela saía, ela se levanta devagar, como quem tenta sair de um sonho sem acordar e me pergunta se estou com fome. Balanço a cabeça afirmativamente, sem conseguir desviar o olhar que passeia pela sua nudez
Seus seios agora eram maduros, firmes, com certeza havia prótese ali, seu corpo com algumas curvas a mais, seus traços ainda mais marcantes do que quando éramos jovens. Sua pele bronzeada, os cabelos longos e escuros caíam pelas suas costas, ondulados apenas nas pontas.
Ela se movia pelo quarto com uma segurança que me deixava desconfiada, sua postura a fazia parecer decidida do que queria. Ela era, sem dúvida, uma mulher feita. E ainda assim, ali, diante de mim, havia também a mesma Beatriz de antes — só que mais.
Ela veste um robe de cetim e caminha até o celular para pedir algo do cardápio via QR Code. Seus dedos deslizam pela tela com familiaridade.
— Quer alguma bebida? — pergunta.
— Macallan 12.
Ela arregala os olhos e arqueia uma sobrancelha. Um pequeno sorriso irônico escapa, mas logo ela desvia o olhar.
— Que foi? — pergunto.
— Nada... é que o Kevin é muito fã desse whisky. Coincidência você gostar também.
Reviro os olhos, um incômodo crescendo em mim. Sento na cama ajeitando minha postura, minha irritação já exalando.
— No que isso é relevante? Eu acabei de trans*r com a esposa dele, também seria isso uma coincidência? — sorrio, amarga.
Ela suspira e olha para o teto como se buscasse forças ou respostas ali. Não diz nada. O silêncio se estende, denso. O celular dela começa a tocar. Ela me lança um olhar como se dissesse: “preciso atender, desculpa”. Pega o telefone e vai até o banheiro. Antes de fechar a porta, ouço:
— Oi, meu bem.
A porta se tranca.
Ora, mas o que eu esperava? Beijos apaixonados? Desculpas eternas? Um "eu te amo" depois de tudo?
Você é muito trouxa, Anna.
Levanto e pego meu celular, já indo em direção à porta.
Beatriz aparece de repente e segura meu braço. Vira-me em sua direção e me abraça. Meus braços permanecem imóveis. Não consigo retribuir.
— Por favor, não vai…
Olho pra cima e sinto as lágrimas se formando, mas luto contra elas. Óbvio. Me desvencilho do abraço.
— Por que me chamou aqui? Já não fez o bastante com a minha vida? Quer me usar de novo? Eu não sou um brinquedo, Beatriz.
— Você me deve uma conversa. Eu te pedi uma conversa. Por favor, não vai sem…
— Não vou sem o quê? — corto, ríspida. — Fiquei chocada quando você me mandou mensagem depois do que rolou no banheiro da empresa. A minha empresa! E você, além de ser você, ainda é esposa do meu cliente! Tem noção da gravidade disso?
— É só por eu ser esposa do seu cliente? Eu não significo nada pra você?
— Deveria? Depois de tudo? Sabendo das minhas dores, das minhas inseguranças, do quanto aquilo me destruiu? Você é o pior tipo de pessoa: aquela que finge se importar, suga tudo o que pode e depois joga fora. Como se nada tivesse acontecido.
— Eu não sou assim! — sua voz treme, mas ela se impõe.
— É exatamente isso que você é! Você sempre foi assim! Não pode brincar com os sentimentos dos outros e depois simplesmente seguir em frente como se não tivesse feito nada!
— Pelo amor de Deus, já faz onze anos! Supera, Anna! Você não é mais uma adolescente, porr*!
O sangue ferve. Sinto a raiva subir como um incêndio dentro de mim. Minhas mãos tremem. Respiro fundo. Conto até dez. Me forço a manter o controle.
— Beatriz, não é possível que você seja tão irresponsável emocionalmente. Por que me procurou? Me diz... pra quê?
Ela hesita. Seus olhos se enchem d'água, mas não tenta esconder.
— Achei que você tinha superado... Eu não te procurei. Aconteceu. Quando te vi naquela sala, tão segura, tão... você. Eu quis te reencontrar. Saber se estava bem.
— Você me beijou. Não disse nem "oi". Falou "cala a boca e me beija, Anna". Isso é saber se eu estou bem?
— Eu não sabia o que estava sentindo. Só queria te beijar. Te ter. Ainda não sei o que se passa na minha cabeça…
— Se é que sente algo mesmo — murmuro, encarando-a. — Cê acha que minha vida é um filme? Que pausa e depois retoma de onde parou? O que você sentiu quando me traiu com aquele babaca, na minha frente? No meu aniversário?
Ela engole em seco. Sua expressão muda, como se quisesse fugir.
— Eu não tenho culpa do que seus pais te fizeram passar, Anna — solta, fria.
Aquilo me atravessa. Quase cuspo a resposta:
— Não, você não tem. Mas tinha responsabilidade afetiva! Era minha namorada. Se não me queria mais, era só ter dito! Não precisava terminar de me destruir.
A campainha toca.
Beatriz pisca, confusa. Vai até a porta, hesita antes de abrir.
— Oi! Quem é?
— Desculpe incomodar, senhora. Somos da segurança. Recebemos uma notificação de gritos vindos deste quarto. Está tudo bem? A senhora está em segurança?
— Oh, sim. Eu estava discutindo no telefone. Me alterei um pouco, não vai mais se repetir.
Ela fecha a porta com firmeza e se vira para mim. Seu rosto está corado, um pouco descomposto.
— Senta. Me escuta.
Ela me conduz até a cama. Seus olhos se fixam nos meus. Há uma honestidade ali que eu não esperava.
— Eu sinto muito por tudo. Por tudo mesmo. Eu era idiota, imatura. Eu te feri e isso não vai mudar, eu sei. Mas eu queria te ver de novo. Queria... tentar. Continuar de onde paramos. Eu senti algo quando te vi naquele escritório. Forte. Intenso. Eu mudei. Quero que você conheça essa nova Beatriz. Me dá essa chance?
— Essa nova Beatriz também trai. Você traiu o seu marido comigo. Já esqueceu?
— Eu traí porque percebi que o amor que eu deixei para trás ainda estava ali. E que ele nunca foi embora. Eu vi nos seus olhos, Anna. Você ainda sente.
Fico em silêncio. Baixo a cabeça. As lágrimas caem, discretas, mas insistentes. Odeio isso. Odeio estar vulnerável assim.
— Se eu pudesse escolher entre sentir e não sentir, escolheria não sentir — sussurro.
Beatriz me puxa para um abraço. Seu perfume, quente e envolvente, me cerca. O tempo para. Meu coração bate forte. A razão grita: vai embora, Anna. A emoção sussurra: fica.
Nos olhamos. O beijo vem. Lento. Machucado. Molhado de lágrimas e lembranças
— Me perdoa... — ela murmura, a cabeça baixa, evitando meus olhos.
Eu não tinha superado. E não estava pronta para perdoar.
Beijei sua testa e saí. Ela não me seguiu. E quando saí daquele quarto, só conseguia pensar em chegar em casa e desabar sozinha. Sem plateia. Sem whisky. Sem ela. Só eu e a dor.
Do lado de fora do hotel, o ar da madrugada estava úmido. A brisa do mar trazia um cheiro salgado e frio. Caminhei até o estacionamento tentando lembrar onde havia deixado o carro. Olhei no smartwatch: 2h30. Amanhã estaria fodida no escritório.
Entro no carro, dou partida. A Avenida Atlântica está quase vazia. As luzes dos postes tremulam com o vento. Ligo o rádio. Está tocando “Far Away”, do Nickelback.
'Cause you know, you know, you know I love you I loved you all along And I miss you Been far away for far too long…
(Por que você sabe, você sabe, você sabe que eu te amo, eu te amei o tempo todo, e eu sinto a sua falta, estive longe há bastante tempo)
Finalmente deixo as lágrimas escorrerem, eu tento respirar, mas a música, as lembranças, tudo me atravessa ao mesmo tempo. Alguns flashbacks me invadem: o almoxarifado da escola, nossas risadas intermináveis no recreio, os flertes na biblioteca quando eu a ajudava com alguma prova, os olhos dela brilhando de nervoso quando ia fazer alguma prova e eu passava na sala dela, a olhando pelo vidro. As nossas trans*s em sua casa quando sua mãe saía pra trabalhar… e o dia em que tudo desabou.
Eu estava inconsolável.
Minha respiração falha. O ar parece me faltar e eu não consigo respirar, minhas mãos tremem ao volante. Eu tento puxar o ar, mas eu não consigo. Tem uma pressão absurda no meu peito, como se algo tivesse me esmagando por dentro. Minha visão resolve embaçar e tudo gira. Tento me concentrar na estrada, mas quando chego na curva o carro escapa entre as minhas mãos.
Um solavanco. Estalos. Gritos internos que não saem. Meu corpo gira, gira, gira.
Um barulho metálico e seco. Capoto.
Cinza. Fumaça.
Estava tudo preto na minha vida.
Fim.
Fim do capítulo
Estava com bloqueio criativo, meninas. Desculpa a demora para postar, acho que acabei matando alguém.
Divirtam-se, estou sombria :)
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Marta Andrade dos Santos
Em: 21/09/2024
Na verdade Beatriz é a passagem para outra vida ou espírito da morte.
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nath.rodriguess Em: 05/01/2025 Autora da história
Terapia já