Atenção: O capítulo contém descrições de sintomas de transtornos psicológicos.
Capítulo 16
Na terceira semana desde sua chegada na Europa, Marisa já tinha conseguido achar um lugar ideal para ficar. Um pequeno loft perto de onde estava estudando, não muito grande, nem muito pequeno, ótimo para morar sozinha.
Nada daquilo era novidade para ela, já tinha morado em outros países antes, na adolescência, enquanto fazia um intercâmbio, e depois de adulta, durante uma pós-graduação. Sempre havia sido uma boa experiência, se sentia livre num lugar onde era completamente desconhecida pelas pessoas, ninguém conhecia sua família, sua vida… Para os amigos que fazia, só contava o que queria, omitia algumas coisas e até mentia em outras.
Mas daquela vez era diferente, se sentia presa, aprisionada por uma angústia que dava tréguas durante o dia, mas voltava em dobro pela noite. Tinha a sensação de não ver sentido em nada, não sentir vontade genuína de fazer nada, fazia apenas para cumprir suas obrigações.
Na quarta semana começou a procurar qualquer coisa para preencher o tempo ocioso. Não que fosse muito, já que tinha aulas na parte da manhã e usava parte da tarde para estudar em casa. Apesar de poder trabalhar à distância para o escritório, tinha pedido ao pai para que ficasse totalmente sem obrigações, pelo menos durante os seis primeiros meses. E pediu isso única e exclusivamente porque não conseguiria manter contato com Laila… Na verdade, não saberia como agir com ela, depois de tudo. Como simplesmente mandaria um e-mail falando sobre um processo, como se nada tivesse acontecido? E principalmente, como a esqueceria se tivesse que falar com ela toda semana?
Estava saindo da escola de francês, que tinha decidido se matricular dois dias atrás, quando o celular tocou. Atendeu no momento em que entrou no carro que a levaria para casa:
— Oi, pai.
A voz dele estava séria:
— Como você está?
Respondeu rápido, querendo que ele fosse direto ao ponto:
— Tudo bem.
Como já imaginava, ele realmente não fez rodeios:
— Vou precisar de sua ajuda…
Se preocupou instantaneamente:
— Aconteceu alguma coisa?
Nos milésimos de segundos que esperou até ele responder, pensou mil e uma possibilidades de coisas ruins que poderiam ter acontecido.
— Vou precisar achar um ótimo advogado para ficar na área empresarial. Com você aí estudando e agora a doutora Laila pedindo demissão…
A simples menção do nome dela fez Marisa sentir um frio na barriga. O pai falou mais algumas coisas, mas não conseguiu prestar atenção. Só voltou a respondê-lo quando ele a chamou:
— Marisa?
— Oi…
— Você conhece alguém?
Tentou se concentrar de novo no que ele dizia e respondeu devagar:
— Não… Quer dizer, não sei. Preciso pensar e tentar me lembrar.
Não conseguiria terminar aquela ligação sem satisfazer a vontade de saber dela:
— Mas o que aconteceu? Por que ela se demitiu?
O pai não parecia muito contente em falar sobre aquilo:
— Recebeu uma proposta do Lemos e Cesário… Eu quis cobrir, mas ela disse que não era uma questão financeira…
Marisa entendeu a indignação do pai assim que ele mencionou o nome do escritório — que sempre disputava com eles por bons advogados e pelas causas. Ele já estava quase irritado quando concluiu:
— Não me deu nenhum motivo concreto. Só disse que a proposta foi boa pra ela em vários aspectos.
Depois de tudo que ele falou, a única coisa que quis realmente saber foi:
— Ela já foi embora?
*****
Laila sabia que não seria fácil entrar naquela sala e dizer o que precisava. Mas não era nada que não pudesse lidar.
A secretária autorizou sua entrada e o chefe se levantou assim que a viu:
— Como vai, doutora?
Respondeu o cumprimento e ele fez um sinal para que se sentasse, voltando a sentar na própria cadeira:
— Em que posso ajudá-la?
Ajeitou a postura e o olhou com firmeza:
— Eu vim pedir minha demissão, doutor Adriano.
Viu no rosto dele que o pegou completamente de surpresa. Quando ele voltou a falar, perguntou apenas:
— Por quê? Aconteceu alguma coisa?
Depois que ela, cautelosamente, explicou que tinha recebido e aceitado uma outra proposta de emprego, ele ainda fez várias perguntas. Tentou fazer com que mudasse de ideia ou que dissesse o motivo daquele pedido inesperado.
Laila explicou que não se tratava de uma questão financeira, tampouco do ambiente de trabalho, mas sim de uma questão subjetiva. Havia analisado os prós e contras e chegado a conclusão de que seria uma coisa positiva para ela naquele momento. Obviamente não falou que o motivo maior era que estava tentando superar o fim do relacionamento que tivera com a filha dele. E que desfazer mais aquele elo seria ótimo para alcançar seu objetivo.
*****
Saber da demissão de Laila foi um gatilho para que voltasse a ficar extremamente angustiada durante todo seu dia. O fato dela ainda trabalhar no escritório do pai fazia com que Marisa sentisse que um fio — pequeno e frágil — ainda as mantinha unidas. O pai havia dito que Laila ainda trabalharia até o mês acabar, antes de sair. Se imaginou mil vezes pegando suas coisas e voltando para o Brasil a tempo de encontrá-la, pedir desculpas e fazê-la ficar… Não só no emprego, mas em sua vida.
Contou dolorosamente cada um dos vinte e um dias que demoraram para o fim do mês chegar. Mesmo longe, ficou imaginando como estava sendo o último dia dela, se tinham feito uma despedida e se ela estava feliz com a escolha. No horário do fim do expediente no Brasil, já era noite para Marisa. Estava deitada na cama, comendo compulsivamente uma barra de chocolate inteira, tentando controlar os pensamentos que estavam a quilômetros de distância dali.
O celular apitou, informando uma nova notificação. Pegou o aparelho e abriu a mensagem do pai. O coração doeu, tropeçou, caiu, rolou e se machucou inteiro, ao ver a foto da equipe reunida, com Laila no meio, segurando um buquê de flores. Tinha o sorriso lindo de sempre — que fazia os olhos dela se fecharam um pouco — e os cabelos ligeiramente mais longos do que Marisa se lembrava.
Sentiu seus olhos se encherem de lágrimas, fechou a foto e deixou o celular de lado, sem responder.
*****
Depois que sua saída do escritório já estava acertada, Laila sentiu, nas vezes em que teve contato com doutor Adriano, que o chefe ficou um pouco frio com ela. Mas nos dias que se seguiram ele pareceu ter, enfim, aceitado.
Ficava feliz a cada vez que algum colega ia até ela, dizendo que sua saída era uma perda, mas desejando boa sorte. Considerava sair de um bom emprego com uma boa reputação, e sem nenhum problema, uma grande conquista.
O único embaraço foi quando Edgar foi até a sala dela em uma tarde, levando um contrato para análise. Estava sozinha, Pablo tinha saído para uma reunião. Diferente das outras vezes que ele tinha se dirigido à ela, não fez nenhuma gracinha, sequer foi simpático. Pelo contrário, fez questão de mostrar sua animosidade. Depois que entregou o documento, ele disse antes de deixar a sala, com um olhar e um tom que deixaram claro para Laila que ele sabia sobre ela e Marisa:
— Você fez a escolha certa em sair.
Não foi confortável ouvir, mas também não podia dizer que sentia algum tipo de remorso em relação a ele. Tinha visto, várias vezes, como Edgar tratava Marisa, sem contar as coisas que ela tinha contado para Laila. Não entendia como Marisa ainda se sujeitava a passar por aquilo, mas isso já não era problema seu. Nada daquilo fazia mais parte de sua vida e, em poucos dias, esperava nunca mais revê-los.
No seu último dia, foi recebida por uma surpresa preparada pelos colegas. Fizeram uma despedida, recebeu flores e viu Sônia tentando conter as lágrimas quando a abraçou.
Foi só no fim do expediente, enquanto juntava suas coisas sozinha na sala, que permitiu que os pensamentos buscassem Marisa. Aquele era o adeus definitivo, pelo menos de sua parte, já que ela nunca havia se despedido. Pegou a bolsa e a pequena caixa com seus pertences pessoais. Deu uma última olhada para a sala e depois saiu, deixando ali tudo que viveram e o que poderiam ter vivido juntas.
*****
O primeiro mês no escritório novo passou extremamente rápido, na visão de Laila. A cabeça estava preenchida em tempo integral com a adaptação e o volume de trabalho do qual precisava se inteirar.
Ficou feliz consigo mesma por não ter deixado o fim da relação com Marisa ter parado sua vida. Não que não pensasse nela… Às vezes as lembranças vinham de forma inesperada, avassaladoras, mas não deixava que se instalassem em sua cabeça. Respirava fundo, dizia para si mesma que tinha acabado, e procurava outra coisa para se ocupar. Eram só lembranças. A maioria boa, mas relembrava para si mesma que Marisa nunca deu nenhum sinal de que pretendia ter um relacionamento público com ela, tinha simplesmente sumido, sem dar nenhuma satisfação, e que ficou sabendo por outras pessoas que ela estava morando em outro continente.
O que ainda a incomodava era o fato de Marisa nunca ter a procurado. Nem sequer uma mensagem, mesmo depois de já ter se mudado. Não que esperasse algum tipo de explicação ou satisfação, mas talvez um pouco de consideração pelo que tinham vivido. Não conseguia acreditar que tudo o que compartilharam foi assim tão insignificante para ela.
*****
Aquele mês foi, de longe, o pior para Marisa. Superou até mesmo o primeiro que tinha passado ali quando chegou do Brasil. Mal conseguia se concentrar durante as aulas, à noite tinha um sono agitado, e mesmo tomando remédios para dormir, acordava com frequência no meio da madrugada.
Se um dia quisesse se lembrar de como passou por aqueles trinta dias, jamais conseguiria. Era como um borrão, como se ela não tivesse vivido, mas apenas assistido aqueles dias passarem, pois fez tudo no automático. Passou a tomar remédios também durante o dia e várias vezes foi para a Universidade praticamente dopada. Abandonou as aulas de francês, e depois que chegava em casa das aulas do doutorado, não saía mais. Passou dias fazendo apenas uma refeição de verdade e comendo porcarias. Dobrou a quantidade da medicação por conta própria, querendo ficar inconsciente o maior tempo possível.
Na metade do quarto mês, enquanto estava na sala de aula da Universidade, começou a sentir o coração muito acelerado. As mãos ficaram extremamente suadas e o ar começou a faltar. Queria se levantar e sair dali, mas o corpo não a obedecia. Sentiu uma angustia extrema, apertando fisicamente seu peito, como se algo muito pesado estivesse em cima dela.
Um colega colombiano que estava sentado ao seu lado perguntou se ela estava bem. Não conseguiu responder, o corpo todo estava travado. Gesticulou para ele devagar, tentando dizer que não estava conseguindo respirar. Ele se levantou e pediu ajuda. A aula parou, chamaram uma ambulância e a levaram até um hospital.
Marisa teve a impressão de ver tudo como uma espectadora: As pessoas, a ambulância, a movimentação. Só se sentiu de volta à realidade algumas horas depois, deitada sozinha no leito do hospital. Uma enfermeira veio, conferiu o medicamento e informou que em alguns minutos ela estaria de alta.
Quando chegou em casa, trancou a porta, jogou a chave na mesa e ficou parada, olhando para o vazio. Não estava aguentando mais, só o pensamento de ficar mais uma semana naquele lugar ameaçava desencadear nela toda aquela angústia de novo. Crise de ansiedade, segundo o médico que a acompanhou.
Pegou o celular e ligou para a única pessoa que iria ajudá-la sem questionamentos. Apesar de feliz, a voz dela estava surpresa:
— Doutora Marisa?
Não perdeu tempo se explicando, foi direto ao que precisava:
— Sônia, preciso de um favor… Estou voltando pro Brasil.
Fim do capítulo
Comentar este capítulo:
Joh olliveira
Em: 09/08/2024
Eita que lamentável para Marisa, agora é meio tarde, nessa volta ao Brasil espero que a Laila não seda facilmente as desculpas de Marisa.
Ansiosa pro próximo.
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Marta Andrade dos Santos
Em: 09/08/2024
Agora é tarde Marisa tu não merece a Laila.
AlphaCancri
Em: 11/08/2024
Autora da história
Marisa vai ter que arcar com as consequências dos próprios atos… Será que ela ainda tem chances com Laila?
Marta Andrade dos Santos
Em: 13/08/2024
Espero que não.
Marisa tu é uma bundona.
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HelOliveira
Em: 09/08/2024
Consequências sérias de uma escolha errada, vamos ver como será essa volta da Marisa....
Preciso falar ....que orgulho da Laila, mesmo sofrendo seguiu em frente..
Edgar se achando o último biscoito do pacote
Obrigada autora por essa história maravilhosa, a parte difícil é esperar o próximo capitulo
AlphaCancri
Em: 11/08/2024
Autora da história
Será que isso tudo que ela está passando vai fazer Marisa, enfim, mudar suas escolhas e atitudes?
Laila com uma maturidade emocional que eu queria ter hahah
Eu que agradeço por vocês estarem acompanhando e comentando ;) próximo capítulo na terça.
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AlphaCancri Em: 11/08/2024 Autora da história
Infelizmente ela tá colhendo o que plantou, não é?
Próximo capítulo na terça ;)