Pretérito
Oito anos antes
— Eu vou terminar com o Felipe. — Julia falou olhando para televisão, sem encarar o rosto do primo que estava sentado ao seu lado.
Pedro estava com um pote de sorvete na mão e uma colher na outra. O susto foi tão grande que ele agradeceu por estar de boca vazia, provavelmente ele iria se engasgar com aquela notícia.
— Você o quê? — ele perguntou encarando a prima.
— Vou terminar com o Felipe. — Julia falou tranquilamente e pegou o pote de sorvete, que eles dividiam, da mão do primo.
— O quê? — Pedro perguntou balançando a cabeça ainda sem entender.
— Seu cérebro tá congelado por causa do sorvete? Que lerdeza é essa pra entender? — Julia questionou.
Pedro não respondeu, o rapaz ficou alguns segundos olhando para a televisão sem saber o que dizer.
— O que foi que aconteceu? — ele perguntou depois de um tempo.
— Eu não quero mais namorar ele, só isso. — Julia falou dando de ombros.
— Mas vocês formam um casal tão lindo e eu achei que você gostasse dele, que vocês estavam bem. — Pedro falou pensativo.
— Eu também achei, mas estava enganada.
— Só isso? Simples assim? — Pedro falou incrédulo.
— E você queria mais o quê? — Julia perguntou ainda sem olhar para o primo, ela sabia que ele iria desconfiar daquela história de término repentino, mas ainda não tinha ideia de como explicar sobre o motivo do fim do namoro.
— Olha pra mim. — Pedro exigiu e Julia resistiu por alguns segundos antes de virar o rosto para o rapaz — O que você tá escondendo de mim?
— Nada. O que eu poderia estar escondendo de você? — Julia tentou desconversar.
— Se eu soubesse não estaria perguntando. Desembucha! — Pedro falou impaciente.
Julia se afundou no sofá e ficou encarando o pote de sorvete em sua mão. Ela sabia que não existia nada no mundo que ela não poderia contar para o primo, Pedro era seu melhor amigo, era seu irmão. O problema é que a ruiva não tinha ideia de como falar para ele que estava apaixonada, totalmente perdida de amores, por Manuela.
— Eu não sei o que dizer. — ela falou por fim.
— Porque você quer terminar com o Felipe? Vamos começar por aí.
Julia respirou fundo antes de falar.
— Eu estou apaixonada por outra pessoa, aí eu pensei que era melhor terminar com o Felipe. É isso.
— Outra pessoa? — Pedro falou com um olhar desconfiado.
Julia soltou todo o ar que estava preso nos pulmões antes de falar, era agora ou nunca.
— A Manuela, pra ser mais específica. — ela falou de olhos fechados.
Pedro abriu a boca, mas não falou nada. O rapaz pegou o pote de sorvete da mão da prima, deu uma boa colherada e ficou olhando para frente enquanto engolia o sorvete. Pedro bem que tinha desconfiado das intenções de Manuela quando a prima contou sobre a nova amizade, mas não tinha passado pela sua cabeça que Julia fosse retribuir. Menos ainda que ela iria assumir, com a maior tranquilidade, que estava apaixonada por outra mulher, não que Pedro estivesse em posição de falar qualquer coisa sobre aquele tema.
— Você não vai falar nada? — Julia perguntou depois do primo não esboçar nenhuma reação.
— Eu estou processando a informação. — Pedro respondeu simplesmente.
— E isso vai demorar quanto tempo? Porque se eu te contei, provavelmente, eu estou querendo saber a sua opinião.
— Desde quando você e a Manuela estão tendo um… envolvimento? — Pedro falou finalmente, ele usou a palavra envolvimento pois não conseguiu pensar em nada melhor para descrever a suposta relação das duas.
— Eu não sei muito bem como ou quando começou, simplesmente aconteceu. — Julia tentou se explicar.
— Sei, como essas coisas têm tendência de acontecer, assim sem querer. Desde quando você está apaixonada por ela? — Pedro perguntou ainda tentando clarear as circunstâncias que tinham feito a prima chegar até ali.
— Pra ser bem sincera, eu acho que eu me apaixonei assim que eu conheci ela, mas levou um tempo até eu entender o que realmente estava acontecendo. — Julia falou reflexiva.
Pedro simplesmente balançou a cabeça em negação. O rapaz simplesmente não conseguia entender tudo aquilo.
— Você tá bravo comigo? — Julia falou ao notar a expressão no rosto do primo.
— Claro que não! É só que eu ainda não consegui entender de onde foi que isso tudo saiu, você nem comentou sobre se interessar por mulheres, muito pelo contrário. — Pedro explicou.
— Você, melhor que ninguém, deveria entender. Quando você descobriu que era — Julia baixou o tom de voz quando o primo fez cara feia — gay, como foi? — ela questionou.
— Eu sempre soube, meu bem. — Pedro disse também em tom de voz baixo — Quer saber, vamos terminar essa conversa lá no quarto. De preferência com a porta muito bem trancada.
Pedro terminou de falar, pegou a prima pela mão e arrastou ela para fora da sala de TV. Julia tinha vindo de São Paulo para passar o fim de semana no Rio, a ruiva na verdade tinha usado a desculpa de ir visitar os pais para poder se encontrar com o primo e contar toda aquela história para ele. O rapaz só voltou a falar quando os dois estavam trancados no quarto dele, longe dos ouvidos curiosos que viviam na casa dele.
— Meu pai deu pra me espionar agora, todo cuidado é pouco. — ele explicou se sentando na cama ao lado de Julia — Onde nós estávamos?
— Na parte em que você me diz alguma coisa útil sobre o meu envolvimento com a Manu. — Julia fez o sinal de aspas com os dedos quando disse a palavra envolvimento e depois se deitou na cama encarando o teto, esperando o que o primo iria dizer.
— E o que você espera que eu diga, querida? Eu estou em choque ainda, esse não é tipo de notícia que a gente processa num piscar de olhos. — Pedro também se deitou, porém, o rapaz ficou de bruços olhando para o rosto da prima.
— Eu não fiz de propósito, quando eu vi...
— Claro que não foi de propósito. — Pedro interrompeu a prima — Eu sei que esse tipo de coisa a gente não controla mesmo. Agora o que eu quero saber são os detalhes, o que rolou entre vocês duas pra você vir até o Rio de Janeiro só pra ter essa conversa comigo? — o rapaz perguntou com um sorriso sugestivo.
— A gente meio que... Você sabe. — Julia falou sem jeito.
— Transaram? — Pedro falou rindo da prima.
Julia suspirou antes de responder.
— Não foi só isso. Transar, sex*, isso eu acho que você pode fazer com qualquer um. O que a Manuela me fez sentir ainda não tem nome, simplesmente não existe palavra pra descrever. — Julia falou se lembrando das sensações que Manu provocava nela.
— Meu Deus! Você está totalmente de quatro por ela. — Pedro falou incrédulo.
— Eu acho que sim. — Julia concluiu com um sorriso.
— Eu sei que você está. E essa história de terminar com o Felipe, a Manu já sabe? — Pedro perguntou.
— Não. A gente ainda não falou sobre o Felipe, mas eu sei que ela fica irritada com o assunto. — Julia falou desanimada.
— Não é pra menos também. Você queria que ela ficasse satisfeita com a situação?
— Claro que não, eu sei que ela está certa. Acontece que eu ainda nem consegui assimilar as coisas, mas eu sei o que eu quero e pra eu conseguir isso o primeiro passo é terminar com o Felipe. Inclusive porque ele não merece ser enganado.
— Isso nos leva direto para a minha última pergunta: o que você está fazendo no Rio, se podia estar em São Paulo resolvendo a sua vida? — Pedro questionou.
Julia olhou para o rosto do primo e ele soube exatamente o que precisava dizer. Com um sorriso carinhoso ele passou a mão pelo cabelo da ruiva e disse olhando nos olhos verdes.
— Não tem nada de errado em seguir seu coração, Ju, se você acha que é a coisa certa a fazer. Eu apoio você incondicionalmente e esse brilho que eu estou vendo em você, esse brilho nos seus olhos quando você fala dela, isso é a maior prova de que você está fazendo a coisa certa.
Julia sorriu, Pedro tinha toda razão. Ela precisava voltar para São Paulo, terminar com Felipe e finalmente acertar as coisas com Manu.
**
Seis anos antes
Pedro chegou ao prédio onde Manuela morava um pouco apreensivo, ele sabia que ela provavelmente não ficaria feliz de ver ele por ali. O rapaz não tinha a mínima intenção de incomodar Manuela, muito pelo contrário. A questão é que ele não tinha notícias de Julia, ao menos ele não tinha nenhuma certeza sobre o que tinha acontecido antes do sumiço da prima. Silvia já tinha averiguado e sabia que Julia tinha ido para a Europa, mas ela ainda não tinha conseguido descobrir o porquê e muito menos conseguido falar com a sobrinha.
— Pois não? — foi Amanda quem abriu a porta, ela pensou conhecer o rapaz de algum lugar, mas não conseguiu se lembrar de onde.
— Como vai, eu queria falar com a Manuela, por favor. — Pedro falou.
— E você é? — Amanda perguntou desconfiada.
— Pedro Cam... Magalhães. — o rapaz se corrigiu.
— Campana? — Amanda falou surpresa.
Pedro ficou sem jeito.
— Você é parente da Julia? — Amanda perguntou diante do silêncio do rapaz.
— Ela é minha prima. Tem como eu falar com a Manuela, por favor. — Pedro pediu mais uma vez.
— Entra. — Amanda falou dando passagem para o rapaz entrar no apartamento — Eu vou chamar a Manu.
Manuela estava no quarto tentando terminar um trabalho da faculdade, mas era impossível se concentrar. Julia ocupava todos os espaços da sua cabeça, Manu não sabia mais o que fazer, tinha quase duas semanas desde que Julia havia terminado com ela e ido embora. A morena ainda acreditava que as coisas iam se acertar, provavelmente Julia estava na casa dos pais no Rio de Janeiro, mas uma hora ela ia ter que voltar. Manuela estava no meio desses pensamentos quando Amanda apareceu na porta do quarto.
— O primo da Julia tá lá na sala querendo falar com você. — Amanda falou e Manu se levantou imediatamente.
— Oi, Pedro. — Manu falou ao chegar na sala.
— Oi, Manu. Tudo bem? — Pedro ficou mais tranquilo quando viu que Manu não o expulsou do apartamento, era um bom sinal.
— Tudo. Ela mandou você vir aqui? O que foi que ela disse? — Manuela foi direto ao assunto.
Pedro soube imediatamente que iria se arrepender por aquela visita, ele viu no rosto da morena esperança e se sentiu horrível em diferentes níveis por saber que iria desapontá-la. Julia pelo visto também não tinha explicado nada para a namorada e isso deixou Pedro ainda mais preocupado. O que poderia ter acontecido a ponto de fazer a prima abandonar tudo e ir embora sem se despedir? Mesmo que ele tentasse com todas as forças fazer aquilo ter algum sentido, parecia impossível.
— Ela não me mandou. — Pedro falou desolado.
— Como não? Ela tá no Rio, não tá? — Manuela falou como se fosse uma coisa óbvia.
— Ela não te contou nada? — Pedro ainda não acreditava que nem mesmo para Manuela a prima deu alguma explicação.
— Contou o quê? Aconteceu alguma coisa? — Manu estava preocupada, Pedro estava ali na sua frente e não falava nada que fizesse sentido. Alguma coisa estava mais errada do que Manuela poderia supor — Dá pra você me explicar o que tá acontecendo? — Manuela exigiu.
Pedro se odiou por ser o responsável por dar aquela notícia para Manu.
— Eu vim aqui hoje pra saber se a Julia tinha te falado alguma coisa antes de ir embora de São Paulo. — Pedro começou e fez uma pequena pausa tentando encontrar as palavras certas — Ela não está no Rio. Ela passou por lá, mas eu nem tive tempo de falar com ela.
— Como assim ela não está no Rio? Ela também não tá aqui, ela tem que estar no Rio. — Manuela falou sem entender.
— Ela foi embora. — Pedro falou com tristeza — Eu achei que você soubesse, por isso eu vim aqui hoje. Ela se mudou para Europa e não me disse por quê. Eu imaginei que talvez você pudesse saber alguma coisa.
Manuela não estava mais ouvindo. Amanda, que estava na sala apenas assistindo a conversa, segurou Manuela pelo braço e fez a amiga se sentar no sofá.
— Manu, você precisa ser forte. — Amanda falou segurando o rosto da amiga.
— Desculpa. Eu realmente achei que a Julia... — Pedro falou preocupado com Manuela.
— Tudo bem. — Amanda falou.
— Se tiver alguma coisa que eu possa fazer. — Pedro disse.
— Você sabe pra onde ela foi? — Manuela perguntou ainda tentando organizar o que estava sentindo com aquela informação.
— Eu não sei ainda, a minha mãe ainda tá tentando descobrir. — Pedro explicou.
— Você não perguntou aos pais dela? Eles são seus tios, devem saber onde ela está. — Amanda questionou.
— Eu não estou exatamente em uma boa posição pra perguntar isso pra eles agora e minha mãe tentou, mas eles não quiseram falar sobre o assunto. Só disseram que ela se mudou pra Europa. — Pedro explicou e viu a expressão de perplexidade no rosto de Manuela se transformar em alguma coisa que ele não soube explicar, mas teve certeza que não seria fácil para a morena superar aquela situação.
Pedro não ficou muito mais tempo no apartamento, ele não tinha intimidade o suficiente com Manuela para oferecer seu ombro amigo, menos ainda se sentia em condições de servir de suporte para ninguém. A vida dele estava mais bagunçada do que ele era capaz de explicar e a morena provavelmente iria precisar de alguém que estivesse em uma situação melhor que a dela, não em uma pior.
**
4 anos antes
Quando Manuela abriu a porta do apartamento levou um susto. Amanda estava sentada no sofá e a cara dela não parecia nada satisfeita.
— Puta merd*, Amanda. Quer me matar do coração? — Manuela falou enquanto fechava a porta.
Manuela entrou na sala se livrando das sandálias e da bolsa. Depois se jogou no sofá que estava vazio e fechou os olhos. A noite tinha sido ótima, mas o cansaço era destruidor, Manu precisava dormir.
— Não vai falar nada? — Manu perguntou quando notou que a amiga continuava em silêncio.
— Até quando você pretende levar essa vida? — Amanda perguntou.
— Você veio até aqui pra me dar um sermão? Acho que não foi uma boa ideia você continuar tendo a chave da minha casa. — Manuela falou sem abrir os olhos.
— Já tem mais de um ano que ela foi embora, Manu. Até quando você vai ficar tentando esquecer dela se afogando no álcool ou em coisa pior? — Amanda acusou.
— Qual é, Amanda? São sete da manhã, não vem encher o meu saco pela maneira como eu levo a minha vida. — Manuela falou irritada e se levantou para ir para o quarto.
— Encher o saco? É assim que você chama o fato de eu me preocupar com você? — Amanda falou indo atrás da morena até o quarto.
— Preocupada com o quê? Eu já cansei de te falar que tá tudo bem, você que fica insistindo em ficar querendo controlar as coisas que eu faço. Eu não estou fazendo nada que eu não deva ou que eu não tenha direito de fazer com a minha própria vida. — Manuela falou enquanto tirava a roupa para tomar banho.
Amanda balançou a cabeça em negação, fazia um ano e meio que Julia tinha ido embora e Manuela passou por uma fase muito complicada, quase depressiva. Amanda ficou realmente preocupada com a amiga, mas Manu resolveu dar a volta por cima ou pelo menos foi isso que Amanda pensou no começo. Acontece que Manu tinha deixado a reclusão de lado para se jogar na farra, tudo bem que, agora publicitária formada, a morena não deixava a vida profissional de lado, mas não existia um dia ou final de semana que ela não fosse para balada e o volume de álcool que ela andava consumindo estava deixando Mandys preocupada.
— Como é que você pode achar normal a maneira como você tem levado a sua vida, Manuela? Olha pra você, você não dorme direito, não come direito, à exceção do escritório, qual outra coisa você tem tratado com seriedade? Porque você iria escolher o tempo inteiro se colocar nessa corda bamba, correndo o risco de cair de novo? — Amanda questionou parada na porta do banheiro enquanto Manu entrava no chuveiro.
— Amanda, eu já estou cansada de ter a mesma conversa com você. Se te incomoda tanto as coisas que eu faço, simplesmente me deixa na minha. Eu não vou ficar esfregando o meu estilo de vida na sua cara, pode ficar tranquila. — Manuela falou impaciente.
Amanda respirou fundo e abaixou a cabeça. Ela não podia ‘simplesmente deixar Manu na dela’, nem mesmo se Manuela verdadeiramente a mandasse embora, Mandys jamais abandonaria a amiga. No fundo a médica sabia que era esse o seu papel e que se a situação fosse inversa, Manuela faria o mesmo por ela.
— Eu acho que a gente vai precisar terminar essa conversa quando você estiver sóbria o suficiente pra não ficar falando esse monte de merd* pra mim. — Amanda respondeu depois de um tempo e Manu ficou em silêncio, ela estava bêbada o suficiente para colocar a desculpa na bebida, mas não o suficiente para não saber o que estava fazendo e Amanda realmente não merecia ouvir todas as coisas que Manu andava dizendo para ela ultimamente.
— Eu vou embora, quando você melhorar do seu estado me liga e a gente vai sair para comer alguma coisa e ter uma conversa séria. — Amanda falou quando reparou o silêncio de Manu — Já está mais do que na hora de você tomar uma atitude, Manu. Não adianta ficar fingindo que você está feliz desse jeito, porque eu sei que não está. — Amanda falou antes de sair do banheiro.
Manuela deixou a água do chuveiro levar aquela sensação pós-noitada do seu corpo. Amanda sempre insistia nas mesmas coisas, mas por mais que Manuela concordasse com ela, existia uma coisa que a amiga ainda não tinha conseguido entender e era o motivo pelo qual Manu estava vivendo daquele jeito. Foi justamente quando Manu percebeu que não dava para ser feliz que ela resolveu parar de se importar, ela sabia que tinha perdido a felicidade dela e isso era exatamente o que ela tentava esquecer em todo porre que tomava.
**
2 anos antes
— Olha pra mim, minha filha. — Alice falou se sentando ao lado de Manu.
Manuela olhou para o rosto da mãe, a publicitária sabia o quanto a mãe se preocupava com ela, não tinha como negar. Alice sabia o quanto a filha tinha lutado nos últimos anos, sabia também o quanto ela ainda precisava lutar para superar as dores do passado. Aceitar sempre foi o problema de Manuela, ela tinha um jeito peculiar de ver as coisas e isso sempre tinha feito o caminho dela ser mais complicado.
— Quanto tempo você ainda pretende desperdiçar por esse amor que só te fez sofrer? Até quando você vai viver com essa tristeza nos olhos, essa dor que nunca passa? — Alice perguntou olhando nos olhos da filha.
— Mamãe, você acha mesmo que se eu tivesse essas respostas eu ainda estaria assim? — Manu respondeu com tristeza.
Aquele era um dos raros momentos em que Manu baixava a guarda e aceitava aquela conversa sobre o passado. Embora Alice não soubesse, Manu tinha decidido passar o final de semana na casa dos pais para fugir de São Paulo. Algumas vezes aquela cidade sufocava a publicitária, em algumas datas era insuportável estar onde ela tinha conhecido e perdido Julia.
— Eu não acho que essa seja uma questão de saber as respostas, é muito mais sobre escolher que caminho seguir. Você precisa escolher esquecer o seu passado e se abrir para o futuro, o presente. Meu amor, você nunca mais se envolveu com ninguém, talvez esteja na hora de você pensar nessa possibilidade. — Alice argumentou.
Manu não gostou do rumo daquela conversa, ultimamente a mãe e Amanda tinham desenvolvido o hábito de tocar naquele assunto em todas as conversas possíveis.
— Eu já expliquei pra senhora e pra Amanda, eu não posso fazer isso. Eu simplesmente não posso me relacionar com alguém só porque vocês acham que está na hora, eu tentei uma vez, mãe, e eu aprendi que relacionamentos não são pra mim. A prova disso é que eu ainda... — Manuela não completou a frase, saber que ela sofria por Julia era uma coisa, admitir em voz alta era outra totalmente diferente.
— Então o que você pretende da sua vida, minha filha? Esperar o dia que ela vai voltar te pedindo perdão e te querendo de volta? — Alice falou com seriedade.
— O quê? — Manuela falou indignada com a mãe.
— Tudo bem, essa foi uma pergunta injusta, me desculpa. — Alice falou calmamente — O fato é que você precisa deixar essa história no lugar ao qual ela pertence, no passado. Filha, você já sofreu tanto por isso. Chega. — ela sentenciou.
Manuela não respondeu, mais uma vez ela teve aquela sensação de solidão. Era um sentimento ligado ao fato de que por maior que fossem os esforços das pessoas ao seu redor, ninguém conseguia entender o tamanho dos sentimentos dentro dela. Depois de quatro anos, ela tinha aprendido a lidar com os efeitos da ausência de Julia em sua vida e às vezes Manu chegava a acreditar que o seu passado podia ser superado. Era só que alguns dias eram mais difíceis que outros, mesmo ela se esforçando para as coisas mudarem.
Naquela noite, quando a morena se deitou para dormir, foi impossível não lembrar do passado. Manu se fez a mesma pergunta que rondou a sua cabeça o dia inteiro: será que a ruiva também tinha pensando nela naquele dia? Será que Julia também se lembrava daquela data, a mesma data em que elas tinham dormido juntas pela primeira vez há tantos anos? A publicitária não sabia as respostas para aqueles questionamentos, a única que poderia responder aquelas perguntas para ela tinha ido embora sem olhar para trás e a única coisa que Manu ainda tinha de Julia, era aquele monte de lembranças que ameaçavam consumir a sua sanidade a cada ano que se passava.
**
8 meses antes
Julia colocava algumas peças de roupa em uma mala enquanto Mateus a observava parado na porta do quarto. A ruiva sabia que ele não estava nada satisfeito, mas ela precisava fazer aquilo. Se existia alguma coisa que ela havia aprendido com os últimos acontecimentos da sua vida, era que ser feliz era o mais importante e isso começa quando você está feliz consigo mesmo. Julia estava há seis longos anos tentando negar o fato de que ela tinha jogado a sua felicidade pela janela, ela sabia agora que também tinha se perdido no meio do caminho e para se encontrar ela precisava ser honesta com ela e com as pessoas ao seu redor.
— Você não pode fazer isso. — Mateus falou depois de um tempo.
— Nós já tivemos essa conversa, Mateus. Eu já tomei a minha decisão. — Julia falou calmamente.
— Como você pode ter tomado essa decisão sozinha, quando não é só a sua vida que está sendo afetada? — Mateus falou tentando manter a voz calma, embora ele estivesse extremamente nervoso com as atitudes da esposa.
— Eu não vou ficar aqui explicando as mesmas coisas pra você, a gente já passou por tudo isso. — Julia falou enquanto colocava algumas coisas em uma nécessaire.
— Você não pode me abandonar justo agora.
Julia parou o que estava fazendo e o encarou por um instante. Ela estava parada ao lado da cama arrumando as suas coisas, Mateus continuava parado na porta. Os dois estavam em lados opostos e Julia teve a sensação de que havia um abismo entre eles. A ruiva se preocupou, pela primeira vez, com o fato de que talvez a amizade que eles estabeleceram entre si durante o tempo de casados não fosse sobreviver.
— Abandonar você? De onde isso veio? — Julia perguntou cética.
Mateus baixou os olhos por alguns segundos tentando controlar a raiva.
— Você não pode simplesmente me largar aqui e voltar pra ela.
— Isso não tem nada a ver com ela. — Julia falou irritada.
— Então me diz que eu estou errado? Fala olhando na minha cara que esse divórcio, essa decisão de largar tudo e voltar para o Brasil, voltar pra São Paulo, não tem nenhuma relação com o seu passado.
— É claro que tem relação com o meu passado e com o fato de que eu quero acertar as coisas na minha vida. Eu fiz um monte de burradas, Mateus. Eu não nego isso, mas eu não seria estúpida o suficiente pra ir atrás... Atrás de coisas que não me pertencem mais.
— Continua tentando enganar a si mesma, mas nós dois sabemos que é uma questão de tempo até o inevitável acontecer. Você quer ir pra lá pra procurar pela Manuela e reviver o casinho de vocês.
Julia respirou fundo antes de voltar a falar.
— Você tá com ciúmes de uma coisa que não tem a mínima possibilidade de acontecer. Eu vou voltar para o Brasil pra me reencontrar, isso é sobre mim e não sobre outras pessoas.
— Porque você quer se divorciar então? Se você precisa passar uma temporada no Brasil, tudo bem. Fica alguns meses lá com os seus pais, depois você volta. Eu espero o tempo que você precisar. — Mateus falou pragmático.
— Eu não quero e não vou ter essa mesma conversa com você. Eu quero o divórcio e se você não quer um escândalo litigioso, eu sugiro que você assine os papéis. — Julia falou voltando a ficar irritada.
Mateus balançou a cabeça negativamente, aquela situação era patética. Julia não podia simplesmente decidir se separar e pronto. Ele também fazia parte daquela relação e a ruiva ia ter que considerar a posição dele antes de tomar qualquer decisão.
— Você não pode simplesmente decidir se separar de mim e achar que eu vou aceitar isso passivamente, Julia. Nós somos casados, isso não é uma brincadeira que se desfaz quando uma das partes se cansa e decide ir embora.
— Você tem toda razão, nós somos casados e em um casamento o mínimo que se espera é que exista ao menos companheirismo. Devia existir pelo menos cumplicidade, amizade. Nós tivemos isso, mas não depois... Não agora. — Julia ficou em silêncio por uns instantes, ela precisava se manter equilibrada — Se você pode viver com isso, eu não. E é por isso que eu vou embora. A gente não pode mais ficar junto, você sabe disso tão bem quanto eu.
Mateus não respondeu, ele sabia que os últimos meses não haviam sido fáceis, mas isso não significava que ele queria terminar tudo daquela maneira.
— Eu vou ficar no apartamento por enquanto, ainda tem um milhão de coisas que eu preciso resolver antes de ir definitivamente para o Brasil. — Julia falou pegando a mala para sair do quarto.
— Você tem certeza disso? — Mateus falou encarando os olhos verdes de Julia.
— A pergunta aqui é: como que você não tem? — Julia questionou.
Mateus simplesmente deu passagem para que a ruiva pudesse deixar o quarto e Julia se sentiu muito mais aliviada no momento que colocou os pés fora daquela casa. Os dois tinham uma história conturbada, difícil de entender e por isso provavelmente não poderia ser superada tão facilmente. Julia sabia que todas as coisas que viveu ao lado de Mateus, faziam parte de quem ela era agora e aceitar isso era uma ótima maneira de entender exatamente o que ela precisava deixar para trás.
Fim do capítulo
Queridas, leitoras.
Estamos assim no topo do morro, daqui pra frente é só ladeira abaixo kkkkkkkkkkkkkkk Estamos a menos de 15 capítulos do final e ainda existem tensões para serem resolvidas viu!? Esse capítulo de hoje é para dar uma noção de como nos chegamos onde estamos no presente que as personagens vivem, é um capítulo que eu acho legal porque me deixou escrever sobre um passado que se fala o tempo todo, mas quase não se mostra. Enfim, espero que vocês gostem e amanhã a gente volta a realidade do pós casamento e o que nos aguarda.
Vi os comentários, agradeço todos as palavras gentis e carinhosas de vocês. Respondendo a um especifíco (Leticia, minha querida, seu bolo não foi esquecido) sobre se eu escrevo coisas novas ou planejo escrever: bom, nesse momento eu não tenho nada que seja focado exclusivamente em literatudo lésbica, último foi um conto publicado em uma coletania da editora Vira Letra. Mas, eu sigo sempre escrevendo e caso surja alguma ideia (e tempo...) certamente eu irei vir pra cá compartilhar com a comunidade. :)
É isso, povo. Amanhã tem mais, beijo no coração. ♥
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Marta Andrade dos Santos
Em: 19/07/2024
Tem coisa aí.
Essa separação,o retorno de Julia.
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patty-321
Em: 18/07/2024
Eita que aí vem pedreira, muito boa essa retrospectiva para entendermos melhor toda a situação dessas duas. Tem algo forte q a Júlia precisa contar pra manu. Manu sofreu tanto. Eu te entendo Manu, e difícil demais. Um dia te falam juras de amor e no outro te largam. Foda. Passei por isso.
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LeticiaFed
Em: 18/07/2024
Aaaah, gostei do capítulo retrô, falta a explicação pra Julia sair despencando do nada...e de resolver voltar, finalmente. Mas companheirismo com a mala sem alça do Mateus? Que decepção, Juju!
Tranquila com meu bolo, preciso mesmo emagrecer...snifff! Quanto a outras histórias, contos, espero que te inspires a escrever mais e compartilhar conosco. Mesmo que não específico na literatura lesbica, feliz de saber que segues escrevendo.
Vamos ver que bafão nos espera amanhã, aiaiai
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