Capitulo 54
Cap 53 - Acontecimentos Premeditados - Flávia
O comboio seguiu pelas ruas de São Paulo em alta velocidade, estávamos em mais de 5 viaturas. Quando saímos do DP foi aquela gritaria toda, batendo na lateral do carro, buzina, gritos de guerra. Isso é importante, ninguém ganha uma guerra sem esse fortalecimento, essa sensação de equipe.
Quando chegamos um pouco mais próximos da favela de Heliópolis, a primeira viatura desligou o giroflex e se camuflou. O comboio se dividiu, uma parte iria abordar o hospital e outra parte, a minha, o cativeiro. Os agentes do meu carro puxaram a balaclava, tampando o rosto. Eu esperei chegar um pouco mais perto. A batida no peito era intensa, os olhos abertos, atenta! Minha mão apertou o coldre, conferindo o armamento. Está aqui, a pistola está aqui. Passei a mão por todo o fuzil, como se conferisse cada peça do armamento.
- Dois fora - o agente que estava no passageiro falou, em relação ao tempo para a abordagem. A tensão no carro aumentou. Puxei minha balaclava, ficando apenas com os olhos para fora e um buraquinho no nariz para respirar. Os demais do carro já estavam camuflados.
O comboio entrou suavemente pelos becos da favela de Heliópolis até atingir um limite onde não entrava mais. Quando a viatura parou, descemos de imediato. Nessa hora, o foco de atenção deve ser no talo. O silêncio é total, não podemos chamar atenção de nenhum olheiro. Fomos evoluindo e entrando no terreno, reduzindo nossa silhueta, fuzil na empunhadura, dedo pronto no gatilho. Eu fui no meio do comboio, fazendo a proteção lateral.
Em dado ponto, o agente da dianteira levantou o braço esquerdo, avisando que era o momento de separar. Havíamos programado isso na preleção. Todos da fileira da direita se reagruparam e seguiram no beco, para abordar um dos olheiros. Os demais, do grupo que eu me incluo, seguimos para abordar o outro olheiro. O filho da mãe estava dormindo, literalmente, dormindo no trabalho ou dormindo no ponto.
- Perdeu, perdeu - o cabeça de chave, abordou o vagabundo que acordou com o fuzil na cara e sem noção do que estava acontecendo - Levanta! Levanta! Em silêncio, porr*! - o 01 foi puxando a abordagem, o último do grupamento saiu e assumiu a guarda do vagabundo, enquanto o 01 voltou em silêncio pro comboio e com a mão fez um sinal de prosseguimento.
Andamos silenciosamente pelo beco, enquanto da outra ponta dava para ver o segundo grupamento avançando. Essa sincronia só acontece em grupamentos muito especializados, como este. Eu que sou agregada aqui, eles são muito especializados. Quase uma pintura a infiltração deles.
O beco marcado e descrito pelos olheiros foi fácil de identificar. Na entrada, isolando-o da rua, uma placa de aço ou outro metal. O 01 da fileira de evolução tentou abrir o portão do modo mais simples, virando a maçaneta. Sem sucesso. Então o segundo da linha, com um arriete, um instrumento cilíndrico e pesado que permite e ajuda o militar a arrombar a porta, meteu o arriete no portão, da rua para o interior do corredor. Ele não rompeu na primeira porr*da, mas todos tinham certeza que haviam acordado todos os vagabundos da segurança do Grilo.
Uma segunda porr*da como arriete e o portão entrou. Na mesma velocidade que o portão caiu para dentro do corredor, as munições começaram a sair. Nem deu tempo de atacarmos ou avançar o espaço, os tiros contra nós foram muitos. Isso era algo previsto pela equipe especializada. A tropa ficou protegida, na lateral da entrada do corredor e o 04, saiu da formação, com uma granada na mão. Primeira coisa que pensei, fudeu uma granada, mas depois pensei, deve ser de efeito moral, gas lacrimogênio, luz ou som. Ele jogou uma granada de luz e depois jogou uma granada de som. O objetivo é deixar o inimigo atordoado.
Os tiros dos vagabundos pararam por alguns segundos, talvez meio minuto, um minuto, tempo deles se restabelecerem. Os tiros voltaram a comer solto. Eu não sou especialista em abordagem, mas me pergunto qual o objetivo? Será que cansar os vagabundos? Queimar os recursos deles?
Me mantive ali protegida pelo muro, mais no final da linha de infiltração. O 04 puxou mais uma granada do cinto dele, com a proteção de outros dois agentes, ele jogou a granada no corredor. Dessa vez eu tive certeza que era de gás lacrimogêneo, assim que o produto explodiu, o cheiro começou a vir, fraquinho, mas meus olhos já arderam. Os militares que são especializados e estavam na infiltração colocaram uma máscara de proteção. Ninguém me avisou, ou melhor, eu não lembrei, então sei que vou sofrer hoje.
Subi minha balaclava, protegendo um pouco mais o nariz e a boca, mas os olhos antes mesmo de entrar no corredor já ficaram incomodando. Logo após a granada explodir, os 6 agentes da força tática entraram no corredor, o tiroteio continuou, mas agora era facilmente audível outros armamentos. O agente 07 e 08 estava fazendo a proteção para não haver entradas, nem fugas do corredor, do beco, eles me chamaram alguns minutos depois. Eu sabia que era o meu momento de procurar a médica sequestrada.
Com o fuzil na empunhadura, silhueta reduzida, coluna baixa, fui seguindo pelo corredor. O 07 e o 08 mantinham a proteção e juntos nos três fomos nos infiltrando no terreno, no caso, pelo beco. Tento ser o mais profissional possível, mas sempre que invado algum lugar ou tenho confronto com alguém, penso na minha infância na favela da Brasilândia. Aqui é um beco como os dos meus colegas de adolescência. Nesse momento está com o cheiro do gás lacrimogêneo, ácido, queimando, mas poderia simplesmente ser o cheiro do mofo, sem ventilação alguma, que muita criança hoje vive.
O barulho de tiro ainda existia, mas estava longe, apesar de eu saber que estava no beco, a equipe estava invadindo as portas do fundo. O programado era eles irem varrendo o corredor em si, encurralando o Grilo e os seguranças dele, até o final, enquanto eu entrava com os demais da equipe, procurando a Caroline, sequestrada.
Na primeira porta que passamos, o 07 avançou para o batente direito, eu fiquei no esquerdo. O 08 bateu o ariete, uma porta bem mal cuidada, abriu no primeiro impacto. O 07 entrou e eu o segui, sem ninguém na sala escura, a luz estava baixa, então foi possível ver pela penumbra uma barricada de proteção na parede daquela sala. É a primeira parede em relação à rua, os vagabundos fizeram isso para dar uma proteção maior.
- Sala vazia! Segue! Segue! - eu gritei aos dois. Retornamos ao beco, em direção a próxima sala. Não posso dizer que os tiros ao fundo pararam ou não, eu estava com a atenção totalmente direcionada ao vasculhamento das salas e a procurar a Caroline.
Mantivemos a mesma programação, porta atrás de porta. Era um beco de comunidade mesmo, onde cada portinha poderia ser uma casa, um cativeiro, um arsenal. A segunda porta que abrimos foi uma dessas realidades, era uma casa ou um alojamento, cozinha, geladeira. Tudo muito bagunçado, um sofá, um beliche. Quando voltarmos para a limpeza, ou seja, procurar ilícitos, tenho certeza que vamos achar droga. Seguimos pela terceira e quarta porta, nada de importante. Cadê essa menina? Não posso ter perdido meu faro de investigação, sei que ela está nesse cativeiro. Sei disso.
Porta cinco, o 08 meteu o arriete, não abriu, meteu o arriete novamente, entra em um limpando a direita, entrei limpando a esquerda:
- Limpo! - o 07 gritou olhando a sala escurecida.
- Mantém comigo - no fundo da sala, do meu lado esquerdo, tinha uma porta. Silhueta abaixada, reduzida, um pé na frente do outro e fuzil mantendo na empunhadura. 08 abre! - Ele bateu com o arriete uma vez, duas vezes. O 07 entrou limpando a direita, quando eu entrei olhando a esquerda - Vítima na mão, vítima na mão.
Havia uma mulher, deitada em um colchão, com as mãos amarradas por um lacre. Estava acordada, os olhos estavam abertos, mas ela nem sequer conseguia sentar, levantar sozinha. Segurei em seu braço, tentando ser delicada e ajudei ela a sentar.
- Tá limpo?
- Vítima na mão, vítima na mão - gritei novamente para os 07 e 08. Os dois entenderam, sacudiram a cabeça e voltaram da mesma forma, tinha mais salas para abrir e quebrar. Quando o 07 saiu, o único com lanterna, o quarto ficou escuro novamente, muito escuro. Puxei meu celular e coloquei a lanterna acesa perto da Caroline, não é de longe a melhor luz, mas é uma luz - Carol, fica tranquila, acabou. Acabou. Você está segura agora. Acabou! Eu me chamo Flávia, sou agente da polícia civil, você está segura.
Ela levou alguns segundos para entender, voltar corpo a consciência, quando entendeu que havia acabado o sequestro, ela caiu nos meus braços e começou a chorar. Um choro pesado, de soluçar. Eu passei meu braço nela e dei suporte, apenas dei suporte. Meu celular estava com a lanterna ligada, dando o mínimo de luz. Imagina que desconforto estar em um lugar que não conhece, de completa escuridão, sujo, com um cheiro horrível.
Ela chorou no meu colo o tempo que precisou e eu deixei. Não iria sair para abordar mais ninguém, nem posso tirar ela até ter um retorno de ambiente limpo, então fiquei lá. Ela soluçou a ponto que achei que fosse uma crise de ansiedade, mas aos poucos ela mesmo foi normalizando a respiração, puxando o ar, se acalmando.
- Podemos sair daqui? - falou entre um soluço e outro.
- Ainda não, Carol. Precisa estar seguro lá fora. Não queremos você em um tiroteio.
- Não mesmo, chega. Só quero sair, respirar.
- Você está bem? Fisicamente?
- Acho que sim, na verdade não sei. Mas tudo bem, tudo bem - Essa é uma das coisas que não gosto em sequestros, mais um motivo do porque sai dessa agência, me incomoda o poder de um ser humano em machucar outro. A morte, é a morte, única, não se mata o corpo físico mais de uma vez, mas a dor, a tortura, o medo, esses machucam muito mais vezes. Tem sequestrador tão sádico que nem posso dizer a vocês o que já vi em sequestro. Eu não aguentaria ficar na divisão de sequestro por muito mais tempo não. Sei que Caroline vai precisar de muito suporte, apoio, carinho da esposa ou da Portuguesa, pela forma como a esposa se portou, acho melhor a portuguesa apoiar ela.
- Flávia, tá limpo, pode sair - o 08 falou da ante sala.
- Carol, o corredor já foi liberado. Quer ir lá fora tomar um ar? O dia está clareando já. Acho que você vai gostar de sair desse cafofo todo - tentei me manter sempre calma, passando paz
- Positivo. Carol, podemos sair - Ela sacudiu o rosto pra cima e pra baixo, mas era visível que teria dificuldade no simples ficar em pé. Eu levantei do chão primeiro, passei meus braços por ela fazendo um guincho e consegui ajudá-la a ficar em pé. Segurei por mais alguns segundos - Tudo bem? Consegue ficar em pé? Você consegue andar? Está bem?
- Consigo sim, é só a dor no corpo mesmo - eu, bem mais alta, passei o braço pelo braço do dela, dando apoio para ela conseguir andar. Passamos pela ante sala, andando devagarzinho, até chegar ao corredor, ao beco novamente. A luz lá na ponta começava a aparecer, o dia estava nascendo. Assim que alcançamos o corredor, percebi que ela puxou o ar, como se o oxigênio voltasse a existir. Seus olhos incomodaram, apertou eles algumas vezes, afinal, ficou 3 dias no completo escuro.
Ajudei ela a ir andando pelo corredor, até chegarmos à rua. O céu era meio escuro, meio claro, característico das 5 da manhã. Ela puxou o ar bem fundo e pela expressão, algo doeu. Andamos mais um pouquinho até que ela conseguisse ficar apoiada em uma das viaturas. Havia várias viaturas da polícia na frente da portinha de onde sai, vários policiais da civil, também vestidos de preto na calçada. Algumas pessoas, acho que moradores da favela, estavam olhando a operação toda.
Com um pouco mais de luz deu para observar os machucados dela. O rosto do lado direito estava bem inchado, o olho arroxeado, acredito que por socos. A boca estava inchada também e com vários riscos de sangue pisado. No pescoço havia marcas de mão, de dedos, provavelmente de esganadura. Ainda no pescoço um arranhado reto na parte da frente, acredito que da faca usada para gravar o vídeo.
- Carol, vou ligar para o seu irmão, tá? Avisar que você está bem - ela sacudir a cabeça para cima e para baixo. Peguei o celular do bolso e liguei pra ele:
- Pronto. Flavia?
- Lucas, tem uma pessoa aqui querendo falar com você - falei sorrindo, feliz - Fala com seu irmão - ela olhou o celular, travada, assustada - Pode falar! - ela esticou a mão, toda suja e machucada, pegou meu celular e colocou no ouvido.
- Luc?! É a Carol. To bem cara. To bem - conseguiu falar ofegante, chorando - Luc, to bem! - ela repetiu isso algumas vezes, como se precisasse dizer a si mesma que realmente estava bem, que estava viva e que estava livre -Moça, desculpa esqueci seu nome, onde estamos? Meu irmão quer vir me buscar - ela me perguntou, envergonhada.
- Lucas? Flavia falando. Ainda estamos em Heliópolis - busca ela lá no DP, na delegacia. Fica melhor pra todo mundo. Pode ser?
- Claro, estou saindo agora. Já.
- Não cara, pode vir tranquilo. Estamos em Heliópolis, vai demorar para chegar na Consolação. Ainda vai demorar um tempo para sairmos daqui. Pode ir com calma - guardei o celular no bolso, olhei de volta pra ela, não estava visivelmente machucada, assim, machucada estava, não estava com lesões graves, algo físico importante -- Você está bem? Precisa de alguma coisa Caroline? - perguntei mais uma vez, com ela apoiada no carro.
- Eu queria uma água, ir ao banheiro. Devo estar imunda, sei lá, pentear o cabelo pelo menos. E comer, preciso comer. Eu não como nada desde que saí de Recife.
- Tenho uma água na viatura. Acho que dá pra você lavar o rosto pelo menos. Não é a melhor opção, mas dá pra aliviar até você poder chegar em casa - ela sacudiu o rosto pra cima e para baixo, aceitando. Andamos com calma até onde a viatura havia ficado, na frente do beco, peguei uma garrafa de 2 litros. Ela esticou as mãos e eu fui jogando calmamente o líquido, fez uma conchinha, pegou um pouco da água e passou no rosto, duas, três vezes. Deu para ver o líquido marrom, acompanhado de sangue saindo um pouco do rosto dela.
Pegou um pouco de água, jogou no cabelo, passou a mão tentando acertar os fios. Fez um coque nele mesmo, confesso que só com esse pouco de coisa, a carinha dela melhorou absurdamente. Passou água nos pulsos, deve ter doido, eles estavam carne viva por conta dos lacres que prendiam suas mãos.
Pra mim trabalhar com sequestro é horrível, só não é pior que homicídio de criança. Cada um tem uma área que gosta mais, essas são as que não gosto.
- Flávia, a mulher do Grilo, acho que ele era chefe daqui - concordei - eu fiz o parto dela e ela precisou de cirurgia, sangrou muito. Ela precisa de atendimento especializado, não sei onde ela está, mas ela precisa ir para o hospital - confesso que isso me surpreendeu, a menina é sequestrada, tem que operar a mulher do chefe a força, acredito que sob diversas ameaças e ainda consegue ter esse cuidado, essa preocupação.
- Carol, vamos cuidar de você agora. A mulher e a criança estão a caminho de um hospital. A equipe quebrou aqui e o hospital ao mesmo tempo. Já está tudo certo, as duas estão tendo assistência. Não precisa se preocupar - Ela respirou fundo e começou a chorar, não copiosamente, mas fraquinho.
- Eu não sabia se eu fazia o parto ou não, juro que fiz só pra me proteger. Se eu não fizesse iria morrer, não estou ajudando eles em nada - ela falou chorando, tentando se explicar, praticamente dando um depoimento. Achei justo, precisa no mínimo se defender, vai que gosta de operar sobre pressão, induzida por sequestro, vai que tem essa loucura dentro dela.
- Fica tranquila Carol. Sabemos que você foi sequestrada. Não precisamos falar sobre isso agora. Quero que você se acalme, guarde energias. Ainda estamos calculando os saldos da operação, tudo isso ainda vai ser longo. Você sente que precisa ir para o hospital agora? Ou quer ir pra casa, tomar um banho, descansar e depois ir ao hospital? Afinal você é médica, deve saber melhor que eu dos seus machucados.
- Não é nada que vá me matar. Acredito que eu não quebrei nada, deve ser só roxo pelas porr*das. Tudo dói, mas um banho e uns analgésicos devem ajudar já. E depois disso eu vou ao hospital, posso ir onde eu trabalhava.
- Então tudo bem, vamos comer alguma coisa e eu libero você lá no DP. Seu irmão vai te esperar lá. Aí você pode ir pra casa, dar uns beijos na sua mulher, descansar - ela fez uma carinha perdida, imagino que tenha pensado no problema de estar casada e ter uma outra pessoa, não que eu tenha me envolvido, não é isso, mas peguei um pouquinho dessa história - Pela sua cara ver sua mulher é uma coisa não legal.
- Eu estava em Portugal. Isso você deve saber. Estava lá dando um tempo do casamento, mas já acabou tudo. Voltei pro Brasil só para assinar o divórcio - hummm, isso explica tudo, na verdade sana a minha curiosidade - Enfim, só quero um banho e descansar, estou me sentindo suja, nojenta. Não sei quanto você sabe de mim e tals, desculpa eu te encher com a minha vida - abri a porta da viatura para ela entrar. Eu segui pro lado do motorista, depois que me posicionei e liguei o carro,voltamos a conversar.
- Eu fiquei responsável pelo seu sequestro. Ai Deus, essa frase ficou estranha, eu fiquei responsável por acompanhar seu sequestro. Isso quer dizer que acabei entrando um pouco na intimidade da sua vida, da sua família - curva a direita no beco, em uma rua um pouquinho maior - Nós da polícia precisamos de todos os dados possíveis, para tentar descobrir algo, achar o cativeiro e resgatar a vítima. Perguntei isso sobre a sua esposa porque eu acabei conhecendo ela nesse processo todo, a Cristina… Christiane. Não lembro o nome exato dela.
- Christiane - Isso, a maluca que ficou me secando enquanto a esposa estava sequestrada - Ela estava lá na casa do seu irmão quando eu cheguei para orientar as negociações.
- Caraca, até ela soube do sequestro - falou assustada - Quando eu estava lá no cativeiro, fiquei o tempo todo pensando se meu irmão sabia do sequestro, se uma amiga minha de Portugal sabia - hummmm, amiga? - Meu medo era ninguém ter sentido minha falta, ninguém saber que fui sequestrada.
- Carol, fica tranquila. Esse é o pensamento da maior parte das vítimas. Posso dizer que no seu caso, muita gente gosta de você. O celular do seu irmão tocava de hora em hora para saber novidades sobre você. Eu fiquei essa noite toda na casa dele, o celular não parava.
- To com tanta saudade dele e do meu sobrinho. Quero encher os dois de beijo.
- Você logo vai ver seu irmão. Ele vai te buscar no DP - conversei com ela dirigindo - Quanto ao resto, pode ir ao seu tempo. Primeiro se recupera, depois vai ver esse lance de divórcio. Carol, você acabou de sair de um sequestro, tem todo o direito de se cuidar primeiro, depois ver o resto.
- Flávia, vou te perguntar uma coisa que o Lucas nunca vai me responder.
- Se ele nunca vai te responder, não é melhor ficar sem saber?
- Quero saber para eu poder ajudar ele - olhou pra baixo, envergonhada e com a voz fina perguntou: quanto foi meu resgate?
- Cara - respirei fundo - o Grilo cobrou 300 mil.
- Puta merd*. Ele quebrou pra pagar, certeza. Isso se conseguiu pagar. Meu Deus.
- Nós estouramos o cativeiro e o hospital antes dele pagar. Mas até onde eu sei ele nem tinha esse dinheiro, quem se propôs a pagar foi a Fernanda - eu jogando um verde da historia dela, confesso que curiosidade existe.
- Fernanda? Que Fernanda? - a carinha dela, afundada, cansada, mudou da água pro vinho, surgiu vida pela primeira vez.
- Fernanda, a portuguesa. Pelo que entendi ela é brasileira na verdade não é?!
- Não to entendendo nada. Quem avisou a Fernanda? Conseguiram falar com ela em Urros? Lá nem tem telefone - ela voltou a ficar agitada, mas um agitada de ansiedade, agitada bom.
- Carol, isso eu não sei. Quando conheci seu irmão, ela já estava junto. A princípio achei que fosse a esposa do seu irmão, algo assim, mas aí ele apresentou ela como sua namorada. Até estranhei depois, quando conheci a sua esposa mesmo. Que rolo! - olha eu novamente fazendo juízo de valor.
- A Fernanda, portuguesa, estava com o Lucas? Aqui no Brasil? Não creio - falou com um sorriso bonitinho, de feliz mesmo, vou dizer que meio sorriso, porque o rosto estava tão inchado que só um lado sorria.
- Ai, falei demais pelo visto. Eu e minha língua.
- Não Flávia. Só não imaginei que ela estava aqui. Eu chamei tanto ela pra vir pro Brasil comigo. Não to acreditando
- Isso é bom? - perguntei, é bom distrair, principalmente depois de um sequestro.
- Lembrei dela o sequestro todo. Só quero encher ela de beijos e abraços.
- Vamos parar aqui pra comer? - embiquei a viatura em um drive thru.
- Eu não tenho um centavo aqui - tadinha, claro que eu sei disso.
- Eu sei, você estava num cativeiro - falei suavemente, acalmando ela - Nem precisa descer do carro se não quiser, eu pego e comemos no carro - ela concordou com o rosto, não quis escolher nada, falou que o que eu pegasse estava bom. Parecia aquelas crianças de quando um conhecido oferece lanche e os pais falam que não é para aceitar. Acelerei o carro até o local da retirada, a Carol continuou em silêncio, pensativa. Peguei o lanche e entreguei o pacote na mão dela. Segui com o carro até o estacionamento, onde poderíamos parar com calma e comer.
Ela abriu a embalagem e já começou a puxar as batatinhas, uma atras da outra, com voracidade. Quando o carro estacionou, abriu o lanche e deu uma mordida gigante, isso mostra o quão faminta ela está.
- Melhor você comer devagar Carol. Está a muito tempo sem comer - não falei dando bronca não, falei orientando. Logo a expressão dela mudou para uma de desconforto, deu pra ver que o lanche havia batido. Não aguentei e ri, sem falar nada, mas ri.
- E você Flávia? Está na civil a quanto tempo? Você aparenta ser novinha, sei lá, uns 25, 26 no máximo - ela me perguntou tentando se distrair.
- Humm, ando dormindo no formol. Estou com 33 já, e desses acho que uns 10 de polícia, entrei com 18 anos. Sempre gostei dessa agitação, desse corre corre de quebrar as coisas, de encaixar as peças de quebra cabeça. Apesar de que quase não trabalho com sequestro, sou mais da investigação.
- Eu acho muito bonita a profissão de polícia, dos militares em geral. Em porta de pronto socorro já peguei muito bandido e muito polícia, colocar seu corpo a frente de outro como defesa, proteção, eu acho uma arte muito nobre.
- Isso é verdade, a linha de frente se machuca muito - me veio a imagem da Fabi - Já perdi muita gente, muitos amigos em operações que não deram certo. Dói muito perder um companheiro, um amigo. Faz parte da vida, mas dói muito - jogamos conversa fora, enquanto eu terminava de comer, porque a Carol acabou parando com o mal estar. Seguimos viagem até a Consolação, fui com o giroflex desligado, sem agitação até o DP. Cerca de um quarteirão antes, parei a viatura em uma rua paralela e comecei a passar algumas orientações:
- Carol, parei aqui, antes de chegarmos ao DP, para eu te passar algumas informações. Na porta da delegacia estão vários jornalistas. Se você quiser, até pode se identificar, mas se você não quiser, aqui no banco de trás tem uma blusa minha. Você pode se cobrir com ela. Para você sair da viatura teremos a proteção e auxílio de outros agentes. Eu só não tenho outro lugar para estacionar e não posso te liberar antes de você assinar alguns documentos e tudo mais.
- Tá Flávia, eu não entendi ainda. Porque tem reportagem lá na porta? Não que eu não seja importante, mas foi só um sequestro. Isso acontece o tempo todo.
- Sim, sequestros acontecem o tempo todo sim. Mas você foi sequestrada por uma quadrilha de tráfico de órgãos, que sequestravam pessoas, arrancavam os órgãos e faziam a cirurgia. Por isso está cheio de repórter, por isso invadimos cativeiro e o hospital deles.
- Cacete, isso explica tudo. Por isso eles tinham todos aqueles equipamentos - ela deu uma travada, acredito que associando as informações, os olhos começaram a encher de lágrimas novamente e assumiu uma expressão de medo.
- Carol, não vamos falar sobre isso agora. Fica tranquila. Quero que você se sente lá no banco de trás, fique de cabeça baixa, como se fosse um avião caindo. Joga essa blusa preta por cima de você. Na hora de descer do carro, eu te pego. Junto com os outros agentes vamos protegendo você. Tudo bem? Acho que você ainda está bem frágil e abalada para ter que aguentar jornalistas em cima de você - ela concordou com a cabeça, em silêncio, nitidamente frágil e machucada. - A delegacia fica no final do próximo quarteirão, vou ligar a sirene para as pessoas saírem de cima ok?!
Liguei o giroflex e acelerei, só parei em frente ao DP. Os jornalistas estavam aos montes, em uma olhada rapida não consegui ver a Bruna, mas tenho certeza que alguém do Doi Notícia está lá. Eu mal parei a viatura e já começou vários jatos de luz das câmeras, barulheira, detesto isso. Antes mesmo de eu pedir, alguns agentes já chegaram na lateral da viatura para ajudar a proteger e escoltar a Bruna. Desci rapidamente do motorista e fui até a porta de tras, abri e orientei com que ela jogasse a blusa sob a cabeça, abracei a Carol, baixinha, e junto com os outros agentes, seguimos em direção a dentro do DP. Quando entramos no DP em si, em uma área segura, desacelerei e deixei com que ela levantasse o rosto, olhei pra Carol tentando passar o máximo de paz e calma.
- Carol, seu irmão está lá em cima, no segundo andar. Aguenta subir lá?! - concordou com a cabeça.
Sub as escadas, com ela ao meu lado. Fomos bem devagar, era visível a dor toda que estava sentindo. O Lucas estava em pé, encostado no batente da porta da sala de reuniões, olhando para o nada, mais abatido que quando o vi há 8 ou 9 horas atrás, mas com uma expressão leve. Ele veio correndo quando enxergou a Carol, os dois se abraçaram, abraço de irmãos. Ela a todo tempo falando:
- Eu to bem Luc. Fica calmo bebezão. Tá tudo bem!
Fim do capítulo
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