Capítulo 6
Sentadas no bar do hotel, a conversa voltou a fluir com facilidade, enquanto a música ao vivo tocava no fundo. Estavam tão entretidas na conversa que não sentiram a hora passar. Já era quase meia noite quando Laila disse:
— Acho que é melhor subirmos… Amanhã a primeira palestra é bem cedo.
Marisa concordou com ela e as duas se levantaram, mas não deu tempo de começarem a caminhar, pois a música que preencheu o ambiente fez Laila dizer, com uma nítida expressão de encantamento:
— Não acredito! Vamos dançar essa!
A olhou com uma expressão de quase pavor:
— Eu te espero aqui… Sentada.
Laila imediatamente a rebateu:
— Claro que não, você é meu par… Vem…
Tentou puxá-la pela mão para se juntarem aos outros casais que já estavam dançando, mas Marisa se manteve firme:
— De jeito nenhum… Eu não sei dançar. Não tenho a mínima coordenação.
Mas Laila não se deu por vencida. Ainda segurando a mão dela, disse:
— Eu te ensino… Não tem nenhum mistério.
E como se estivesse sendo enfeitiçada, a recusa de Marisa foi caindo aos poucos, até ela se ver de pé, com a mão direita apoiada no ombro de Laila, enquanto a esquerda estava unida à dela.
Laila riu da visível falta de jeito de Marisa, enquanto tentava dar as coordenadas. Depois de alguns instantes estavam no mesmo ritmo.
Marisa suspirou profundamente, tentando conter as emoções que começaram a surgir dentro de si, quando Laila cantou, acompanhando a música:
— Eu só quero um amor… Que acabe o meu sofrer… Um xodó, pra mim… Do meu jeito, assim…
Olhou para ela sem conseguir evitar que a mente e todo o corpo respondessem, sem verbalizar:
“Eu também.”
*****
Assim que fechou a porta do quarto, Marisa passou as mãos pelo rosto, depois pelos cabelos, completamente desesperada. Não tinha mais como se enganar: Estava completamente encantada por Laila. Não podia ter deixado que aquilo acontecesse. Laila era sua colega de trabalho, sabia quem Marisa era, conhecia Edgar, conhecia seu pai... Jamais poderia ter nenhum tipo de relacionamento com ela. De maneira nenhuma.
Foi até o banheiro, voltou ao quarto, caminhou até a janela... Perdida, atordoada... Um dilema se formando dentro dela, pois não saberia como lidar com aquele sentimento tendo que estar ao lado de Laila praticamente todos os dias.
No dia seguinte, tentou ao máximo se manter distante, fechada, conversou o mínimo possível com Laila. Durante as palestras fingiu estar completamente concentrada e reprimiu a vontade que veio várias vezes de olhar para Laila sentada ao seu lado. Na hora do almoço, fingiu estar ocupada no celular enquanto comia, para que pudesse ficar calada a maior parte do tempo. Durante a tarde, Laila pareceu perceber que ela não estava receptiva, pois também não voltou a conversar. Quando o segundo dia do congresso acabou, subiram separadas para os quartos. Assim que entrou, Marisa abriu uma bebida, precisava aliviar a tensão que a acompanhou durante todo o dia.
Laila fechou a porta do seu quarto ainda tentando entender o que tinha acontecido para que Marisa ficasse daquele jeito. Tirou a roupa e caminhou até o banheiro ainda pensando, e estancou de repente, ao se lembrar da noite anterior. Marisa deve ter interpretado mal o convite para dançar. Aquilo já havia acontecido antes: algumas mulheres acharem que a simpatia e amizade eram investidas de Laila, apenas por saberem que ela era lésbica, mesmo quando ela não tinha interesse romântico algum. O que era o caso. Além de ser sua chefe, Marisa era casada e heterossexual. Qualquer uma dessas coisas, isoladamente, já seria motivo para que Laila não se permitisse criar qualquer tipo de interesse. As três coisas juntas fizeram com que sequer cogitasse a hipótese de se interessar por ela. Se aquele era o problema, passaria a ter uma relação estritamente profissional com Marisa. O que lamentava de verdade, pois estava começando a vislumbrar o início de uma amizade.
*****
Assim que chegou em casa percebeu que Edgar não estava, como ela já imaginava. Ligou para o petshop e pediu que trouxessem Caju, que passou o fim de semana sob os cuidados da creche para cachorros.
No quarto, ficou remoendo as últimas horas enquanto se despia. Laila devia estar achando que ela era bipolar. Pois em um dia estavam se dando extremamente bem, conversando… E no outro Marisa virou uma outra pessoa. Não deu assunto, a respondeu formalmente, usou os fones de ouvido durante toda a viagem de volta, se despediu rapidamente quando desembarcaram e se separaram. Mas tudo isso foi preciso… Não poderia dar a chance para que o sentimento crescesse, para que começasse a cogitar aceitá-lo e acolhê-lo.
Laila entrou no apartamento e imediatamente abriu as janelas. Tomou um banho e trocou as roupas por outras mais leves. Antes de se alimentar, foi cuidar das plantas. Perdeu horas aguando, borrifando, limpando cada uma delas. Quando terminou, já era início de noite. Preparou uma comida rápida e prática, jantou na mesa da varanda, aproveitando a brisa fresca que a noite proporcionava. Depois de tudo lavado, enfim foi para a cama, e só então os pensamentos se voltaram para os últimos dias. Não se permitiu ficar culpada ou ansiosa. Há muito tempo aprendeu que não podia controlar o que as outras pessoas pensavam a seu respeito e isso lhe trouxe um tremendo alívio. Foi com a consciência de que não tinha feito nada de errado que virou-se para o lado, fechou os olhos e logo adormeceu.
*****
— Bom dia.
Laila se assustou ao ver que Marisa já estava no escritório. Havia aberto a porta displicentemente, pois era costume que chegasse primeiro. Respondeu sem olhá-la:
— Bom dia.
Caminhou até sua mesa e sentou-se para começar o dia de trabalho, sabendo que provavelmente ficariam em silêncio durante todo o expediente. Não iria perder tempo e energia tentando entender o que se passava na cabeça de Marisa, por que ela estava agindo daquela forma e o que ela estava pensando.
Abriu sua agenda e acessou os processos eletrônicos que precisava acompanhar, quando o telefone na mesa de Marisa tocou. Ouviu quando ela pediu que Sônia deixasse que alguém entrasse e, pela reação de Marisa, já imaginou quem seria.
— Bom dia, doutoras. Como foi o congresso?
Sorriu para doutor Adriano, mas deixou que Marisa respondesse:
— Ótimo… Depois vou passar o relatório para o senhor.
O pai e chefe de Marisa pareceu satisfeito ao falar:
— Fizeram boa viagem?
Laila apenas acenou com a cabeça e então ele falou diretamente para a filha:
— Passe na minha sala depois do almoço.
*****
Os dias que se seguiram foram tranquilos para Laila. Ficava a maior parte do tempo sozinha na sala que dividia com Marisa, pois ela estava sempre em reuniões, audiências e outros compromissos que Laila desconfiava que eram desculpas para que ela pudesse sair. Apesar de notar o incômodo de Marisa, não disse nada. Se ela estivesse realmente insatisfeita, então que a atitude de mudar partisse dela.
Marisa, por sua vez, estava vivendo um verdadeiro inferno interior. Não conseguia ficar muito tempo no mesmo ambiente que Laila, marcou reuniões desnecessárias, saía da sala sem pretexto algum, tentando desesperadamente não deixar que Laila percebesse os olhares que recebia. Era involuntário, incontrolável, os olhos pareciam ter vontade própria, procuravam-na a todo instante, os pensamentos eram tomados pelo rosto, pela voz, pelo cheiro de Laila, durante todo o dia. E à noite era pior… Demorava a adormecer, e quando conseguia, era Laila quem preenchia seus sonhos. Acordava no meio da madrugada várias vezes e até precisava tomar remédios que induzissem o sono.
Estava sentada em sua mesa, o expediente já havia acabado há algumas horas, mas ela e Laila precisaram ficar para finalizar uma peça complexa, cujo prazo para peticionar terminava no dia seguinte. Não poderiam se arriscar de deixar para a última hora. O escritório estava em completo silêncio, pois só restavam as duas.
Percebeu Laila suspirar pesadamente, sentada na mesa em sua frente:
— Está cansada?
Laila a olhou surpresa, pois nas várias horas em que ficaram ali, falaram apenas o essencial, a respeito da petição que estavam trabalhando. Foi sincera ao responder:
— Um pouco.
O tom de voz de Marisa era quase carinhoso:
— Se quiser pode ir… Eu termino aqui.
Apesar de saber que estavam realmente no fim, só faltavam alguns detalhes e a juntada eletrônica do documento, Laila respondeu:
— Não, tudo bem.
Marisa voltou sua atenção à tela do computador e Laila se permitiu observá-la. Quase riu da peculiaridade da situação. Marisa era uma pessoa bastante… Instável, talvez. Em alguns dias a tratava como se fosse invisível, em outros momentos era absolutamente atenciosa. Mas Laila admitia que apesar de tudo aquilo, sentia uma simpatia em relação a ela.
Alguns minutos depois Marisa sentenciou:
— Pronto. Terminamos.
Laila olhou para ela e retribuiu o sorriso:
— Ótimo. Vou ao banheiro antes de irmos.
Enquanto esperava por ela, Marisa desligou os computadores e arrumou suas coisas.
Quando saiu do banheiro, Laila viu que Marisa já estava de pé, com a bolsa no ombro. Foi até sua própria mesa e começou a guardar seus pertences. Deixou uma das canetas cair e Marisa foi rápida em se abaixar e pegar o objeto. Estendeu a mão para entregá-lo à Laila, e quando ela o segurou na outra ponta, Marisa não soltou. Laila buscou seu olhar e as duas ficaram alguns segundos se encarando. Quando Marisa enfim o soltou, Laila desviou o olhar rapidamente, fechou a bolsa e caminhou até a porta, com Marisa logo atrás.
As duas entraram no elevador e não se olharam mais, se despediram rapidamente ao chegarem no estacionamento e cada uma caminhou até seu carro, num silêncio que fazia um barulho estrondoso dentro delas.
*****
Suspirou e conteve a vontade de revirar os olhos assim que entrou no escritório e viu Edgar parado, conversando com Sônia, em frente à porta da sua sala. Iria passar direto por eles, apenas dizendo um rápido “bom dia”, mas Edgar a impediu:
— Doutora Laila… Estava te esperando. Preciso falar sobre um processo.
Respondeu da forma mais polida que conseguiu:
— Pois não?
Com o sorriso que Laila já conhecia e odiava, ele pediu, apontando para a porta da sala que ela dividia com Marisa:
— Vamos entrar?
Sem ter como negar, abriu a porta e entrou na frente. Edgar fechou-a assim que entrou:
— Como você está?
Sentando em frente à sua mesa, Laila franziu o cenho sem perceber:
— Achei que queria conversar sobre um processo…
Ele caminhou até parar na frente dela, colocar as mãos sobre a mesa e se inclinar, ficando perto demais:
— E quero, mas só queria saber como está… Não tenho te visto muito… Só fica dentro desta sala.
Torceu os lábios numa tentativa de sorriso ao respondê-lo:
— Estou ótima. Fico dentro desta sala porque esse é o meu trabalho, doutor.
Edgar sorriu, mas não teve tempo de responder. A porta se abriu e Marisa entrou, estacando ao vê-los tão próximos um do outro. Depois caminhou até a própria mesa e se sentou.
Edgar moveu apenas a cabeça para olhá-la, mas o corpo continuou inclinado na direção de Laila:
— Depois terminamos nossa conversa...
Só então se moveu e saiu da sala.
Laila respirou fundo e disse:
— Bom dia.
A resposta de Marisa foi seca, sem que ela desviasse o olhar da tela:
— Bom dia.
Laila também voltou seu olhar para o próprio computador, mas não conseguiu se concentrar. Além de estar incomodada com a petulância de Edgar, ainda buscava entender o que tinha acontecido na noite anterior. A forma como Marisa a olhou e sustentou o olhar… Poderia dizer que aquilo significava algo, se não fosse o fato de Marisa ser uma mulher casada e aparentemente heterossexual. Por mais que soubesse que o casamento dela não estava bem, não tinha segurança alguma para chegar a conclusão de que — aquela troca de olhares — não foi apenas coisa de sua cabeça.
Marisa afrouxou a mão em volta da caneta que segurava ao perceber a força que estava fazendo sobre o objeto. Reflexo da raiva que estava sentindo. De Edgar, por continuar rondando Laila como um urubu à espera da recompensa. De si mesma, por ter sucumbido ao desejo de se aproximar de Laila, que a acometeu na noite anterior. Se martirizou durante todo o trajeto de volta para casa, se xingando em voz alta, por não ter sido capaz de aniquilar aquele sentimento. Foi rápido, apenas uma troca de olhares, mas que ela sabia que Laila havia percebido.
Ao entrar no escritório e caminhar até a porta de sua sala, sentiu o coração martelando por conta da expectativa de vê-la. Não sabia muito bem como agir, não sabia se Laila diria alguma coisa, pois Marisa já havia percebido que ela era bastante sincera e direta. Só não imaginava que se depararia com Edgar quase colado em Laila.
O pensamento que veio, sem que pudesse evitar, a atormentou tanto que se levantou de repente:
“Eu estou com ciúmes.”
Percebeu que Laila a olhou assustada, diante do seu rompante. Disfarçou como pôde, pegou um comprimido na bolsa, o tomou e caminhou para fora da sala.
Fim do capítulo
Música: Eu só quero um xodó - Dominguinhos
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Marta Andrade dos Santos
Em: 05/07/2024
Misericórdia mulher aceita e para de mimi Marisa.
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