Capítulo 4
Laila estacionou o carro e respirou fundo antes de sair. Passou pela portaria, pegou o elevador, cumprimentou Sônia e entrou na sala. Como de costume, Marisa ainda não tinha chegado. Nas últimas duas semanas a relação das duas passou a ser estritamente profissional. Nunca mais conversaram sobre nada que não fosse relacionado ao trabalho. Também havia percebido que Marisa evitava almoçar no mesmo horário que ela, por isso resolveu passar a comer no refeitório, para deixá-la à vontade. Infelizmente, não era a primeira vez que passava por aquilo. Em outras ocasiões já havia sentido o ambiente de trabalho ficar estranho por conta do preconceito de algumas pessoas. Mas desde que não fosse desrespeitada, continuaria trabalhando normalmente e tratando Marisa de forma polida.
Se não bastasse aquele problema, ainda tinha que lidar com as inconveniências de Edgar. Além de ser imaturo, fazendo brincadeiras de mau gosto o tempo inteiro, estava sendo invasivo, com frases de duplo sentido e mandando para Laila e-mails que não tinham em nada a ver com o trabalho. Se sentiu um pouco compadecida com Marisa, pois ela certamente não tinha um casamento feliz. Talvez por isso se incomodasse tanto com quem as outras pessoas se relacionavam: para preencher o vazio do próprio relacionamento.
A porta se abriu e Marisa entrou de óculos escuros. Cumprimentou Laila rapidamente e se sentou em sua própria mesa. Abriu a bolsa, pegou um comprimido e o colocou na boca, tomando um longo gole d’água em seguida. Não tirou os óculos escuros como normalmente fazia quando entrava no prédio. Também não se explicou por estar usando o acessório dentro da sala — coisa que não fazia nenhum sentido — e se Laila estranhou, não demonstrou.
Poderia usar a desculpa da dor que latej*v* em sua cabeça, mas não conseguiria se enganar. Nos últimos dias se pegava espiando Laila em todas as oportunidades que tinha. Parecia encantada em estar convivendo, no seu dia a dia, com uma mulher tão segura e bem resolvida. Aproveitou os óculos escuros, que não deixavam que Laila percebesse que era observada, e a olhou diretamente, por trás da proteção das lentes. Analisou cada detalhe dela e se assustou ao perceber que ela era... Uma mulher completamente normal.
Durante toda a sua vida, até entrar para a faculdade, Marisa nunca havia conhecido alguém que fosse assumidamente homossexual. E sempre que o assunto era abordado perto dela, pela família ou pelos amigos, era em tom pejorativo. Somente quando entrou para a Universidade começou a ter contato com os mais variados tipos de pessoas. Mas, ainda assim, seu curso era tomado por pessoas que seguiam estritamente as “regras da sociedade” e achavam que quem fosse diferente deles estava errado.
— Posso juntar a petição?
Demorou alguns segundos para perceber que a boca de Laila se mexendo estava emitindo um som. E que esse som era direcionado a ela:
— O que você disse?
Laila repetiu com o mesmo tom de voz:
— Perguntei se já posso juntar a petição do processo que deixei pra você revisar ontem.
Marisa voltou a atenção para os papéis em sua mesa, um pouco perdida, sem saber exatamente sobre qual processo ela estava falando:
— Deixa só eu achar... Você deixou mesmo comigo?
Laila pareceu um pouco impaciente quando respondeu:
— Mandei por e-mail.
Marisa se ajeitou na cadeira e, mexendo no mouse, respondeu:
— Vou olhar e te passo...
*****
Segurando a embalagem de comida em uma das mãos e o garfo na outra, Marisa tinha o olhar perdido, fixo em um ponto qualquer da parede. Tentava, de alguma forma, organizar os pensamentos e compreender por que — não só a presença, mas a existência de Laila — a incomodava tanto.
Ajeitou-se na cadeira quando Laila entrou na sala. Havia percebido que ela passou a fazer as refeições no refeitório, e era inegável que o clima entre elas havia ficado, no mínimo, estranho, depois da última conversa sobre a vida pessoal que tiveram. Observou disfarçadamente enquanto ela pegava a bolsa e se dirigia ao banheiro. Não conseguia explicar a mistura de fascínio e incômodo que Laila despertava nela. Tinha vontade de perguntar várias coisas, de como tinha sido ser casada com uma mulher, como a família dela reagiu, como elas se portavam perante a sociedade, como era tão simples para ela falar sobre aquele assunto... Mas além de ter ciência de que isso seria invasivo, não sabia se estava preparada para as respostas.
Assim que terminou de almoçar e voltou para a sala, Laila pegou a bolsa e se dirigiu ao banheiro para fazer a higiene bucal. Percebeu pelo canto do olho que Marisa a observava. Quando fechou a porta, respirou fundo. Encarou o próprio reflexo no espelho por alguns segundos, tentando organizar os pensamentos. Ainda não tinha completado nem um mês de trabalho no escritório, não queria sair dali, até porque estava se adaptando bem. Mas a forma com que Marisa passou a olhá-la, pelos cantos, como se julgasse cada movimento que fazia, a estava incomodando profundamente. Por mais que ela tentasse disfarçar, Laila sempre percebia. Além do fato de Marisa ter ficado visivelmente incomodada por Laila ser lésbica, desconfiava que a atenção exagerada que Edgar direcionava a ela, também incomodava Marisa.
Saiu do banheiro e se acomodou em sua mesa. Assim que se sentou, Marisa disse olhando para ela, agora sem os óculos de sol:
— Tudo certo com a petição, pode juntar.
Laila observou com desconfiança o pequeno sorriso nos lábios de Marisa. Não correspondeu. Apenas meneou a cabeça e voltou sua atenção para a tela do computador.
*****
A rotina no escritório preencheu completamente os dias que se seguiram. Com mais processos e responsabilidades, Laila quase não via o tempo passar. Começou a fazer reuniões com clientes e a realizar audiências, presenciais e virtuais, mas duas coisas continuavam a incomodá-la: Os olhares estranhos de Marisa e a imaturidade de Edgar. Internamente colocou vários apelidos no casal, tentando aplacar a aversão que começou a sentir em relação aos dois.
Se segurava na ideia de que, futuramente, passaria a trabalhar em outra sala, de preferência uma que fosse só sua. Assim afastava a vontade de pedir demissão que a preencheu várias vezes nos últimos dias.
— Você pode revisar essa petição pra mim, por favor?
Olhou para Marisa na mesa da frente e respondeu séria, enquanto pegava o papel:
— Claro.
Marisa sorriu ao agradecer:
— Obrigada!
Laila não retribuiu, apenas disse:
— De nada.
Enquanto tentava se concentrar na folha que tinha nas mãos, não conseguia parar de pensar em como a colega de trabalho era incoerente. Ou talvez fosse apenas uma pessoa falsa. Pois ao mesmo tempo em que a julgava com olhares, sorria quando se dirigia a ela, coisa que Laila não conseguia forçar.
Assustando as duas, Edgar entrou na sala quase gritando:
— Vim ver se estão vivas.
Olhou para Laila e disse:
— Já que nos dispensou no almoço, vim ver como você está... Cheguei a pensar que Marisa tinha te acorrentado nessa sala...
Depois que ele riu sozinho, continuou:
— Bem, continua bonita, pelo menos.
Caminhou até a mesa de Marisa e entregou alguns papéis para ela:
— Seu pai pediu que revisasse antes de nós assinarmos.
O tom de voz que usava com Marisa era completamente impessoal. O que fez Laila, mais uma vez, se compadecer com a situação de Marisa e até diminuir um pouco a antipatia que estava sentindo em relação a ela.
Quando se virou novamente para Laila, o tom de Edgar mudou, assim como um sorriso apareceu em seu rosto:
— Se conseguir fugir desse calabouço, me procure na minha sala, vamos sair para um happy hour com a galera...
Quando ele fechou a porta, Laila procurou Marisa com o olhar, e se surpreendeu ao encontrar os olhos dela. Diferente de todas as outras vezes, em que ela os manteve na tela ou nos papéis, dessa vez Marisa a olhava diretamente.
Laila aproveitou aquele momento, juntou todo o incômodo que trazia dentro de si em relação aos dois, levantou e se aproximou da mesa dela:
— Olha, doutora Marisa, eu quero deixar bem claro que essas brincadeiras do seu marido também me incomodam... E que, caso não tenha ficado claro, eu sou uma mulher lésbica e não me interesso nem um pouco nas investidas dele. E mesmo se eu não fosse, o fato dele ser um homem casado já seria mais do que suficiente pra fazer morrer qualquer interesse de minha parte.
Ficou completamente surpresa quando Marisa sorriu e, mais ainda, quando ela disse:
— Ele vai ficar bastante desapontado quando se der conta...
A surpresa de Laila ficou evidente no semblante dela e na maneira com que ela aprumou o corpo. Marisa continuou:
— E eu queria me desculpar pelas coisas que ele fala.
Laila ficou completamente desconcertada, pois não era absolutamente o que estava esperando. Quando levantou da própria mesa, estava em posição de ataque, querendo colocar para fora tudo o que estava engolindo calada. Jamais imaginou que Marisa reagiria daquela forma, não ficando nem um pouco incomodada. Quando se recuperou um pouco, disse:
— Não é você quem tem que se desculpar por ele.
Manteve os olhos no de Marisa e hesitou apenas por alguns segundos, depois, a coragem e a transparência que sempre a acompanharam, fizeram com que falasse:
— Mas aproveitando que estamos conversando... Eu gostaria de dizer que a forma com que você tem me olhado me incomoda bastante.
Dessa vez Marisa ficou completamente vexada, sentiu o rosto arder, a boca secar e as mãos começarem a suar. Tinha sido pega, flagrada, descoberta... E achava que estava disfarçando perfeitamente:
— Doutora Laila, eu... Desculpe, não foi minha intenção em momento algum...
Laila manteve a voz séria e não recuou:
— Se a minha orientação sexual é um problema tão grande pra você, pode me realocar para outra sala... Ou, se não for suficiente, até me demitir, mas de uma coisa eu não abro mão: o respeito.
Marisa sentiu uma sensação estranha no estômago, mistura da vergonha que estava sentindo por ter sido descoberta, com a admiração que estava sentindo por Laila naquele instante. Definitivamente ela era uma mulher incrível.
— Não, não é nada disso...
Marisa limpou a garganta e se levantou, ganhando tempo e tentando pensar no que dizer:
— Me desculpe, doutora. Em momento nenhum foi minha intenção te deixar constrangida. E sua... Sexualidade... Não é um problema pra mim.
Laila a olhou por alguns segundos em silêncio. Depois perguntou num tom de voz mais brando:
— O que te incomoda em mim, então?
Marisa não conseguiu desviar os olhos dela, estava realmente encantada:
— É que você é uma mulher tão segura e confiante... Que faz com que eu te admire muito. Desculpe se fiz parecer o contrário.
Foi a vez de Laila sentir o rosto enrubescer. Desviou o olhar para o chão e disse sem jeito:
— Tudo bem...
Olhou para Marisa por alguns segundos, antes de desviar o olhar novamente e voltar para sua mesa:
— Acho que tudo está esclarecido agora.
Fim do capítulo
Comentar este capítulo:
Marta Andrade dos Santos
Em: 30/06/2024
Pronto tudo resolvido.
Edgar é um mala.
AlphaCancri
Em: 30/06/2024
Autora da história
Edgar é intragável!
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Raf31a
Em: 30/06/2024
Excelente enredo. Estou adorando. Até terça.
AlphaCancri
Em: 30/06/2024
Autora da história
Fico muito feliz que esteja gostando! Até terça.
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cris05
Em: 29/06/2024
Essa história promete! Já ansiosa pelo próximo capítulo.
AlphaCancri
Em: 29/06/2024
Autora da história
Oii! Que bom que está gostando, fico muito feliz! O próximo capítulo é na terça :)
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HelOliveira
Em: 27/06/2024
Laila tem o meu respeito.....adorando esse início da história
AlphaCancri
Em: 28/06/2024
Autora da história
Oi! Fico feliz que esteja gostando! Laila é bem direta e sincera, né?
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