Capítulo 3
Quando o despertador tocou, já estava acordada. Apertou a tela do celular fazendo com que o barulho repetitivo parasse. Levantou da cama e foi direto para o banho. Depois, tomou o café da manhã na pequena sacada do apartamento, olhando o movimento das pessoas começando o dia. Gostava de acordar mais cedo para fazer tudo com calma, aproveitar cada minuto e dar atenção aos detalhes.
Regou as plantas que tinha espalhadas pelos cômodos, lavou a louça, escovou os dentes, se maquiou, pegou a bolsa e saiu. Entrou no carro, o ligou e colocou para tocar sua playlist favorita do momento. Dispensando o ar condicionado, deixou a janela semiaberta. Cantarolou junto com a música, enquanto dirigia sentindo o vento no rosto:
— No ar que eu respiro... Eu sinto prazer... De ser quem eu sou... De estar onde estou...
Sorriu, enquanto sentia uma excitação tomar todo o seu corpo. Estava no melhor momento de sua vida em anos. Aos trinta e quatro anos, tinha acabado de quitar completamente seu apartamento — que já estava do jeito que ela sempre imaginou — e conseguiu um emprego em um dos escritórios mais renomados da cidade.
Mas para além disso, sentia-se finalmente bem consigo mesma. Há dois anos terminou um casamento que durou sete, e o fim a deixou completamente destruída. Chegou no fundo do poço, de onde olhava para cima e não conseguia enxergar sequer um pontinho de luz que indicasse a saída. Achou que jamais sairia dali, pois não tinha forças nem para tentar. Até que os amigos ligaram uma lanterna que a fez perceber que, talvez, não fosse tão impossível assim. Depois jogaram uma corda, que ela precisou amarrar ao redor do corpo para que eles puxassem, pois não conseguia subir por si mesma. Foi devagar, vivendo um dia de cada vez, e contando também com a ajuda da terapia, que conseguiu usar a própria força para escalar e finalmente sair do fundo do poço em que se encontrava.
Estacionou o carro e desceu. Sorriu ao passar o crachá, que continha sua foto e o nome “Laila Almeida Ribeiro” impresso. Já era seu quarto dia de trabalho, mas parecia que a ficha nunca cairia: Estava realmente trabalhando naquele lugar. Cumprimentou os funcionários da portaria e entrou no elevador. Estendeu rapidamente a mão, evitando que a porta se fechasse por completo, quando ouviu alguém pedir:
— Segura pra mim!
Quando a porta voltou a se abrir, Marisa entrou ofegante:
— Obrigada!
Laila sorriu para ela:
— Bom dia...
A resposta foi em um tom acelerado:
— Bom dia, doutora.
Disfarçadamente, Laila olhou o relógio, pois começou a achar que estavam atrasadas, diante da inquietação de Marisa. Percebeu que, na verdade, faltavam praticamente dez minutos para o início do expediente.
Continuaram em silêncio até que o elevador chegasse no andar que iriam descer. Marisa saiu primeiro, cumprimentou Sônia e pediu a agenda do dia. Entrou no escritório e fechou a porta sem olhar para trás. Laila ficou parada, sem entender muito bem se era para entrar ou aquilo havia sido um sinal para que esperasse do lado de fora. Olhou para Sônia, que tinha a mesma expressão confusa que ela. A secretária pediu:
— Só um instante.
Pegou o telefone e depois de alguns segundos, disse:
— Doutora Marisa, a doutora Laila está aqui fora...
Sônia ainda segurava o telefone junto ao ouvido, quando a porta se abriu. Marisa estava visivelmente constrangida:
— Me desculpe... Eu esqueci completamente... Por favor, entre...
Laila sorriu levemente:
— Não tem problema.
Assim que as duas entraram, Marisa pediu novamente:
— Me desculpe, doutora... Acho que é o hábito.
Continuou sorrindo quando disse:
— Pode me chamar de Laila.
Marisa meneou a cabeça e, sentindo o rosto arder de vergonha pelo o que tinha acabado de acontecer, voltou para sua mesa. Em todos os outros dias, Laila havia chegado primeiro que ela, então sempre a encontrava já dentro da sala.
Laila também se acomodou, frente a ela. Trabalharam em silêncio por algumas horas, trocando algumas palavras sobre os processos, até que a porta se abriu num rompante, fazendo Laila quase pular da cadeira.
— Hora do almoço!
Olhou para o marido de Marisa parado na porta. O olhar dele estava nela própria e não na esposa. Coisa que, desde o primeiro dia, Laila havia achado estranho. Ficou desconfortável com o jeito que ele ignorou Marisa e depois com as piadas de mau gosto que fez durante os almoços, por isso respondeu:
— Obrigada, doutor Edgar, mas vou almoçar por aqui hoje.
Ele entrou e fechou a porta:
— Não acredito que Marisa conseguiu te contaminar com menos de uma semana de convivência...
Laila olhou para Marisa que mantinha os olhos na tela do computador. Viu pela forma que ela apertou o maxilar que aquilo a incomodava. Voltou a olhar para Edgar ao respondê-lo:
— Eu tenho bastante trabalho, prefiro otimizar meu tempo ficando por aqui.
Depois de mais algumas gracinhas, ele finalmente desistiu e saiu.
— Você vai pedir algo pra comer?
Marisa virou o pescoço de lado, tirando o rosto da frente da tela e olhando para ela:
— Provavelmente.
— Pode pedir pra mim também, por favor?
Hesitou alguns segundos para responder:
— Sim, mas... Peço em um lugar que tem uma comida bem leve...
Laila falou imediatamente:
— Pra mim está ótimo.
Concordou com a cabeça e voltou sua atenção ao computador, querendo se concentrar no que fazia e dissipar a irritação que a tomou. Era só o que faltava, ter que aturar Edgar todo dia em sua sala. Precisava urgentemente conversar com o pai sobre tirar Laila de lá.
Alguns minutos depois, quando Sônia bateu na porta e a entregou as sacolas com a comida, estendeu a que pertencia à Laila:
— Se você quiser, tem um refeitório no final do corredor... Eu como por aqui mesmo porque, como Edgar disse, sou viciada em trabalho.
Riu tentando não dar nenhum peso à informação.
Laila apenas perguntou:
— Você se importa se eu comer aqui também?
Já abrindo a embalagem, Marisa respondeu:
— Claro que não, fique à vontade.
A intenção de Laila era comer em silêncio, pois já havia percebido que Marisa não era muito de conversas paralelas aos assuntos do trabalho. Surpreendeu-se quando ela perguntou:
— Você mora aqui perto?
Terminou de mastigar e só depois que engoliu a comida respondeu:
— Mais ou menos... Fica há menos de uma hora, se não tiver trânsito...
Marisa balançou a cabeça mastigando, depois disse:
— É que você é tão pontual...
Laila riu:
— Eu consigo administrar bem meu tempo.
Pediu em tom de brincadeira:
— Você poderia me ensinar? Porque parece que estou sempre atrasada pra tudo...
Riram juntas dessa vez. Laila tentou justificar por ela:
— Acho que minha vida é mais tranquila, moro sozinha, não preciso combinar meu horário com ninguém... As únicas que dependem de mim são minhas plantas, que morreriam se eu não cuidasse delas.
Marisa meneou a cabeça e ponderou se diria ou não o que estava pensando. Sabia que estava, mais uma vez, interpretando um papel:
— Bom, eu tenho Edgar e o Caju, meu cachorro... Mas posso dizer com toda certeza que o primeiro dá muito mais trabalho.
Compartilharam um sorriso antes de Laila dizer:
— Bom, só posso imaginar...
Marisa se arrependeu no momento em que perguntou:
— Nunca foi casada?
Temeu que Laila não gostasse da pergunta, pois estava sendo invasiva, só a conhecia há alguns dias. Para seu alívio, ela não pareceu se ofender, pois respondeu normalmente:
— Fui casada por sete anos.
Marisa sorriu:
— Então seu marido não dava trabalho?
Laila não se sentiu constrangida, não fez rodeios, nem mudou o tom de voz ao responder. Se Marisa não ficasse à vontade com a resposta, já não era problema seu:
— Fui casada com uma mulher.
Marisa engasgou com a comida, tossiu algumas vezes e buscou a garrafa d’água que estava em cima da mesa. Bebeu o líquido quase com desespero, tentando aplacar não só o engasgo, mas o incômodo que surgiu dentro dela. Felizmente a comida já estava no fim, pois não queria e nem saberia como continuar aquela conversa:
— Eu já terminei... Com licença...
Jogou a embalagem no lixo, pegou a bolsa e foi para o banheiro.
A reação dela não havia sido nada sutil. Laila ficou desapontada, mas não surpresa. Várias vezes tinha visto pessoas mudando completamente com ela quando descobriam que era uma mulher lésbica. O desapontamento vinha de sempre esperar que, depois de tantos anos de luta, as pessoas não se importassem mais com a sexualidade alheia.
Terminou de comer e, como Marisa ainda não tinha saído do banheiro da sala, resolveu ir até o banheiro comum que ficava no corredor. Quando voltou, ela ainda estava lá dentro. Começou a ficar preocupada, mas esperou por mais alguns minutos. Depois se aproximou da porta para tentar ouvir algum barulho que indicasse que ela estivesse, pelo menos, consciente. Como também não ouviu nada, resolveu bater:
— Doutora Marisa?
A resposta dela foi abafada:
— Sim?
— Está tudo bem?
Demorou alguns segundos para que ela falasse de novo:
— Sim, já estou saindo.
Laila voltou à sua mesa e, assim que se sentou, Marisa saiu do banheiro rapidamente, passou direto, sem olhá-la, abriu a porta da sala e saiu.
*****
Marisa caminhou rápido pelo corredor. Cumprimentou algumas pessoas que passaram por ela, sem olhá-las de verdade. Toda sua concentração voltada para resolver aquele problema gravíssimo imediatamente.
Chegou até a porta da sala do pai e pediu para a secretária que fosse anunciada. A moça pegou o telefone, falou algumas palavras que Marisa não prestou atenção e desligou:
— Ele pediu que a senhora volte mais tarde.
Marisa a olhou, voltando para a realidade:
— Não... Tem que ser agora, é um assunto urgente.
A moça continuou no tom calmo e profissional:
— Doutora Marisa, ele está resolvendo uma questão que também é urgente e por isso pediu que a sen...
Não ouviu mais o que a moça estava falando. Foi até a porta da sala e a abriu sem bater.
O pai levantou da cadeira com aquela entrada inesperada. A secretaria apareceu logo atrás de Marisa se desculpando:
— Doutor Adriano, eu disse pra ela...
O homem encarou Marisa quando disse para a secretária:
— Tudo bem, Luana, pode ir.
Quando a porta foi fechada, ele respirou fundo antes de perguntar:
— O que é isso, Marisa?
Enfim se dando conta do que tinha acabado de fazer, se desculpou:
— Eu preciso muito conversar com o senhor.
O pai apontou a cadeira para que ela se sentasse e depois também se sentou:
— O que é tão urgente?
Limpou a garganta e começou:
— Eu queria falar... Sobre a doutora Laila ficar na minha sala...
O pai esperou calado e ela continuou:
— Eu prefiro trabalhar sozinha... Não há a possibilidade dela ficar com outra pessoa? O doutor Eduardo, talvez?
O olhar dele estava impaciente quando perguntou:
— E qual é a urgência nisso?
Marisa tentou argumentar:
— Eu gostaria de resolver essa questão o quanto antes...
Ele a olhou sério:
— Marisa, você é a chefe do departamento empresarial... A doutora Laila é uma excelente advogada, e eu gostaria que você fosse a responsável em introduzi-la em nossa equipe. Quero que a treine para ser seu braço direito, ficar no seu lugar quando necessário...
Sentindo uma inquietação começar a tomá-la, o interrompeu:
— Mas por que ela? Não temos outros advogados com mais tempo de casa?
— Eu a contratei pra isso, Marisa... Não tem nem uma semana que ela foi pra sua sala... Aconteceu alguma coisa?
A vontade que a tomou foi de dizer que sim. O problema era que Laila tinha acabado de dizer que foi casada com uma mulher, e que essa informação tinha feito um incômodo enorme se estabelecer dentro de si... Dizer que não queria ter por perto uma mulher que lidasse com tanta naturalidade com o fato de se relacionar com outras mulheres, como se isso não fosse uma questão. Uma mulher que era tudo aquilo que Marisa precisava esconder dentro de si, por medo.
Mas apenas olhou para o pai e disse:
— Não... Problema nenhum.
Fim do capítulo
Música: Agora só falta você - Rita Lee
Comentar este capítulo:
Marta Andrade dos Santos
Em: 30/06/2024
Tá perigoso em Marisa segura essa Piriqueta mulher.
AlphaCancri
Em: 30/06/2024
Autora da história
Será que ela consegue? kkkk
[Faça o login para poder comentar]
Deixe seu comentário sobre a capitulo usando seu Facebook:
[Faça o login para poder comentar]