Capítulo 2
Só quando entrou no elevador Marisa sentiu o quanto os músculos estavam tensos. Apertou o ombro direito com a mão esquerda, na tentativa de aliviar a tensão e sobressaltou-se ao perceber que não havia se lembrado de tirar a aliança no carro. Recriminou-se internamente por estar ficando descuidada, não poderia cometer aquele tipo de deslize. Guardou o objeto no compartimento interno da bolsa e fechou o zíper.
O elevador chegou e ela caminhou até o apartamento que já havia frequentado algumas vezes antes. Levantou a mão para tocar a campainha, mas a porta se abriu antes. A moça já a esperava, pois ela tinha sido anunciada pelo porteiro.
Sorriu levemente ao dizer para Marisa:
— Entra.
Já dentro do apartamento, Marisa beijou-a rapidamente nos lábios e falou:
— Desculpa ter mandado mensagem tão tarde.
Percebeu a leve cobrança quando a outra mulher disse:
— Tudo bem, já estou acostumada.
Era verdade. Marisa tinha consciência — e não se orgulhava — de que só a procurava quando sentia vontade, assim como havia feito com dezenas de mulheres antes dela e provavelmente faria com muitas outras depois.
Se aproximou dela devagar, tocando seu rosto carinhosamente, tentando compensar não só aquele problema, mas todos os outros que a relação tinha, por sua culpa exclusiva:
— Queria muito te ver...
Ela suspirou e se afastou:
— O que aconteceu dessa vez?
Marisa sabia onde aquela conversa provavelmente terminaria. Os anos de experiência a ensinaram que estava chegando na fase de cobranças e isso indicava que já era hora de ir embora:
— Não aconteceu nada. Essa semana foi bastante cheia, não consegui vir antes.
— Como na semana passada? E na anterior?
Rendida, sentou no sofá:
— Gabriela... Eu te disse desde o começo que minha vida era corrida...
Ela sentou ao seu lado:
— Eu sei... Mas a impressão que eu tenho é de que estou me relacionando sozinha. Você parece não fazer questão nenhuma de estar comigo, Marisa.
Ia dizer algo, mas ela a impediu:
— Deixa eu terminar...
Apenas assentiu com a cabeça e ela continuou:
— Eu sei que estamos nos relacionando há pouco tempo... E que nunca estipulamos nada, mas... Se esse relacionamento não tem futuro, é melhor pararmos por aqui. Nós nunca saímos juntas, só nos vemos dentro desse apartamento. Você nunca me convidou para ir à sua casa...
Aquela era a deixa perfeita para investir naquela conversa até que virasse uma discussão e o relacionamento chegasse ao fim:
— Eu quase não fico em casa, já te disse que viajo muito.
Gabriela se levantou, foi até a janela, olhou para fora por alguns segundos e só então se virou para ela:
— Desde que te conheci você se justifica o tempo inteiro, mas nunca demonstra que quer mudar... Que se importa, que quer fazer diferente...
Marisa também se levantou, deu um passo à frente, mas não se aproximou mais que isso:
— Eu não posso fazer diferente... Essa é a minha vida.
O olhar de Gabriela se manteve firme no dela quando disse:
— Então acho que nossas vidas devem tomar rumos diferentes a partir de agora.
Marisa poderia contestá-la, tentar conversar e convencê-la a mudar de ideia. Provavelmente conseguiria. Via nos olhos dela o quanto Gabriela estava fragilizada. Sentia o quanto aquela separação a estava machucando. Ela própria poderia dizer que estava, no mínimo, triste. Por tudo isso era melhor que o ponto final fosse colocado o quanto antes:
— Você está certa... Acho que é o melhor pra nós duas.
Viu uma lágrima escorrer no rosto de Gabriela, que imediatamente a enxugou com as costas da mão. Mais uma vez sentia-se uma pessoa horrível, pois diferente dela, sabia desde o início que as duas não teriam futuro:
— Bem, melhor eu ir...
Gabriela deixou escapar um riso entrecortado, repleto de decepção:
— Pra você é tão fácil assim?
Sabia que a pergunta dela se referia apenas àquele momento, mas não pôde deixar de pensar na sua vida como um todo. Era fácil para ela viver daquela forma? Definitivamente não. Estava sempre em alerta, aflita, como se fosse ser pega no flagra a qualquer momento. Várias vezes se apaixonou e não se permitiu desfrutar. Incontáveis vezes pensou em jogar tudo para o alto e finalmente assumir para os pais e para o mundo quem ela era de verdade. Em diversas noites foi dormir decidida a mudar de vida no dia seguinte, mas desistia assim que a realidade a encontrava de manhã. E além de tudo isso, tinha o problema que estava enfrentando naquele momento: envolvia outras pessoas, era desonesta com elas, as iludia, as enganava...
— Não, não é... Mas é melhor terminarmos agora antes que isso nos machuque mais.
Gabriela não respondeu. Caminhou até a porta, a destrancou e abriu, ficando parada com a mão na maçaneta, num convite mudo para que Marisa se retirasse.
Marisa pegou a bolsa no sofá, caminhou até a porta e saiu sem olhá-la. Quando entrou no elevador deixou que o fluxo de pensamentos a tomasse. “É melhor assim”. Preferia quando as mulheres terminavam com ela, apesar de saber que, no fundo, ela mesma tornava a relação tão ruim que a outra pessoa não tinha como continuar. Porém não imaginou, quando saiu de casa mais cedo para encontrá-la, que aquela seria a última vez. A intenção havia sido buscar o conforto de poder ser ela mesma, depois de todo aquele teatro na frente dos pais.
Dirigiu de volta para casa devagar. Estacionou e ficou aliviada ao ver que o carro de Edgar não estava na vaga dele. Achou o elevador lento, como se demorasse horas de um andar para o outro. Quando finalmente chegou, entrou no quarto, tirou as roupas e se jogou na cama. Além de ter que apagar Gabriela de sua vida, se sentiu cansada só em imaginar que teria que passar novamente pelo processo de conhecer outra pessoa, se interessar e ter o interesse correspondido. E um novo ciclo de mentiras começaria.
“Você é mesmo uma filha da puta egoísta, Marisa!”
Se recriminou por estar pensando somente em si mesma e já estar imaginando quem seria a próxima mulher que enganaria.
*****
Já estava pronta para ir trabalhar, borrifou o perfume algumas vezes, pegou a chave do carro e saiu do quarto. Parou quando chegou à sala e viu a bagunça que certamente Edgar havia deixado ao chegar em casa na noite anterior, quando ela já estava dormindo. Um copo e uma garrafa quase vazia de uísque, a roupa dele espalhada pelo sofá e o sapato largado no meio do cômodo. Respirou fundo e esforçou-se para ignorar mais uma das coisas que precisava relevar ao dividir a mesma casa que ele. Viu a camisa branca em cima do sofá, suja do que provavelmente eram manchas de batom. Mas isso não a incomodava, o que a tirava do sério era ele esquecer que aquele ambiente era de uso comum e deveria ser mantido limpo e organizado. Mesmo tendo uma pessoa contratada para limpar a casa, às vezes parecia que Edgar se esquecia que era um homem adulto e capaz.
Chegou ao escritório com uma calma inversa à agitação do dia anterior. Saiu do elevador e Sônia já estava a postos em sua mesa. Olhou o relógio e viu que ainda faltavam alguns minutos para o início do expediente:
— Às vezes eu acho que você dorme aqui.
A secretária riu e respondeu:
— A reunião mensal foi ontem, doutora. Hoje você poderia ter chegado atrasada.
Marisa apoiou-se na mesa dela:
— Nem me lembre disso... Aliás, quando é minha primeira reunião do dia?
Sem nem precisar olhar a agenda, Sônia respondeu:
— O primeiro cliente virá às quinze horas.
Agradeceu e virou-se para entrar em sua sala, mas Sônia passou mais uma informação:
— Hoje é aniversário do Roni... Vão comemorar depois do expediente e pediram para confirmar sua presença.
Marisa fez um esforço para tentar se lembrar de quem ela estava falando.
Já sabendo que ela não saberia de quem se tratava, Sônia completou:
— Roni, o da área trabalhista...
A careta que fez deixou claro que ainda não estava ligando o nome à pessoa.
Sônia olhou em volta e, certificando-se de que não havia ninguém por perto, falou baixo:
— O baixinho careca...
Imediatamente a imagem do homem surgiu em sua mente e Marisa estalou os dedos:
— Claro, o Roni... Diga que desejo felicidades, mas não poderei comparecer.
Não se lembrava qual foi a última vez que saiu para confraternizar com os colegas de trabalho. Provavelmente já fazia anos. Nunca foi uma pessoa extremamente sociável, mas piorou depois que o casamento foi arruinado de vez. Ao contrário dela, Edgar sempre havia sido o popular, tanto na faculdade quanto no escritório. Ele tinha uma simpatia exacerbada que Marisa sabia ser falsa muitas vezes. E quando os casos extraconjugais dele — que todos achavam ser traições que ela desconhecia — começaram a se tornar públicos, achou melhor se afastar, pois não queria que ficassem comentando pelos cantos sobre a pobre esposa traída.
Acessou o computador e abriu sua agenda do dia. Ia acessar o primeiro processo quando o telefone tocou:
— Doutora, o doutor Adriano está aqui.
Se aprumou rapidamente na cadeira e limpou a garganta antes de dizer:
— Pode mandá-lo entrar, Sônia.
Assim que desligou o telefone, se levantou da cadeira. A porta se abriu e o pai entrou, acompanhado por uma mulher que Marisa nunca havia visto:
— Bom dia, doutora... Vim te apresentar nossa nova colega, doutora Laila.
Não era nenhuma novidade. O fluxo de funcionários do escritório nunca parava. Muitas pessoas chegando e muitas pessoas saindo. Marisa se aproximou e estendeu a mão para a moça:
— Prazer. Seja bem-vinda ao escritório.
A outra apertou sua mão e sorriu:
— Muito obrigada! Prazer em conhecê-la.
O pai sorriu orgulhoso ao explicar para a nova funcionária:
— A doutora Marisa é a responsável pela área empresarial do escritório. Fique à vontade para contatá-la sempre que precisar.
Depois olhou para a filha:
— A doutora Laila veio muito bem recomendada. Vai fazer parte do seu setor.
Endossando a fala do pai, sorriu forçando uma simpatia que sempre precisava ter naquelas situações:
— Se eu puder colaborar em alguma coisa, será um prazer.
Depois que a moça agradeceu novamente, o pai disse:
— Vamos, vou te apresentar o resto do prédio.
Ele estendeu o braço para que Laila passasse primeiro, saindo da sala em seguida.
Sozinha novamente, Marisa voltou à sua mesa. Começou o dia de trabalho, juntou petições a processos, precisou fazer ligações e enviou alguns e-mails.
Antes do almoço o telefone tocou novamente:
— Doutora Marisa, o doutor Adriano vai entrar.
Segundos depois o pai abriu a porta da sala dela novamente. Numa repetição da cena que tinha acontecido algumas horas atrás, a nova advogada entrou junto com ele.
— Marisa, a doutora Laila vai ficar trabalhando aqui com você por alguns dias... Quero que você a insira na rotina e nos procedimentos do escritório. Selecione e passe alguns processos pra que ela acompanhe. Inclusive já pode fazer os substabelecimentos necessários.
Apesar da surpresa e de não ter achado uma boa ideia, não ousou contestá-lo na frente de outra pessoa. Talvez depois daria um jeito de tocar no assunto quando estivessem sozinhos:
— Claro...
Olhou para a moça que continuava parada, segurando a bolsa nas mãos:
— Só precisamos ajeitar um lugar pra você ficar...
Problema que o pai logo solucionou:
— Já pedi à equipe de apoio para trazer uma mesa, cadeira e instalar o computador. Eles já devem estar subindo.
Depois ele falou diretamente para Laila:
— Tenho uma reunião com um cliente em alguns minutos... Se precisar de alguma coisa a doutora Marisa irá providenciar... É um prazer tê-la conosco, bem-vinda ao time.
Laila sorriu:
— O prazer é todo meu, doutor Adriano. É a realização de uma meta trabalhar aqui com vocês.
Quando se viu sozinha com a mulher de quem só sabia o nome, Marisa deu um sorriso forçado, sem saber muito bem o que dizer:
— Gostou do prédio?
Ela pareceu realmente feliz quando respondeu:
— Com certeza. Vocês têm uma ótima estrutura... E todos da equipe são muito acolhedores.
Marisa havia perguntado apenas para que um silêncio estranho não se estabelecesse, pois obviamente ela não iria fazer nenhum tipo de crítica em seu primeiro dia de trabalho:
— Bom, acho que essa vai ser sua nova sala, pelo menos por enquanto. O banheiro é daquele lado... E aqui tem um frigobar, fique à vontade pra usar quando quiser.
Depois que Laila agradeceu novamente, Marisa torceu internamente para que chegassem logo com a nova mobília, pois estavam as duas de pé olhando uma para outra:
— Que falta de educação...
Apontou para o sofá encostado na parede antes de completar:
— Por favor, sente-se.
Assim que ela se acomodou, Marisa sentou na poltrona em frente:
— Então, você é daqui mesmo?
— Sim... Quer dizer, moro aqui há anos, mas sou nascida e criada no interior.
Fazendo com que uma sensação de alívio a tomasse, o telefone tocou e Sônia informou que a equipe havia chegado para montar a mesa.
Enquanto os dois homens trabalhavam com parafusos, Marisa olhou o relógio. Pelo visto eles ainda iam levar um tempo até terminarem e depois instalarem o computador:
— Se você quiser ir almoçar, acho que quando voltar estará tudo pronto.
Antes que Laila pudesse responder, Edgar abriu a porta sorrindo:
— Olá! O bonde para o almoço está saindo...
Marisa respirou fundo tentando aplacar a irritação que sentia sempre que ele abria sua porta sem nem ao menos bater antes. A pobre Sônia não tinha tempo nem mesmo de pegar o telefone para avisá-la. O sorriso dele, que ela conhecia muito bem, fez sua irritação duplicar:
— Acho que você já conheceu Edgar, meu marido.
Laila acenou positivamente com a cabeça:
— O doutor Adriano nos apresentou.
Edgar se aproximou com aquele sorriso cínico, olhando somente para Laila:
— Vamos? O pessoal já está saindo... Vou te apresentar o melhor restaurante que temos aqui por perto.
Parecendo um pouco confusa, Laila perguntou para Marisa:
— Você não vem?
Edgar respondeu rápido, antes que ela conseguisse sequer abrir a boca:
— Marisa é uma workaholic ... Não sai dessa sala nem para comer. Espero que ela não te contamine com essa... Energia...
E riu, como sempre fazia, se achando a pessoa mais engraçada do mundo.
Marisa apenas revirou os olhos antes de voltar a sentar em sua mesa.
Antes de sair, Laila disse para ela:
— Não pretendo demorar... Estou ansiosa para começar o trabalho.
Assim que os dois saíram, foi até o banheiro de sua sala, trancou a porta e sentou no vaso, em cima da tampa fechada. Precisava ficar sozinha para deixar sair a irritação que a tomou, e os dois homens em sua sala impediam.
Com os cotovelos apoiados nas pernas e o rosto entre as mãos, respirou pesadamente, bufou, depois olhou para cima e mordeu a própria mão para conter o grito que queria soltar. Era óbvio que Edgar se engraçaria para cima de Laila. Além de ser “carne nova no pedaço”, era uma mulher jovem e bonita. Mas o que menos precisava era que sua própria fama passasse de apenas “mulher traída” para “mulher traída que divide a sala com a amante do marido.”
Ainda naquela semana procuraria o pai e conversaria com ele sobre a possibilidade de realocar Laila para a sala de outro advogado. Pois mesmo que ela resistisse às investidas de Edgar, Marisa preferia ficar sozinha. Estava acostumada a ter a sala só para ela, tinha seu jeito de trabalhar, suas manias, organizava tudo do seu jeito... Não queria ter que dividir seu ambiente.
Respirou algumas vezes antes de sair do banheiro. Caminhou até a mesa e pegou o telefone, assim que Sônia atendeu, perguntou:
— Você já almoçou?
Quando ela respondeu positivamente, pediu:
— Peça alguma coisa pra mim, por favor? Pode ser o de sempre.
Agradeceu e desligou. Quando a comida chegou, comeu sentada em frente ao computador, enquanto lia as peças de um processo. Já havia terminado quando a porta se abriu e Edgar disse, parado segurando na maçaneta para que Laila entrasse:
— Está entregue, sã e salva.
Marisa nem levantou os olhos da tela, continuou o que estava fazendo. Ouviu o barulho da porta se fechando quando Edgar saiu.
— Por onde eu começo?
Só então olhou para Laila:
— Já está tudo pronto na sua mesa...
Estendeu para ela um papel e explicou:
— Fiz essa relação de processos que vão ficar sob sua responsabilidade a partir de agora. Os substabelecimentos já estão assinados, é só juntar aos autos.
Voltou sua atenção ao próprio computador enquanto Laila se encaminhou para sua mesa, que ficava de frente para a dela.
O dia passou com as duas imersas no trabalho. Marisa saiu para suas reuniões e quando voltou Laila a entregou um relatório sobre todos os processos que passaria a acompanhar. Ficou muito satisfeita com a eficiência dela e, mais ainda, por Laila ser bastante silenciosa. Só falou quando precisou tirar dúvidas com Marisa.
No final do expediente se despediram polidamente. Pegaram o elevador juntas, em total silêncio. Quando chegaram ao estacionamento, cada uma foi para um lado, em direção aos respectivos carros.
Fim do capítulo
Comentar este capítulo:
Deixe seu comentário sobre a capitulo usando seu Facebook:
[Faça o login para poder comentar]