Concussão
Manuela não teve condições de responder. A primeira coisa que ela pensou ao se virar e dar de frente com Julia a encarando foi que seu estado de nervos estava fragilizado demais para aquilo, ela não acreditava que seria capaz de lidar com aquela situação. Provavelmente ela não saberia lidar com aquela situação nunca. Ela não respondeu a Julia porque não sabia o que dizer, não havia o que dizer.
Julia ficou intrigada com a expressão de Manuela. Ela não parecia surpresa, nem com raiva ou qualquer coisa do tipo. Parecia mais que ela não estava ali, como se alguma coisa na cabeça dela fosse mais importante. Elas se olharam durante um tempo que para Julia pareceu interminável e para Manu não o suficiente para ser capaz de encontrar as palavras dentro de si.
— Será que nós podemos conversar? — Julia falou muito nervosa.
Manuela não respondeu imediatamente, ela primeiro colocou o copo sobre a mesa e baixou os olhos durante alguns instantes. Ela precisou respirar fundo para acalmar o turbilhão de sensações que era viver aquele momento. Durante muito, muito tempo, Manuela sonhou em ter aquela oportunidade de ver Julia na sua frente querendo conversar, mas esse tempo havia passado e ela já estava acostumada à ausência deixada pela falta de palavras. Passado era a única coisa que existia entre elas atualmente e Manu não queria mais ter que lidar com aquela conversa.
Ela levantou os olhos e encarou a mulher parada a sua frente. Quando finalmente falou sua voz saiu baixa e rouca, como se as palavras lutassem para sair de dentro dela.
— Eu não acho que a gente tenha algo sobre o que conversar.
Julia liberou todo o ar dos pulmões antes de conseguir voltar a falar. A expectativa pela resposta de Manuela foi tão grande que inconscientemente a arquiteta prendeu a respiração. Julia não era estúpida, ela estava ali como uma intrusa e provavelmente Manu não iria querer que ela ficasse por muito tempo. Acontece que ela estava realmente preocupada a respeito da visita de Mateus, por isso ela se viu obrigada a ser insistente, mesmo com todos os sentimentos que envolviam estar diante de Manuela outra vez.
— Eu sei que você tem todos os motivos para não querer falar comigo. — Julia fez uma pausa para controlar a respiração e reparou que estava tremendo — Mais que motivos, você tem o direito de não me querer aqui e eu entendo isso.
— Então porque você veio? — Manuela falou balançando a cabeça. Como era difícil raciocinar com Julia ali, diante dos seus olhos.
— Eu soube do Mateus e fiquei preocupada com o que ele possa ter dito. — ela respondeu com cautela.
O nome de Mateus fez com que Manuela se lembrasse de várias coisas ao mesmo tempo. Uma delas veio mais forte à memória, o que fez com que a raiva que ela sentia a alguns minutos atrás voltasse a nublar seus olhos, seu melhor amigo e a mulher que ela amava haviam se casado.
— Ele não disse nada que não tenha ficado claro há seis anos atrás. — ela falou com raiva.
Julia assentiu com uma pontada de dor. Cada palavra de Manu era como um toque preciso em uma ferida não cicatrizada. Foi a vez de Julia baixar os olhos por um momento e tentar recuperar o fôlego antes de voltar a falar.
— Mais uma razão pela qual eu me preocupei, ele não tinha o direito de estar aqui. — ela falou com os olhos ainda baixos.
Manu esperou até ela voltar a encará-la antes de dar uma resposta. As emoções dentro dela giravam de forma desordenada e ela mal conseguia raciocinar sobre o que dizer. A única coisa clara para ela era que a irrealidade daquele momento deixaria sequelas.
— A mesma razão que deveria ter te impedido de entrar nessa sala hoje.
Julia olhou dentro dos olhos de Manu e viu o tamanho da raiva contida neles, ela se lembrou de uma época que aquele mesmo par de olhos castanhos só conseguiam transmitir amor quando a olhavam. Mesmo antes delas ficarem juntas, Manu já costumava olhar para Julia com uma intensidade que só os sentimentos imensuráveis são capazes de proporcionar. Agora a intensidade ainda estava ali, mas Julia não conseguia enxergar o amor e aquela percepção fez com que algo dentro dela morresse e se transformasse em uma nova forma de dor. Saber que perdeu Manuela era uma coisa, ver a verdade estampada nos olhos dela era algo muito mais terrivelmente real e doloroso.
— Ainda assim eu entrei. — ela respondeu com sinceridade.
— Porque? — Manu perguntou.
— Você sabe por quê. — ela tentava desesperadamente se manter sobre as próprias pernas e não desabar naquele momento.
— Não, eu não sei. A bastante tempo eu não consigo entender as suas decisões. — Manuela falou de forma dolorosa.
— Eu lamento muito não ter sido capaz de te explicar. — ela respirou fundo para segurar as lágrimas antes de continuar — E se ainda servir para alguma coisa, eu peço desculpas por isso.
— Não serve. — Manu respondeu secando rapidamente uma lágrima que escorreu no rosto.
— Mesmo assim eu achei que devia tentar. — Julia concluiu com um sorriso triste.
— Bom, você já tentou. Então talvez esteja na hora de você ir. — Manuela falou com um tom de voz sofrido, mas decidido. Ela não queria prolongar o que para ela estava sendo uma tortura.
— Você prefere que todas as coisas que você não consegue entender, todas as coisas não explicadas, permaneçam como estão? — Julia perguntou com a voz embargada.
Manuela baixou os olhos mais uma vez. Duas lágrimas insistentes escorreram pelo seu rosto. Ela espalmou as mãos sobre a mesa tentando achar algum equilíbrio. Quando ela voltou a olhar para Julia não foi mais com raiva, seus olhos agora estavam carregados de tristeza.
— Nunca foi sobre o que eu prefiro, sempre foi sobre o que você decidiu. E você decidiu que eu não deveria saber, que eu não teria respostas e eu me acostumei a isso. Agora me parece um pouco tarde para querer inverter as coisas.
Saber que era responsável por aquela dor, por toda aquela tristeza que Manuela carregava, deixou Julia desnorteada. Ela percebeu ali que não estava preparada para lidar com aquilo e que ela sofreria todos os dias por ser culpada de tudo. Ela não foi mais capaz de encarar Manuela e por isso decidiu que era hora de ir embora. Ela caminhou de costas até a porta sob o olhar atento de Manu e antes de sair ela sentiu necessidade de dizer uma última coisa. O medo de nunca mais ter a oportunidade de falar a impeliu a parar e olhar nos olhos da mulher que amava.
— Magoar você foi sempre o que eu nunca superei. Mesmo depois de todo esse tempo, essa é a única ferida que nunca parou de sangrar. E eu me obriguei a não pensar sobre isso porque cada vez que eu pensava, a certeza de que era real me atingia de uma forma tão violenta que me fazia perder o ar. Eu nunca vou me perdoar pelo o que eu estou vendo dentro dos seus olhos agora e eu sei que não faz a menor diferença, mas eu realmente sinto muito. Eu senti desde o primeiro momento, quando eu saí pela porta daquele apartamento aquele dia, e eu vou continuar sentindo pelo resto da minha vida. Eu tive que reaprender a respirar depois que eu te deixei e as vezes eu ainda sufoco.
As lágrimas foram inevitáveis. Julia ainda ficou alguns instantes olhando para o rosto de Manu antes de sair da sala. Manu se sentou na cadeira e sentiu todas as forças se esvaírem, as palavras de Julia rodopiavam na sua cabeça e tinham o gosto salgado de lágrimas e amargo de dor.
**
Quando Julia passou rapidamente pela recepção aos prantos, Pedro e Willian se olharam assustados. Os dois estavam apreensivos com o que poderia estar acontecendo dentro da sala de reuniões, mas acharam melhor não interromper. Quando Julia e Pedro chegaram na iDraw, Mateus havia saído a pouco mais de cinco minutos e eles encontraram com Willian ainda na recepção conversando com os seguranças. Os rapazes começaram a falar sobre a visita repentina de Mateus e não notaram que Julia, assim que soube que Manuela estava na sala de reuniões, saiu de perto deles e pediu informação a um funcionário que passava para chegar até onde a ex-namorada estava.
Julia resolveu não pensar muito no assunto, ela queria ver Manu outra vez e também queria uma oportunidade de falar com ela. Aquele pareceu o momento perfeito e ela seguiu em frente, mesmo com medo do que poderia encontrar. Ela sabia que assim que Pedro sentisse a sua falta ele viria atrás dela, mas resolveu contar com a sorte e o bom senso do primo e acreditar que ele iria preferir não interromper uma possível conversa entre elas. Ela estava certa, mas talvez se tivesse avaliado bem o risco, não tivesse entrado naquela sala afinal. Ela repassava mentalmente a conversa com Manuela enquanto descia no elevador secando as lágrimas.
— Você vai atrás daquela lá e eu cuido dessa daqui até a Amanda chegar. — Willian falou nervoso quando viu Julia passar sem nem olhar para os dois parados próximos à porta.
— Tudo bem, me liga qualquer coisa. — Pedro respondeu e saiu apressado atrás da prima.
Willian respirou fundo e se preparou para entrar na sala, mas antes que ele pudesse tocar na maçaneta a porta se abriu. Manuela parecia visivelmente abalada e o seu ar compenetrado deu ao rapaz a imediata sensação de que ela não falaria sobre o assunto.
— Agora não, Willian. Eu preciso ficar sozinha. — ela falou assim que viu o amigo parado na sua frente.
— Manu, espera. — o rapaz disse enquanto ia atrás dela.
Manuela não parou de andar até entrar na sua sala.
— Não é o momento, Will. — ela falou ao notar que o amigo a havia seguido até ali.
— Não, não, não. Dessa vez eu não vou aceitar essa resposta. — Willian falou decidido.
Manuela não disse nada, sua cabeça estava a mil por hora e ela não iria debater aquela questão com Willian naquela condição. Quando ela imaginou por um segundo, durante a conversa com Julia, que aquele reencontro a deixaria abalada, ela não imaginou que o abalo seria tão profundo. Falar com Julia tinha sido o seu maior teste de resistência até ali e o pior de tudo era a nova confusão de sentimentos que havia se apoderado dela. Willian continuou parado a encarando e só por isso ela resolveu falar com ele.
— Ainda hoje nós conversamos sobre a nossa afinidade quando o assunto é cobranças e julgamentos. Nesse momento isso é tudo que eu quero, que você não me julgue e que especialmente não me cobre. — ela falou com seriedade encarando o amigo.
Se ela tivesse usado qualquer outro argumento o rapaz teria insistido, mas aquelas palavras o desarmaram. Ele sabia que ela tinha as próprias razões e o direito ao silêncio, por mais que ele acreditasse que conversar a faria bem, a escolha final pertencia única e exclusivamente a Manuela. Não havia nada que ele pudesse fazer se ela preferisse se calar.
— Você não precisa passar por essas coisas sozinha, Manu. — ele tentou uma última vez.
— Eu sei que não, mas é a maneira que eu prefiro. Eu vou embora agora. — ela disse pegando a bolsa e indo em direção a porta — Eu vou precisar de uns dias, mas eu não vou desaparecer.
Manuela saiu porta fora e deixou um Willian muito preocupado para trás. Ele ligou para Amanda e explicou o que havia acontecido, depois mandou uma mensagem para o namorado para saber notícias sobre Julia. Will não conhecia todas as nuances daquela história, mas uma coisa para ele havia ficado clara naquele dia: qualquer medida que ele tivesse imaginado para entender o tamanho do sentimento que havia entre Julia e Manuela, jamais seria capaz de explicar o tamanho do terremoto que ele viu dentro dos olhos de Manu.
**
Quando Pedro alcançou Julia, ela já havia saído do prédio e ia andando, aparentemente sem saber para onde ia. Ele a segurou pelo braço e quando ela se virou ele viu no rosto dela sofrimento. As lágrimas que banhavam o rosto da prima pareciam proporcional à dor que ela trazia no olhar. Pedro simplesmente abraçou Julia e a deixou chorar por uns instantes, depois a levou para o carro e seguiu para o apartamento dela.
Julia não disse nem uma palavra enquanto eles estavam dentro do carro, nem quando Pedro abriu a porta para ela depois de estacionar em frente ao prédio onde ela morava ou quando eles saíram do elevador e ela procurou a chave da porta do apartamento dentro da bolsa. Pedro respeitou o silêncio da prima e preferiu deixar ela se acalmar um pouco antes de perguntar qualquer coisa.
— Vou pegar uma água para você. — ele disse depois de fechar a porta.
Julia se jogou no sofá assim que entrou em casa. Ela finalmente havia conseguido controlar as lágrimas, mas a sua cabeça ainda parecia presa em outra dimensão. Um lugar frio e escuro onde sua única consciência era a sua incapacidade de fazer Manuela feliz e onde milhões de alertas piscavam a todo segundo avisando que ela nunca teria o perdão de Manu. Julia foi tirada de seus devaneios pela volta do primo a sala.
— Toma, pega. — o rapaz disse vindo da cozinha e entregando um copo com água para a prima.
Julia pegou o copo da mão de Pedro, mas não bebeu e nem disse nada. Vendo a apatia da prima, o rapaz se sentou ao lado dela no sofá e decidiu que era hora dela falar.
— Olha para mim. — ele disse e esperou a prima se virar antes de continuar — Fala alguma coisa.
— O que você quer que eu diga? — Julia falou olhando para o copo que segurava em uma das mãos.
— Qualquer coisa. Pra começar você pode me explicar pra quê você foi se enfiar naquela sala atrás da Manu. — Pedro foi direto.
— Eu não estava pensando direito. — Julia falou ainda sem conseguir encarar o primo.
— Ju, olha para mim. — Pedro falou.
Julia olhou para o rosto do rapaz e ele notou que as lágrimas haviam voltado. Ele suspirou antes de continuar.
— Eu sei que pareceu esse tempo todo que eu estava tentando proteger a Manu, mas a verdade é que eu sabia que vocês duas se encontrarem ia ser muito doloroso para os dois lados. A prova de que eu estava certo está aí nesse seu chororô. — ele falou secando as lágrimas do rosto da prima.
— Foi tão difícil, Pedro. Você não faz ideia. — ela falou com a voz embargada.
— Eu imagino, vem aqui. — ele disse abrindo os braços e recebendo mais uma vez o choro da prima.
Os dois ficaram abraçados em silêncio por alguns minutos. Quando Pedro sentiu que Julia estava calma novamente ele a afastou e olhou em seus olhos.
— Ju, eu sei que você não estava pensando direito e que a história de vocês duas é muito intensa, mas ir dessa maneira falar com ela não poderia fazer bem para nenhuma das duas. Não é só pra proteger a Manuela que eu não quis entrar nessa história de vocês, eu sei que você também vai sofrer com isso tudo. Por isso eu acho que está mais do que na hora de vocês seguirem em frente, o que tinha pra ser resolvido ficou mais que claro nesses seis anos.
— Falando assim você faz parecer fácil. — Julia falou com amargura.
— Bom, a julgar pelo tempo que vocês passaram sem se ver, realmente deveria ser fácil. — Pedro falou como se fosse algo simples.
— Pedro, gostar da Manu não é uma coisa que eu ligo e desligo a hora que eu quero. Se fosse assim você acha mesmo que eu ia preferir ficar me auto flagelando durante tanto tempo? — Julia falou encarando o primo.
— Ok. Você tem razão, mas é meu papel tentar te dissuadir dessa coisa insana que você tem na cabeça.
— Que coisa insana?
— Essa ideia louca de que você e ela ainda tem uma chance de ficar juntas. Não mente para mim, porque eu sei muito bem que isso está na sua cabeça desde o dia que vocês se encontraram na casa da minha mãe. — Pedro foi incisivo.
Julia não negou. A ideia realmente estava lá e com Pedro falando em voz alta, o desejo que fosse verdade parecia muito mais forte. A arquiteta não queria nem pensar em criar expectativas, ainda mais depois daquela conversa perturbadora com Manuela, mas que a ideia havia passado por sua cabeça várias vezes, ela não podia negar.
Fim do capítulo
Ei, gentes!!!! Mais um capítulo e amanhã tem mais.
Boa semana pra todas e beijo no coração sempre. ♥
P.S: Me lembro de memória que esse foi um dos mais difíceis de escrever e é tudo tenso demais.
Comentar este capítulo:
Marta Andrade dos Santos
Em: 24/06/2024
Perdeu deixa a Manu em paz.
[Faça o login para poder comentar]
jeslima
Em: 24/06/2024
Capítulo cheio de tensão. Esse sofrimento arrastado das duas precisa encontrar um lugar para ser estutado e compreendido. As duas precisam ouvir e se expressar uma para a outra para que tudo isso seja cuidado e para que os rumos e decisões sejam tomados. Entendo que a Manuela tem uma situação muito difícil a enfrentar pela frente, diante de tudo o que fizeram com ela. Entendo também que ela precisa deixar a posição de vítima e enfrentar os próprios sentimentos e a própria decisão de permanecer entrelaçada nesse passado. Mateus e Júlia fizeram a Manuela sofrer, mas ela tem escolhido se apegar a esse sofrimento, mesmo que seja através da fuga.
[Faça o login para poder comentar]
Deixe seu comentário sobre a capitulo usando seu Facebook:
[Faça o login para poder comentar]