Iminência
Julia saiu atordoada da festa de Silvia. Quando chegou ao seu apartamento não foi capaz de se conter, um choro estrangulado, convulsivo, a atingiu como um soco no estômago e a fez desabar ainda no corredor a caminho do quarto. A conclusão de que Manu sabia da sua volta e claramente não tinha a mínima intenção de vê-la foi mais dolorosa do que ela supunha que poderia ser. Depois de seis anos lutando contra aquele sentimento, contra o abismo que a ameaçava desde o término com Manuela, cair parecia, naquele momento, inevitável. Julia mais uma vez se perguntou se era o melhor para ela ter voltado a São Paulo.
Atrelado a tudo isso ainda estavam as palavras de Amanda, que giravam na sua cabeça como um veredito não só da sua falha, mas também como uma sentença da sua impotência. Julia nem tentou resistir à imobilidade que se apoderou do seu corpo e só muito tempo depois conseguiu sair de onde estava, tomar um banho e se deitar para uma noite de insônia, lembranças e autodepreciação.
Sete anos atrás
Amanda observava a amiga na pista de dança há vários minutos. Quando Manuela resolveu sair naquela noite, Amanda não ficou nada satisfeita, mas achou melhor acompanhá-la. A estudante de medicina sabia que a amiga não estava bem e que Julia era o motivo. Olhando para ela naquele momento ela pensou que Manu provavelmente não ficaria nada satisfeita quando descobrisse o que ela havia feito.
Manuela tentava esquecer a raiva que estava sentindo na pista de dança. A moça dançava sozinha com os olhos fechados, ignorando todas as investidas que recebeu naquela noite, ela só queria ficar ali sem ser incomodada por nada nem ninguém. Ela tentava colocar a cabeça em ordem e se convencer que era uma idiotice ficar daquele jeito por causa de uma mulher que nem queria nada com ela. Nesse momento ela sentiu mãos a abraçando por trás de forma íntima e de um jeito difícil de resistir.
Quando Julia entrou na boate, foi direto para a pista de dança. Sabia que Manuela estava lá, Amanda havia contado para ela por telefone. Quando viu ela dançando, linda, no meio de várias pessoas, com os olhos fechados, como se a pista fosse só dela, não resistiu e se aproximou a abraçando por trás de um jeito que tinha aprendido que ela não era capaz de resistir. Quando sentiu o corpo de Manuela se grudando no seu, se movendo no ritmo da música, se esqueceu totalmente de porque estava ali. O efeito foi imediato. Incêndio.
Manuela quase se deixou levar pelo momento. O contato com Julia a deixou instantaneamente excitada e ela teve que se concentrar para não perder o controle. Ter o corpo de Julia colado no seu daquela maneira não facilitava o seu raciocínio. Então ela se lembrou de Felipe, o motivo da sua raiva, e de forma decidida retirou as mãos de Julia da sua cintura e se afastou dela. Antes que conseguisse se afastar dois passos, Manu sentiu seu corpo sendo puxado por Julia.
— Espera. — Julia falou no ouvido de Manu.
Manuela não respondeu e se afastou mais uma vez, decidida a ignorar Julia.
— Não faz assim. Vamos conversar. — dessa vez Julia pegou Manu pelo braço, a obrigando a se virar de frente para ela.
— A gente não tem nada para conversar uma com a outra. — Manuela falou se soltando e indo em direção ao bar.
Julia foi atrás dela. Quando chegou ao balcão, Manu já estava com uma dose de tequila na mão.
— Vamos conversar. — Julia falou pegando a bebida da mão de Manuela.
Manuela abriu um sorriso irônico encarando Julia.
— Vamos fazer assim: você devolve a minha bebida, volta para o seu jantarzinho com o namoradinho perfeito e eu prometo ignorar a sua ousadia de vir até aqui me encher o saco. — Manuela falou tentando pegar a bebida de volta.
— Eu não vou te devolver nada. Eu vim aqui para a gente conversar, mas não vai dar certo se você estiver bêbada. — ela falou impedindo Manu de pegar o copo.
— Qual seu problema, garota? Eu bebo o quanto eu quiser e já disse que não tenho nada para falar com você. Aliás, eu nem sei o que você está fazendo aqui.
Julia respirou fundo antes de responder. Ela sabia que Manu estaria chateada, mas estava difícil manter a paciência. Amanda observava as duas de longe, com medo do que sairia dali.
— Eu já disse que vim para a gente conversar.
Manuela não respondeu. Simplesmente se virou para o barman e pediu outro drink.
— Manu, por favor. Só me escuta. — Julia falou se aproximando dela mais uma vez.
Manuela se afastou imediatamente da aproximação perigosa de Julia e bloqueou os efeitos do jeito doce e íntimo que ela a chamou.
— Fala! — Manu disse tentando não ceder à vontade insana que teve de beijar Julia naquele momento.
Julia baixou um pouco o rosto para esconder o sorriso que surgiu com a reação de Manu. Chamá-la daquela maneira era sempre estratégico e sempre funcionava muito bem. Julia sabia que ela não iria resistir por muito tempo e nem precisava. Era isso que Julia estava tentando explicar para ela. No dia anterior as duas haviam passado a tarde juntas e Manu havia convidado Julia para sair no dia seguinte, acontece que Julia já havia marcado de sair com Felipe, que era seu namorado. Quando a estudante de arquitetura falou o motivo, Manuela não ficou nada satisfeita, as duas discutiram e acabaram não conseguindo se acertar.
A boate estava bastante cheia. As duas mal conseguiam conversar de forma decente com a música tocando naquela altura. Julia queria tirar Manu dali, para elas poderem conversar com calma. O problema era convencer Manuela de que aquela era a melhor escolha.
— Aqui não, vamos sair daqui. — Julia tentou.
— Nem pensar. Eu não vou para lugar nenhum com você. — Manu falou pegando o copo que o barman a entregava.
Julia olhou para ela de forma resignada.
— Tudo bem. Eu vim para te contar que eu estou solteira, mas se você não se interessa eu já vou indo. — Julia falou se virando e indo em direção a porta.
Manuela parou com o copo a meio caminho da boca. Como assim solteira, ela pensou. A sua cabeça tentou assimilar a informação, mas não conseguiu. Ela viu Julia se afastando e correu até ela a virando pelo braço, ficando tão próxima dela que conseguiu sentir o hálito dela no seu rosto. Julia sorriu, sabia que aquela informação mudaria a atitude de Manu imediatamente.
— Como assim? — Manu perguntou séria.
— Solteira. Eu estou solteira, mas não quero ficar assim por muito tempo. Tem uma estudante de publicidade que eu conheci — Julia aproximou a boca do ouvido de Manu — e que anda tirando o meu juízo de várias maneiras. Eu quero muito ficar com ela, mas não sei se ela vai querer. — Julia terminou olhando Manuela nos olhos.
Manu segurou Julia pela cintura unindo os dois corpos. Julia retribuiu colocando os dedos nos cabelos de Manu, a segurando pela nuca de forma perturbadora. O beijo inevitável, abrasador, cálido e incendiário que se iniciou não deixava dúvidas de onde aquela noite terminaria.
**
No dia seguinte Pedro seguiu para o apartamento da prima assim que acordou. O rapaz queria conversar com Julia e se certificar de que ela estava bem. A sua resolução de não se intrometer na vida de Manu continuava a mesma, mas ele também sabia que devia a prima ao menos uma explicação.
Julia não havia pregado os olhos a madrugada inteira, por isso ainda estava deitada quando o interfone tocou. Ciente de que não adiantaria continuar na cama, ela resolveu se levantar e descobrir quem estava lá embaixo na portaria àquela hora em pleno domingo.
Pedro foi autorizado a subir e ainda no elevador tentava imaginar como seria a conversa com Julia. Ele sabia que a prima não estaria em seu melhor momento e também não devia estar nada satisfeita com a forma como Pedro conduziu aquela situação. No fim das contas o rapaz entendia que a prima estava certa por um lado, mas ele também estava. Afinal de contas era ele quem estava no meio do fogo cruzado tentando proteger todos ao mesmo tempo, sem nenhum suporte e com o maior incentivo, vindo de todos lados, para fazer o que ele achasse melhor. E ele não sabia o que achava melhor, não na confusão que era aquela história.
Como era o primo quem estava ali, de forma inesperada, mas não surpreendente, Julia fez apenas uma higiene básica e vestiu um robe sobre a camisola para recebê-lo. Ao abrir a porta notou imediatamente o quanto Pedro estava insatisfeito com aquela situação. O empresário viu nos olhos da prima que ela não havia tido uma noite fácil, apesar da distância e do tempo que passaram sem se ver, ele ainda conhecia bem a mulher que estava em sua frente. Talvez ela negasse, mas o abalo da noite passada tinha sido profundo.
— Entra, Pedro. — ela disse dando passagem para o rapaz.
— Desculpa vir assim, em pleno domingo. Mas eu acho que nós precisamos conversar. — o rapaz falou entrando na sala.
— É, eu sei. — Julia confirmou desanimada olhando para o primo — Vamos para a cozinha, vou preparar um café e a gente vai conversando.
Os dois foram para a cozinha com seus próprios pensamentos. Pedro ocupou uma cadeira na mesa e Julia se manteve entretida ligando a cafeteira. O rapaz não sabia por onde começar e aparentemente Julia também não fazia ideia de como resolver aquilo tudo.
— Eu não sei o que dizer. — Pedro foi sincero.
— Seja sincero, isso será mais que suficiente. — Julia falou se encostando no balcão, de frente para o rapaz.
— Eu devia ter te contado antes. — ele falou com sinceridade.
— Devia. Mas eu imagino que você tenha seus motivos.
— A Amanda te falou sobre isso? — Pedro tentou sondar.
— Ela disse alguma coisa nesse sentido. — Julia foi econômica.
— É tão complicado tudo isso. Tão confuso. — Pedro desabafou.
— Comece me contando como vocês todos se tornaram amigos. — Julia falou.
— Foi por causa do Willian, ele foi o elo que nos reuniu. Você vai ter tempo de conhecer ele melhor, nós estamos juntos a quase três anos agora.
Julia entregou uma xícara de café para o rapaz e se sentou na cadeira de frente para ele.
— Obrigado. — ele falou e depois prosseguiu — Foi nessa época que a gente se reuniu e a amizade do grupo foi se consolidando com o tempo.
— Entendi. Então vocês são um grupo de casais amigos? — Julia tentou de forma cautelosa.
O sinal de alerta na cabeça de Pedro apitou instantaneamente. Ele sabia que a prima iria perguntar sobre Manuela, certamente ela tinha várias coisas que gostaria de saber. Pedro teria que ser cuidadoso.
— Se você quer saber se nós somos todos amigos, a resposta é sim.
Julia percebeu a hesitação do primo. Certamente ele não ia ser a sua fonte de informações sobre a ex-namorada, isso já estava claro, ela queria era saber o porquê.
— Amigos íntimos, pela maneira como a Amanda falou.
— Verdade. Nós somos.
— E você veio até aqui me explicar exatamente o quê?
— Existem dois pontos que eu gostaria de deixar claro. — o rapaz iniciou — Primeiro eu e a Manuela somos próximos. Eu e ela desenvolvemos uma cumplicidade, um carinho um pelo outro nesse tempo. Eu admiro muito a Manu, ela se tornou muito importante para mim e eu quero que você saiba disso. A Manuela é importante para mim, ela é minha amiga, ela faz parte da minha vida.
Julia não respondeu nada. Ela não sabia o que dizer. Ver Pedro falando de Manuela daquela maneira e saber da relação dos dois era algo totalmente fora da realidade e um tanto quanto perturbador. Diante do silêncio da prima, Pedro prosseguiu.
— O segundo ponto é que a minha disposição para tentar restabelecer a nossa amizade é real, mas a Manu não entra nessa história. Eu respeito ela demais para me intrometer na vida dela dessa maneira. Então, não espere que eu vá falar com você sobre ela, por que isso não vai acontecer.
Julia baixou os olhos para a sua xícara de café por uns instantes e quando voltou a encarar o primo tinha um olhar de quem já esperava por aquilo. Como se soubesse que seria daquela maneira.
— Resumindo, você me quer na sua vida, mas não na parte que inclui ela. — ela concluiu resignada.
**
Manuela chegou a São Paulo na segunda-feira de manhã, passou em casa e depois foi direto para a iDraw.
— Bom dia, Teresa. Tudo bem? — Manu falou chegando ao escritório.
— Bom dia, tudo ótimo. Como foi de viagem? — a secretária perguntou com um sorriso.
— Tudo ótimo, todo mundo mandou abraço pra você.. O Willian já chegou? — Manu perguntou já entrando em sua sala.
— Hoje ele não vem pela manhã, ele tem uma reunião fora e só deve voltar à tarde. — ela respondeu acompanhando Manu para dentro da sala.
— Certo. O que você tem para mim? — a publicitária questionou se sentando em sua cadeira.
Manuela passou toda a manhã trabalhando e não teve tempo de pensar nas coisas que a andavam perturbando. Um pouco antes do horário do almoço seu celular tocou, era Amanda.
— Olá, doutora. — ela atendeu com um sorriso.
— Olá. Tudo bem? — Amanda também sorriu.
— Tudo ótimo. Minha família mandou lembranças e uma intimação para uma visita sua e da Isa.
— Bem que eu gostaria, qualquer dia desses eu apareço por lá.
— Sei. — Manu respondeu rindo — Como estão as coisas por aqui?
Amanda avaliou suas opções de resposta antes de responder.
— Tudo na mesma. Só ficamos preocupados por você ter ido pra BH sem avisar.
— Desculpa, eu devia mesmo ter ligado. Pelo menos eu avisei a Silvia que não iria na festa.
— Verdade, ela falou.
— E como foi a festa?
Amanda suspirou antes de responder.
— Você quer saber mesmo como a festa estava ou só quer saber da Julia? — Amanda falou de forma direta.
— Amanda...
— Não tem essa de Amanda. — a médica cortou — A festa foi ótima. A Julia apareceu, nós conversamos, ela foi embora. Fim.
Manuela permaneceu em silêncio, Amanda sabia que ela não perguntaria, mas mesmo assim deveria querer saber sobre o teor da conversa.
— Almoça comigo e eu te conto como foi a minha conversa com ela. — ela sugeriu.
— Não posso. Eu tenho um almoço com um cliente. — Manu respondeu.
— Passa lá em casa mais tarde então.
— Também não dá, já combinei de ir lá na Silvia. Vou conversar com ela sobre tudo.
— Entendo. Essa é uma ótima decisão, porque o Pedro está bastante incomodado de não poder falar sobre isso com ela.
— Imaginei. Eu acho também que é o melhor a ser feito, pelo menos ela vai ficar ciente da situação.
— Falando sobre ficar ciente, o que sua mãe falou disso tudo?
— Você conhece a minha mãe. Choque de realidade. — Manu falou contrariada.
— Ela tem razão, você sabe. E sobre o Mateus, você contou?
— Preferi poupá-la disso.
— Eu sei que você não gosta de ficar falando desse assunto, mas eu acho que já está na hora de você resolver tudo isso.
— E por resolver você sugere o quê? — Manu perguntou com um tom de censura na voz.
— Talvez — Amanda hesitou, sabia que a amiga não ia gostar do que ela ia dizer e ultimamente ela vinha dizendo muitas coisas que não agradavam Manu. Mas era necessário — você devesse considerar se encontrar com ela de uma vez.
— Eu não vou discutir isso com você, nem agora e nem em momento algum. A gente se fala depois.
— Manu...
— Depois, Amanda. Tchau.
Manuela jogou o celular na mesa nervosa. Como a amiga era capaz de sugerir uma coisa como aquela, era a coisa mais ridícula que ela poderia dizer. Manuela se lembrou que Amanda havia conversado com Julia e ficou se perguntando o que será que as duas haviam falado. E ela ainda tinha que se encontrar com Silvia mais tarde para explicar toda a história. A publicitária se recostou no encosto da cadeira e fechou os olhos. Tudo que ela queria era sua vida de volta, sem aquela sensação de apreensão que a acompanhava desde a volta de Julia. Como se alguma coisa fosse acontecer, como se ela fosse voltar a desmoronar como quando foi abandonada. Ela só queria ter paz outra vez.
Fim do capítulo
Ei, gente. Mais um capítulo hoje e seguimos aí com esse caso enrolado dessas duas protagonistas kkkkk (vai dar certo ou não... o tempo vai dizer).
Queria dizer também que estou lendo e amando os comentários, inclusive estou de olho nas propostas e nos pedidos de vocês. Cês não me deixem sem jeito não, hein!? Eu sou mineira, aliás, vão se acostumando aí com o meu jeitinho de falar.
Com calma e paciência a gente vai descobrindo o que vem aí pra Manu, Julia e companhia.
Beijo gigante pra vocês e ótima semana pra todo mundo. ♥
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