Descobertas
— Se eu lhe der a resposta que tenho me dado nos últimos meses, você não vai gostar. — Julia respondeu fugindo do olhar inquisidor de Amanda.
Amanda fechou os olhos por alguns segundos. Era incrível como ela soube desde o início, desde a primeira vez que Manuela havia falado do nome de Julia. Ela soube que era diferente. A maneira como a amiga sorria e gesticulava, as palavras que ela escolhia e as que não conseguia encontrar para explicar o que sentia, o jeito que ela olhava para Julia. E Manuela não estava sozinha, era correspondida na mesma medida de intensidade e entrega que transbordava dos olhos de Julia, mesmo quando ela ainda não sabia que amava Manuela.
Amanda apoiou Manu incondicionalmente. Ouviu todas as lamúrias e os planos mirabolantes que a amiga criava para conquistar a menina dos olhos verdes. Naquela época, Amanda ainda não conhecia Julia, mas quando a conheceu gostou dela imediatamente. Qualquer pessoa que fosse capaz de colocar aquele sorrisão no rosto de Manu, merecia o carinho da estudante de medicina.
— Na verdade, se você for honesta só vai comprovar aquilo que eu sempre acreditei. O que torna as suas atitudes ainda mais indesculpáveis.
Julia não respondeu. Não sabia como.
— Eu nunca vou ser capaz de entender o que levou você a ferir a Manuela daquela maneira.
— Se eu disser que esse vai ser para sempre o meu maior arrependimento, você vai acreditar?
— Eu acredito. Acredito de verdade, mas isso não muda a realidade dos fatos.
— É verdade. Parece que eu estou vivendo no meio deste ‘não muda’ desde que eu fui embora.
Dessa vez foi Amanda quem não falou nada.
— Eu não só me arrependi, Amanda. Eu senti e sinto, como uma ferida viva dentro de mim, o quanto eu errei e o quanto eu sempre vou sofrer por isso.
Amanda não se surpreendeu com as palavras de Julia, nem com as lágrimas e muito menos com a dor na voz dela. O único sentimento que Amanda sentiu foi apreensão, por tudo que ainda viria daquela história.
— Então me explica Julia, porque fica difícil de elaborar qualquer teoria que consiga explicar as suas escolhas e os seus sentimentos.
Julia abaixou a cabeça por alguns segundos limpando as lágrimas. Amanda soube imediatamente que Julia não iria responder e mesmo sem entender ela decidiu não insistir. Julia não tinha obrigação de explicar a Amanda as suas decisões, a única coisa que a médica queria era que ficasse claro para Julia que ela não tinha o direito de procurar Manuela e nem de deixar que Mateus fizesse isso.
— Se você não quer me explicar, ótimo. Voltemos ao nosso problema prático: você voltou a São Paulo com alguma pretensão de reencontrar a Manuela?
Julia engoliu em seco. Não sabia o que responder para Amanda. Sem saída, optou pela verdade.
— Talvez inconscientemente eu tivesse uma esperança, mas eu sei muito bem que eu não tenho direito de procurar ela. — Julia respondeu com dificuldade.
— E o Mateus?
— O que tem ele?
— Você disse que está bem consciente de que você e a Manu não vão se falar. O seu ex-marido pensa da mesma forma? — Amanda foi direta, mas cautelosa. Ela queria saber se Julia sabia ou não que Mateus já havia tentado falar com Manuela.
— Eu não conversei sobre isso com ele, mas acho que ele não faria uma coisa dessas.
— Eu espero que você esteja certa a esse respeito.
— Eu não vou mentir para você, Amanda. Eu não ousaria. — Julia respirou fundo e continuou — Nesse momento tem um monte de perguntas sobre ela que eu gostaria de fazer, várias coisas que eu queria saber. Certamente eu vou continuar curiosa, mas eu sei bem que tudo o que aconteceu é uma barreira grande demais para ser ultrapassada. O Mateus também deve saber.
— Eu agradeço a sua honestidade e fico mais tranquila em saber que você tem consciência do abismo que existe entre vocês duas. Sendo assim, acredito que a nossa conversa termina aqui. — Amanda falou secamente já se levantando.
Julia continuou sentada. O jeito que Amanda a tratou foi educado, mas duro. A arquiteta queria saber sobre Manuela e ao mesmo tempo não queria ouvir com todas as letras que ela não queria vê-la nunca mais. Ainda assim existia uma coisa que ela não pôde evitar de perguntar.
— Ela vai vir? Aqui, hoje. — questionou antes de Amanda alcançar a porta.
Amanda parou o passo por um segundo. E se virou para Julia com a mão na maçaneta antes de responder.
— Não. Hoje ela não virá.
Amanda olhou dentro dos olhos de Julia e finalizou a conversa.
— Acredito que agora, sabendo da proximidade entre vocês, essa sua certeza de que não deve procurar a Manu deve ficar abalada. Quando isso acontecer, lembra de tudo que aconteceu entre a sua partida e o seu retorno. Especialmente as coisas que aconteceram e você não estava aqui pra ver. — e saiu porta fora.
Julia permaneceu imóvel, com uma impressão de irrealidade. Depois de alguns segundos ela reparou que estava tremendo, parecia que o efeito daquela conversa seria mais intenso do que o esperado. Já Amanda voltou ao salão com uma expressão fechada, Isa soube imediatamente que a esposa não estava nada satisfeita com a conversa com Julia.
**
Quando Amanda chegou ao lugar onde os amigos e Isabela estavam, percebeu imediatamente que Pedro estava inquieto e preocupado. O rapaz ainda não estava satisfeito com a sua retirada da conversa travada entre a prima e a amiga, e Amanda não parecia nada disposta a contar como foram as coisas. Para finalizar a confusão, Julia não havia voltado para a mesa.
— Onde está minha prima? — Pedro questionou Amanda.
— Ficou lá, refletindo. — Amanda não se deu ao trabalho de dizer mais que isso.
Restou ao rapaz se levantar e buscar a prima, mas antes que ele alcançasse a metade do caminho viu Julia caminhando rapidamente em direção à saída. Pedro conseguiu alcançá-la já do lado de fora.
— Julia! Espera.
Julia parou e se virou para o primo. Não queria conversar com ele naquele momento, aquela conversa deveria ser feita com calma e de preferência em um lugar mais apropriado.
— Sim. — ela respondeu tentando disfarçar o desconforto com o surgimento do primo.
— Pra onde você está indo? — Pedro disse se aproximando.
— Para casa. Acho melhor.
— Não faz isso, a mamãe não vai gostar. — ele argumentou.
— É justamente por causa dela que acho melhor eu ir.
Pedro não soube o que dizer e Julia prosseguiu.
— Pedro, nós sabemos que a gente precisa conversar. Até pra eu tentar entender o que eu estou sentindo sobre tudo isso, mas agora não é o melhor momento. Eu vou para casa porque eu preciso colocar as minhas ideias em ordem e a gente conversa amanhã. Tudo bem?
Pedro assentiu e se aproximou de Julia pegando uma de suas mãos.
— Me desculpa por isso. Eu tive as minhas razões, mas na realidade fui covarde e não tive coragem de te contar. Eu quero te explicar, eu vou. — ele disse olhando nos olhos da prima, como se quisesse que ela visse a verdade de suas palavras.
— Tudo bem. Não se preocupe, eu só estou confusa. — ela disse retribuindo o aperto de mão do primo.
Julia foi embora e Pedro voltou para a festa da mãe. O rapaz já começava a se sentir incomodado com aquela situação e o pior era que ele sabia que aquele impasse entre Manuela e Julia ainda seguiria causando confusões e desencontros.
O restante da festa seguiu sem maiores emoções. Silvia notou a ausência da sobrinha, mas Pedro a acalmou assegurando que Julia estava bem e logo explicaria o que estava acontecendo. Feliz por o que imaginou ser uma reaproximação entre o filho e a sobrinha, Silvia não fez maiores questionamentos. Quanto a Amanda, restou à doutora a certeza de que as coisas estavam mais complicadas do que ela imaginava e o temor de que Manuela e Julia se machucassem ainda mais com o que estava por vir.
**
Manuela chegou a Belo Horizonte sábado pela manhã. Ela adorava voltar à casa dos pais, se existia um lugar onde era bem—vinda sempre, era ali. Ela gostava do clima e adorava a comida que só era boa quando feita em Minas. Na chegada ao aeroporto ela teve certeza que aquele era o lugar onde deveria estar. Marcos, seu irmão, a esperava no aeroporto.
— Olá. — ela disse com um sorriso abraçando o irmão.
— Fala sério, o que pode ser melhor do que ser recebida por mim no aeroporto? — ele respondeu retribuindo ao abraço da irmã.
— Como a sua mulher aguenta tanto convencimento.
— Concordando com tudo que eu digo. — ele disse pegando a pequena mala que ela trazia e seguindo em direção a saída para o estacionamento do aeroporto.
Manuela riu e não se deu ao trabalho de responder.
— Não precisava ter vindo me buscar. — ela disse enquanto eles caminhavam.
— Eu quis vir, a gente vai almoçar na mamãe hoje. Aí eu levei a Débora para lá e resolvi vir te buscar.
— E como está a minha cunhada?
— Cada dia mais linda. — ele respondeu com um sorriso.
Os dois seguiram para a casa dos pais conversando e implicando um com o outro. Marcos era mais velho que Manuela, os dois eram bons amigos e estavam sempre em contato um com o outro. A família da publicitária, embora morasse toda em Belo Horizonte, fazia parte da sua rotina. Eles estavam todos em contato e Manuela ia a casa dos pais ao menos duas vezes por mês.
— O pacote está a salvo. — Marcos falou assim que eles entraram na casa.
— Cala a boca seu otário. — Manuela respondeu.
— Filha. — Alice, mãe de Manuela, foi direto até a filha para recebê—la com um abraço.
— Oi, mãe. Como você está? — Manuela perguntou dentro do abraço.
— Bem e você, tudo certo?
Manuela concordou com a cabeça ao mesmo tempo em que o seu pai entrava na sala. Ao ver a filha ele sorriu e foi cumprimentá-la com um abraço.
— Ok. Chega dessa recepção. — Manu disse depois de abraçar a cunhada que também chegou na sala — Até parece que eu nunca venho nessa casa. — completou se jogando no sofá.
— Quem vê assim até pensa que ela não gosta desse amor familiar. — Marcos falou se sentando ao lado de Manu.
— Eu não gosto mesmo, mas sou educada. — ela disse de maneira debochada.
— Olha ela querendo mais amorzinho. Vem aqui maninha, deixa eu te abraçar. Não precisa ficar implorando. — Marcos falou se jogando sobre ela no sofá beijando seu rosto.
— Saí daqui, Marcos. Para de babar na minha cara, seu nojento. — ela falou tentando se esquivar.
— Ok. Chega, garotos. Manu, o que você quer fazer hoje? — perguntou Augusto, pai de Manu.
— Nada de especial, papai. Só ficar em casa, eu vim por que preciso descansar.
Alice observou a filha e sentiu que havia alguma coisa errada com ela. Se Manu estava com algum problema, certamente ela estava ali porque queria conversar. Alice resolveu que na primeira oportunidade chamaria a filha para uma conversa particular.
**
A família passou um dia agradável, Marcos e Débora haviam ido embora no final da tarde. Alice estava procurando Manuela pela casa para finalmente questionar a filha sobre o que estava acontecendo, encontrou a publicitária no escritório com um livro nas mãos.
— Posso entrar? — Alice perguntou ainda da porta.
— Claro, mãe. Estava só olhando uns livros. — Manu respondeu sorrindo para a mãe.
— Senta aqui, filha. Vamos conversar um pouquinho. Com a casa cheia, a gente nem teve um minuto para colocar o papo em dia. — Alice falou se sentando no sofá no canto da sala.
— Sim, dona Alice. Vamos ao interrogatório.
Alice riu e acariciou o rosto da filha. Mãe de dois filhos, ela aprendeu a reconhecer todas as variações de humor dos dois e os significados delas. E Manuela era, desde a infância, a que tinha as mais complexas emoções e o hábito de guardá-las para si. Alice sempre soube que Manu iria sofrer por isso e tentou se preparar para quando isso de fato acontecesse, mas nunca era fácil ver a filha lutando para guardar coisas que ela devia colocar para fora.
— Não é interrogatório. Uma mãe deve ter pelo menos o direito de saber como a filha está. Você não acha?
— Claro que sim. Eu estou ótima. Muito trabalho e muito cansaço também, do jeito que eu gosto.
Alice respirou fundo e decidiu ser direta.
— E qual é o motivo dessa ruguinha de preocupação aqui? — Alice disse colocando o dedo na testa da filha
Manuela baixou os olhos. Ela não queria preocupar a mãe, não depois de todos aqueles anos. Não era possível que ela iria voltar outra vez àquela história que já devia estar esquecida e enterrada. Vendo a inércia da filha, Alice continuou.
— Se você não me disser do que se trata, eu não vou poder te ajudar.
Manuela hesitou. Respirou fundo. Tentou acalmar o coração. E mesmo assim parecia sufocar.
— Julia. — Ela disse com os olhos fechados, com uma dor tão grande na voz que sua mãe segurou sua mão tentando ampará-la.
Julia era sinônimo de sofrimento para Manuela e Alice sabia disso. Ela se lembrava bem da viagem às pressas que teve que fazer à São Paulo quase seis anos antes. Se lembrava de ver a filha lutar com tudo que tinha para se reerguer, mas depois de Julia ela nunca mais foi a mesma. O estrago do término tinha sido proporcional a felicidade vivida durante o namoro, grande demais, intensa demais, destrutiva demais. E Manuela volta e meia ficava triste, como se faltasse algo ou alguém. Ela não admitia, não com todas as palavras, mas Julia ainda era uma ferida aberta.
— O seu problema é e sempre será que você é passional demais, Manuela. — ela suspirou e prosseguiu — Em algum momento você vai ter que superar essa história. Você tem consciência disso, não é?
— Você fala como se eu nunca tivesse tentado. — Manu respondeu amargurada largando a mão da mãe.
— Não foi isso que eu disse. Mas o que houve dessa vez?
Manuela respirou fundo mais uma vez. Como era difícil falar sobre Julia sem se abalar.
— Ela voltou a morar no Brasil. — ela falou baixo, pausadamente. Era como se ela finalmente tomasse consciência desse fato — Mas, por favor, não foi para falar nesse assunto que eu vim até aqui. Foi para esquecer.
Alice se surpreendeu. Aquele era, definitivamente, um problema que ela não esperava encarar depois de tanto tempo, ainda mais levando em consideração o detalhe que atendia pelo nome de Mateus Bergmann Köller.
— Realmente, não foi para falar que você veio, foi para ouvir. Ouvir as verdades que só eu tenho coragem de lhe dizer.
Manuela levantou contrariada.
— Não adianta agir como uma mocinha contrariada, sempre me orgulhei da fortaleza de mulher que você é. Além do mais, se você quisesse alguém para passar a mão na sua cabeça, teria ficado em São Paulo e procurado a Amanda.
Manuela olhou para mãe. Aquela era sem dúvida a mulher que ela mais admirava no mundo. A mãe sempre foi o lugar em que ela achou carinho e compreensão, Alice Vidigal era a pessoa mais incrível que Manu conhecia. As duas tinham em comum a força, a determinação e a beleza. Manuela era uma cópia de Alice, mas a mãe sempre enaltecia as características que as diferenciavam.
— Filha, você vem para cá do nada, com essa cara de quem está carregando o mundo nas costas e vai me dizer que está tudo bem? — Nesse momento Alice já estava de frente para a filha segurando suas mãos — Eu não sei se você quer enganar a mim ou a si mesma. Eu sempre esperei o seu tempo, não é agora que eu vou mudar. Só que você precisa enfiar nessa sua cabeça dura que guardar as coisas para você não vai ajudar a resolver o problema e definitivamente não vai fazer a dor passar.
— Eu não sei o que você espera que eu responda, mamãe.
— Seja sincera consigo mesma e admita que a volta dessa mulher mexe com você muito mais do que deveria.
Manuela não respondeu, simplesmente se afastou da mãe se aproximando da mesa e se recostando nela, ainda de pé.
— Foi por isso que você não foi ao aniversário da Silvia?
— Sim. Certamente ela vai tá lá e eu não sei se quero me encontrar com ela.
— Bem, por mais que eu deteste o fato dela aparecer na sua vida novamente, eu preciso ser realista. Dada a proximidade entre você e o Pedro, você fatalmente vai se encontrar com ela em algum momento.
— Eu já sei disso, só achei melhor não fazer isso no dia do aniversário da mãe dele. Silvia é uma amiga querida, eu jamais atrapalharia algo que a deixou tão feliz.
— Você tem razão. Agora me conta sobre a volta dela, ela veio para ficar? E o marido?
Manuela explicou para Alice o que sabia até aquele momento, mas preferiu omitir a tentativa de Mateus de entrar em contato com ela. Ela percebeu a preocupação estampada nos olhos da mãe e se odiou por deixar ela daquela maneira. A conversa serviu para mostrar para Manu que a despeito de todas as emoções que andavam a sobrecarregando nos últimos dias, ela poderia ultrapassar aquela tormenta. Talvez mais despedaça e machucada, mas ainda assim de pé. Só faltava fazer o coração entender o que a cabeça já começava a aceitar, reencontrar a ex-namorada e seguir vivendo.
Fim do capítulo
Falei que voltava hoje e aqui estou eu e a resposta da Julia.
Bom resto de fim de semana, povo.
Beijo no coração sempre. ♥
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jeslima
Em: 17/06/2024
Aparentemente, nem Manuela nem Júlia tiveram a coragem para lidar com a complexidade dos seus sentimentos uma pela outra todos esses anos. O resultado disso tem sido a constante fuga, o não dito, a falta de diálogo consigo e com as pessoas do entorno e muitas questões e sofrimentos em aberto. Enquanto as duas não lidarem com tudo isso, esse sofrimento todo permanecerá permeando a vida delas. Bora resolver, gente!
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Marta Andrade dos Santos
Em: 16/06/2024
Alguém avisa que vai dá BO com passagem em HGE e cemitério.
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