Capitulo VI
Os efeitos do fim daquela noite ainda pairavam sobre mim. Meu corpo relutava em se acalmar, minha mente insistia em repassar com deleite cada cena do espetáculo particular que Adélia havia me proporcionado. Os ecos de sua voz arrepiavam minha pele, sentia-me sensível como nunca. Temendo ceder aqueles impulsos, aproveitei que ela ainda dormia para me afastar de tamanha tentação. O banho gelado e o vento fresco da madrugada foram incapazes de amenizar o calor que persistia em queimar meu corpo. A fumaça da cigarrilha de canela entre meus dedos desenhava bonitas espirais no ar – uma inútil tentativa de aplacar meu anseio. Adélia dominava cada canto da minha mente sem piedade. Eu ansiava pelo encontro de nossas peles desnudas, de sentir o aperto de seus dedos marcando-me inteira, de me fartar no sabor de sua boca outra vez. Desejava poder tocá-la, demoradamente.
Em meio a delírios, vejo o sol despontar tímido no horizonte como o prelúdio de um novo dia. Uma última longa tragada e decidi colocar meu corpo inquieto em movimento, focando minha mente em algo além da bela mulher adormecida em minha cama. Imersa em pensamentos, preparo com verdadeira dedicação o desjejum sobre a longa bancada de mármore negro no centro da grande cozinha. O cheiro agradável do café colombiano impregnava o ar, convidativo e familiar.
— Bom dia, Eva! – sobressaltei de susto ao ouvir a voz rouca de sono. Escorada no batente do arco de entrada da cozinha, o motivo da minha distração sorria divertida vagando os olhos negros por meu corpo envolto apenas num fino robe preto de seda. Sua inspeção descarada me fez olhá-la com a mesma lentidão e deleite. Adélia vestia apenas um blusão branco simples que mal cobria-lhe as coxas grossas. Seus cachos volumosos lutavam para escapar do coque desleixado, deixando à vista seu lindo rosto e pescoço. Ver tanto de sua pele sedosa incitava meus pensamentos a voltarem a percorrer caminhos perigosos. Por isso, foquei em algo mais simples: sua ousadia em vasculhar meu closet, em busca de algo para se vestir, mesmo que eu tenha colocado um robe ao seu lado na cama. Essa constatação me arrancou um sorriso afetado. Mulher atrevida!
— Bom dia, diosa¹! – respondi em meio a um suspiro admirado. O sorriso em seu rosto aumentou, irradiando promessas terríveis. Ela simplesmente não parava. Maldita provocadora! — Não sabia que ser furtiva estava no rol de suas habilidades, Adélia. – digo tentando camuflar minha inquietação.
Apesar da dissimulação implícita na minha frase, o arquear intenso da sobrancelha desenhada dela confirmou que ambas sabíamos que a implicância não era sobre sua aparição repentina na cozinha. Havia um tom dosado de desafio nas minhas palavras, um que eu sabia bem que ela não se negaria a rebater com criatividade.
— Em minha defesa, só estou usufruindo da hospitalidade que me foi oferecida. – respondeu dando de ombros, sentando-se no banco atrás da bancada a minha frente. — Seria muita desfeita, não?! – completou, em falsa inocência.
Depois dos eventos da noite anterior, agora enxergava Adélia sob outra perspectiva e não era, exclusivamente, pela performance sensual. Observar a mudança de mulher afável para, inesperadamente, selvagem foi algo impressionante. Não era como se meus alertas de cuidado não fossem acionados em sua presença, principalmente quando seus olhos eram como uma maré revolta prestes a me engolir viva. O perigo que pairava sobre ela tinha algo a mais. Ao contrário de Cassandra, que exalava perversidade crua – daquelas de gelar a alma, Adélia se mostrou uma verdadeira força da natureza, transitando facilmente entre calmaria e tormenta. A nuance de temperamentos, tal como acontecia com eventos naturais, foi imprevisível e devastadora. Presenciar cada uma das camadas que a compunham, ajudava a acabar com qualquer esperança mínima que eu tinha de sair ilesa de seus efeitos. Não bastasse atormentar minha sanidade, ela parecia querer aniquilar qualquer resquício de prudência que eu lutava bravamente para manter. Soava injusto como ela conseguia mexer comigo de maneira tão intensa com atos simples. Ninguém nunca havia chegado perto de me fazer sentir o que ela fez com tão pouco, sem sequer um toque.
— Hum! – digo rendida, semicerrando os olhos em sua direção. Ela sorriu satisfeita com o estado caótico ao qual me deixara. — Adélia… sei que já conversamos sobre, no entanto, não consigo parar de pensar qual é o seu vínculo com o casal pesadelo. Desculpe voltar nesse assunto, mas realmente estou curiosa. – perguntei, oferecendo-lhe uma xícara de café, a qual ela aceitou prontamente.
— Garanto que não é nada parecido com o seu, se essa for sua preocupação. – respondeu divertida, me arrancando um arfar exagerado. — Alguns projetos da minha família contaram com uma pequena parceria com a construtora deles. Daniel acabou desenvolvendo uma amizade com eles durante o processo. – conta, com uma careta desgostosa.
— Eles são, convenientemente, sociáveis quando querem. Não é uma surpresa. – comento, compartilhando do desagrado.
— Mathias, talvez, mas Cassandra não faz nenhum esforço em ser minimamente agradável. O mais engraçado nessa história é como eles conseguem manter essa fachada tão bem. – emendou, especulativa. —Ainda me pergunto como você conseguiu se envolver com aqueles dois, mesmo sendo evidente o quão detestáveis eles são. Beleza nenhuma compensa a falta de caráter.
— De fato! – concordei. — Seria mentira se eu dissesse que não percebi a péssima índole de ambos, só não passou pela minha cabeça que teria tantos problemas para encerrar um envolvimento declaradamente raso e momentâneo. – confesso. — Agora só os quero o mais longe de mim!
— É como as más línguas dizem, antes tarde do que nunca! – brinca.
Em algum momento durante nossa conversa, o telefone de Adélia tocou, fazendo-a se levantar e pedir licença para atender a chamada. Aproveitando o momento, ajeito a bagunça do nosso café da manhã escutando-a conversar em outra língua com a pessoa do outro lado da linha. Mesmo não entendendo o que ela falava, pude notar o carinho e respeito em sua voz. De certo era alguém muito querido. Pouco tempo depois, ela retornou se desculpando, pois, teria que ir embora, já que havia se esquecido de que tinha um encontro marcado com sua avó. Após se apressar, se arrumando no andar de cima, nos despedimos com um aceno comedido e a promessa de nos vermos em breve.
Meu sábado transcorreu sem muita agitação. No domingo, depois de uma breve reunião online com Sabrina, onde repassamos os feedbacks sobre o evento e as projeções para o início das exposições, decidi encher a banheira para um banho relaxante. A noite avançava lentamente do lado de fora, tingindo a cidade em tons escuros. A parede de vidro que ia do chão ao teto do meu banheiro, proporcionava um belíssimo show noturno. Aquela cena pedia a companhia de um bom vinho, então, enquanto a água se acumulava devagar na hidromassagem, fui até a adega para escolher a garrafa que me acompanharia.
De volta ao cômodo agora repleto de uma leve névoa de vapor, me despi das roupas ouvindo os áudios entusiasmados de Thomas me contando de suas aventuras com a mulher que havia conhecido na noite passada. Quando estou prestes a ser acolhida pelo calor agradável da água aquecida, a campainha irrompeu por cima da música suave tocando no sistema de som que soava em todo o loft. Contrariada, novamente me envolvi no roupão, outrora pendurado ao lado da banheira, indo lentamente até a porta pensando quem é que poderia estar ali. Com toda a certeza era alguém cuja presença fora previamente autorizada na portaria, do contrário não teria subido tão rápido.
— Mas que grata surpresa! – digo com entusiasmo, ao abrir a porta de entrada e dar de cara com Adélia. Como sempre, a mulher trajava roupas elegantes desafiando as leis da gravidade sobre saltos altíssimos.
— Espero não estar atrapalhando. – diz casualmente, entrando no apartamento quando lhe dei passagem. — Trouxe o jantar, como forma de desculpa pela visita inesperada. – emenda, mostrando o pacote com a logo do bistrô Delgado.
— Não precisava se incomodar, sua presença é sempre bem vinda, Adélia! – tranquilizei-a, enquanto ela me presenteava com um sorriso radiante. Como podia ser tão bonito!
— Vejo que a interrompi, se preferir pode terminar seu banho, enquanto ajeito a mesa com nosso jantar! – sugeriu meio sem jeito, quando reparou que eu vestia um roupão felpudo branco.
Não consegui segurar o sorriso malicioso diante do seu embaraço. Era engraçado como naquele momento ela em nada se parecia com a mulher que me levou à loucura, na outra madrugada. Havia uma oportunidade ali, logo percebi, de devolver as provocações deliberadas as quais ela havia me proporcionado. Avançando com lentidão calculada, me aproximei de Adélia, passando as pontas dos dedos vagarosamente pela borda do tecido envolvendo meu corpo, abrindo uma pequena – mas tentadora – brecha, expondo parte do vale dos meus seios. Qual era mesmo o ditado, olho por olho e dente por dente?! Eu podia sentir a carícia quente daqueles olhos expressivos acompanhando meus movimentos. Ávidos. Desejosos. Ah sim, eu estava gostando de virar o jogo!
— Tenho uma ideia melhor… – assoprei sensualmente, a centímetros de sua boca. — Você pode me acompanhar! – convidei-a a ceder a tentação. Meu corpo já ardia de pura expectativa. Desde o momento em que Adélia havia me feito telespectadora de seu prazer, a insanidade de estar com ela, intimamente, vinha assombrando meu juízo, me incitando a ser mais eloquente. Coragem, Helena!
— Eva… – suplicou, rouca. — Não é que eu não queira, porque quero muito, esteja ciente, mas não vou colocá-la outra vez numa situação de desconforto. – completou, cautelosa.
Sua relutância me divertiu, e seu cuidado aqueceu meu coração. Embora soubesse que ela tentava trazer um pouco de lucidez para nós duas, já havia tomado minha decisão, e aquele era mais um passo em direção a esse objetivo. Precisava demonstrar a reciprocidade dos meus sentimentos, mostrá-la o quão única ela era, que estava disposta a ultrapassar os limites que impus a mim mesma por medo, mesmo que ela não soubesse a verdadeira razão por trás disso.
— Estarei te esperando. – decretei, não deixando espaço para quaisquer dúvidas sobre quais eram minhas pretensões. — Não demore, ou a água irá esfriar, e nós não queremos que nada nessa noite seja fria, não é mesmo senhorita Zwane? – sentenciei, depois de abrir por completo o roupão, dando-lhe a visão privilegiada do meu corpo desnudo sob o tecido macio.
Me afastei da mulher surpresa e arfante, indo em direção as escadas. Querendo instigá-la por completo, quando alcancei o meio da escada, num último ato de ousadia me desfiz do roupão deixando-o cair, revelando todo meu corpo num convite claro que não aceitava recusas. Antes de desaparecer pelos corredores do segundo andar, pude ouvir o praguejar incontido de Adélia. Aproveito os minutos sozinha para jogar sal grosso junto aos outros sais de banho na hidromassagem, agora completamente cheia. Me permitiria compartilhar o que quer que viesse como consequência, mas o faria com precaução.
Eu me entregaria, e por Adélia, valia a pena arriscar.
Devagar, sentei-me escorando as costas na beirada do aço esmaltado da espaçosa banheira, aguardando ansiosa pela presença da outra mulher que não tardou a entrar no cômodo. Sua postura sempre tão altiva, transparecia sua luta entre insegurança e desejo. Ajeitei meus cabelos num coque desleixado, cedendo-lhe um sorriso encorajador. Seus ombros caíram lentamente após um suspiro vencido, enquanto suas mãos marcadas pelas veias saltadas se desfaziam das peças de roupas em seu corpo volumoso. Assim como da primeira vez, Adélia não me poupou do espetáculo de vê-la se despindo. A iluminação do ambiente fazia sua pele negra reluzir como a de um ser celestial. Naquele momento, me sentia como uma súdita adorando uma divindade. Meus olhos se perderam nas curvas generosas, enquanto ela vinha em minha direção, entrando na água. Sem que eu precisasse dizer qualquer palavra, Adélia mergulhou suas mãos levando um punhado do líquido translúcido sobre a cabeça e ombros. O ato prendeu minha atenção, fazendo meus olhos seguirem o caminho pecaminoso que as gotas faziam em sua pele retinta. Aquele gesto despretensioso, me fez ter a certeza de que eu não sairia viva daquela experiência.
Adélia, aparentando certo contentamento, se aproximou de mim, acomodando-se em meu colo com uma delicadeza quase inexistente em relação à intensidade que emanava de nossos corpos. O seu olhar cauteloso me garantia que uma simples reação negativa seria suficiente para interromper nosso contato. Coloquei as duas mãos em seu quadril, de forma hesitante mas determinada, puxando-a para mais perto, tentando demonstrar que não havia mais lugar para relutâncias tolas. O sorriso caloroso nos lábios cheios foi demais para mim. Tomei sua boca com uma vontade desmedida, iniciando uma dança entre nossos lábios, cedendo mordidas e sorrisos provocantes que terminaram de nos jogar naquele precipício de luxúria e entrega. Durante nosso beijo apegado, as sombras das lembranças desagradáveis que a rondavam, iam diluindo com a água e o sal banhando nossas peles, abrindo espaço para a avalanche de prazer e carinho que transbordavam de uma para a outra em demasia.
Finalmente, sob o alcance de suas mãos territoriais, marcando minha pele com desejo e reciprocidade, me permiti ser tocada como a muito tempo não havia sido.
Fim do capítulo
¹ Deusa, em espanhol
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