Calmaria
Manuela batucava com os dedos no volante do carro em frente ao hospital em que Amanda trabalhava. Ela não estava nervosa, mas não podia negar que estava tensa com o que teria que conversar com sua amiga. Quando Amanda se aproximou do carro e abriu a porta do passageiro para entrar, Manu respirou fundo e se preparou mentalmente para o que viria a seguir.
— Oi. Desculpa te fazer esperar, você sabe como é nesse hospital.
— Sem problemas. Fiquei aqui imaginando você se arrumando para sair enquanto colocava o coração de alguém no lugar com uma mão e me mandava mensagem com outra. — Manu falou séria.
— Às vezes eu queria saber de onde vem tanta criatividade nessa sua cabeça, pra fazer as piadas mais absolutamente sem graça do mundo inteiro. — Falou enquanto colocava o cinto.
Sorrindo enquanto dava partida no carro Manuela respondeu.
— Dom. O seu, colocar corações no lugar. O meu, criatividade. Cada um se vira com o que pode.
— Sei... Vamos almoçar onde?
— Surpresa, doutora.
Amanda reparou que apesar das piadas de sempre, o mesmo jeito sério de falar quando estava se divertindo às custas de alguém, a publicitária estava inquieta. Certamente nem um pouco satisfeita de falar sobre Julia. A intimidade adquirida depois de tantos anos de amizade permitia uma relação de grande cumplicidade entre as duas. Manuela tinha o hábito de escapar das relações sempre que elas tendiam a ficar sérias demais, mesmo antes de Julia ela já era assim. Mas com a insistência cordial de Amanda e a vantagem de conhecer a publicitária desde a adolescência, ela conseguiu superar essa barreira e como prêmio pela perseverança ela conseguiu a total confiança de Manu e vice-versa. Ainda assim, a natureza de Manu volta e meia falava mais alto e ela se fechava para qualquer investida da médica em discutir sobre determinados aspectos de sua vida.
— Quando você falou surpresa imaginei algum restaurante novo, não a sua casa. — Amanda disse enquanto colocava sua bolsa sobre o sofá da sala do apartamento da amiga.
— Bem, eis a surpresa. Eu superei todas as suas expectativas pelo menos. — Falou enquanto sorria e servia uma dose de uísque no mini bar que ficava na sala.
— É. Não acha que está muito cedo para beber?
— Provavelmente. — Disse enquanto tomava um gole da bebida — Por isso melhor você não me acompanhar.
Amanda sabia ler aqueles sinais. Quanto mais Manuela mostrava o seu desagrado em estar naquela situação, mais ela tinha absoluta certeza que sua amiga precisava encontrar uma maneira de superar o passado.
— A Joana deixou nosso almoço pronto, vamos almoçar e conversar. — Disse a publicitária já a caminho da cozinha.
Já sentadas à mesa, elas começaram a falar sobre a volta de Julia. Amanda já imaginava que a amiga seria taxativa no que dissesse respeito ao assunto intocável de seis anos, mas mesmo assim sabia também que ela precisava falar, só não tinha percebido ainda.
— Nós teremos essa conversa e depois não falaremos mais sobre o assunto. — Sentenciou a publicitária encarando a amiga.
— A julgar pelo seu estado de espírito, duvido que essa conversa possa ser de algum proveito.
— Não é culpa do meu humor, a verdade é que falar sobre esse assunto não pode ter mesmo nenhum tipo de relevância. Menos ainda algo que possa se aproveitar.
— Ainda assim você não se recusou a falar sobre ele quando eu sugeri. — Acusou Amanda.
— Por causa dos acontecimentos recentes eu achei melhor falarmos logo sobre isso, afinal você não iria desistir até se certificar de que eu estou bem.
— E você está?
— Como você pode observar continuo da mesma maneira que tenho estado durante todos esses anos: muito bem, obrigada! — Disse com ironia e sorriso um de lado.
— O seu destempero atesta muito bem as suas palavras.
— O que você espera que eu diga, Amanda? Porque honestamente eu não sei o que você quer de mim.
Amanda olhou dentro dos olhos da amiga e com um suspiro de exasperação entendeu que não seria nada simples fazer Manuela falar.
— A última vez que nós conversamos sobre a Julia faz tanto tempo que eu até me esqueci que ela poderia voltar, mas ela voltou. E você pretende fingir que isso não te afetou? — Indagou Amanda.
— Eu não pretendo nada. Essas são conclusões que você está tirando sozinha.
— Baseado nas suas atitudes! Você sumiu durante dois dias e a julgar pela sua cara essa dose de uísque não é a primeira que você bebe pra tentar engolir o fato de não saber lidar com como a notícia da volta dela te afeta.
Manuela se ajeitou na cadeira encarando a amiga. Amanda parecia disposta a ir até o fim com a tentativa de fazer a publicitária ceder e falar o que realmente estava sentindo. O que a médica não entendia é que ela não sabia o que dizer, desde que tinha recebido aquela informação Manuela não sabia como agir, ela sequer havia parado para pensar em como aquilo poderia afetar a sua vida.
— Nós sabemos que eu estou certa, Manu.
— Ainda assim eu não sei o que dizer. — Falou Manu se levantando da mesa sem tocar na comida. Amanda a seguiu em direção à sala.
— Se você veio até aqui esperando que eu chore e fique me auto flagelando pelo passado, é melhor a conversa acabar por aqui, porque isso não vai acontecer.
— Não me trata como uma estúpida, Manuela. Você quer fingir para si mesma que está tudo bem, ótimo. Mas não pense que você me engana.
A publicitária esfregou o rosto com uma das mãos e se sentou no sofá respirando fundo.
— Ok. Quando você me contou sobre a volta dela eu confesso que fiquei em choque. Eu não esperava por isso, não depois de tanto tempo. Eu resolvi tirar dois dias de folga, coisa que eu já estava querendo fazer há alguns dias, e descansar. E isso é tudo.
Manuela respirou fundo e olhou nos olhos de Amanda, que havia se sentado de frente para ela no outro sofá.
— Não há mais o que dizer, Mandys. Eu me surpreendi e pronto. Não acho que isso precisa ser discutido.
— Manu, até quando você vai manter a Julia na sua vida?
— Eu não a mantenho na minha vida. Há seis anos ela me deixou e eu não pretendo que ela retorne.
— Você tem mentido para si mesma, todos esses anos, e o meu medo é que agora que ela voltou pra cidade você se perca como quando ela foi embora.
Manu se levantou e passou a andar pela sala. Ela não queria falar sobre aquilo, ela queria deixar tudo como estava. Ela não queria nem pensar na possibilidade de Julia procurá-la ou tentar qualquer aproximação. Se Amanda temia, Manuela estava apavorada com os fantasmas do seu passado.
— Isso não vai acontecer, está bem!? — Manu afirmou nervosa. — Eu não vou permitir. Eu sou outra pessoa agora, naquela época eu não passava de uma menina que não sabia lidar com os meus sentimentos.
— E agora você sabe?
— Talvez eu ainda não saiba lidar com o sofrimento daquela época, mas com a mais absoluta certeza eu sei como lidar com a minha vida agora.
Amanda encarou a amiga e viu no rosto dela a já conhecida determinação. Uma característica que ela sempre admirou, mas naquele momento o fato era que ela temia que a determinação de Manu acabasse por levar sua vida para o mesmo limbo em que ela havia estado depois do término do relacionamento com Julia.
— Me promete que se em algum momento, pela razão que for, isso te afetar mais do que você pode suportar, você vai conversar comigo?
Manu voltou a se sentar e olhou para a amiga com um sorriso triste.
— Eu sei que naquela época eu poderia ter me perdido muito mais, não fosse pelo seu esforço em me resgatar. Nós duas sabemos o quanto foi difícil e eu não pretendo voltar a viver aquilo.
Manuela respirou fundo e continuou.
— Eu não sei o que vai acontecer, mas você não precisa se preocupar. Eu não quero voltar a falar sobre isso, eu quero continuar a minha vida e só. Mais se te deixa mais tranquila, você tem a minha palavra de que eu vou conversar com você seja lá o que for que aconteça. Está bem assim?
Amanda concordou com um aceno de cabeça. As duas ainda ficaram no apartamento por mais algum tempo. Manuela deixou Amanda no hospital e voltou para o escritório. A natureza de Manuela a impelia a não deixar que a sua vida parasse mais uma vez por causa daquela parte do seu passado, ela não estava disposta a cometer os mesmos erros e iria fazer o possível e o impossível para não deixar toda aquela história estragar sua vida mais uma vez.
**
— Meu amor, qual o problema em aceitar o convite da Tati para almoçar? — Sentando em seu escritório, Willian argumentava com o namorado pelo telefone.
— Problema nenhum, a não ser pelo fato de que ela certamente vai atuar como advogada de defesa da Julia mais uma vez.
Pedro havia se encontrado por acaso com Tatiane no shopping dois dias atrás. A advogada era amiga de longa data de sua prima, depois que Julia se mudou ela foi a única com quem a arquiteta manteve contato. O rapaz não deu oportunidade para a moça falar sobre Julia naquele dia, por isso ela ligou para ele querendo marcar um almoço para conversarem. Ele não sabia se a ideia havia sido dela mesmo ou se Julia havia pedido para ela entrar em contato com ele. Fato é que o rapaz não sabia se cedia a curiosidade de saber o que Tati tinha a dizer ou se mantinha sua resignação em não facilitar a vida da prima em tentar conversar com ele.
— Olha só, Will, não foi para isso que eu liguei. Eu quero é saber se o jantar das meninas está de pé ainda? — Pedro mudou o assunto da conversa.
— Sim. Conversei com a Bella ainda a pouco, disse que nós chegaríamos por volta das 20h00.
— Ótimo. A Manuela vai?
— Vai. Parece que ela e a Amanda conversaram ontem e está tudo bem.
— E você já conversou com ela? — Indagou Pedro.
— Ainda não encontrei ela. Ela tinha uma reunião fora do escritório, mas deve chegar por aqui a qualquer momento.
— Está bem, querido. Nos encontramos mais tarde lá nas meninas mesmo?
— Pode ser. — Falou o rapaz e emendou antes de se despedir do namorado — Não pense que eu esqueci sobre a Julia, essa conversa ainda não acabou.
Willian voltou ao relatório que estava analisando, alguns minutos depois ouviu uma batida na porta e viu Manuela projetar o rosto para dentro de sua sala.
— Posso entrar? — Perguntou ainda sem abrir totalmente a porta.
— Claro, entra. — Ele respondeu com um olhar sério.
Manu se sentou e encarou o amigo. Willian e Manuela se conheceram logo que ela se formou na faculdade. O rapaz já tinha o projeto de abrir seu próprio escritório e Manuela, que começou a trabalhar como estagiária logo que ingressou na faculdade, topou entrar no projeto junto com o recém conhecido colega de trabalho. Os dois saíram do escritório onde trabalhavam, juntaram o talento e o dinheiro que tinham e cinco anos depois estavam conseguindo se estabelecer no mercado como um dos mais bem sucedidos escritórios de publicidade do país. Isso envolvia muito trabalho e esforço dos dois. A amizade foi crescendo junto com o sucesso do trabalho, os dois tinham muitas coisas em comum quando o assunto era negócios e isso era o que fazia a parceria dos dois ser tão tranquila. Foi ela quem começou a conversa.
— A reunião de hoje cedo foi excelente, acredito que eles vão querer nos contratar.
— Isso é ótimo. Um cliente como esse é sempre um ótimo ganho pra nós.
— Sim. — observou a publicitária se ajeitando melhor na cadeira — Sobre os dois dias que eu estive fora, eu queria me desculpar por não ter me explicado propriamente.
O rapaz se recostou na cadeira e olhou nos olhos da amiga.
— Sou todo ouvidos.
— Bem, você esteve no meu apartamento aquele dia e sabe que eu já queria tirar dois dias para descansar. Sendo assim eu uni o útil ao agradável.
— Muito bem. O seu trabalho no escritório não foi afetado por essa ausência momentânea. Creio que está tudo ótimo então.
— Ótimo. — Respondeu Manu sorrindo.
O rapaz se levantou e caminhou em volta da mesa até ficar na frente de Manu. Cruzando os braços enquanto se apoiava na mesa ele encarou a amiga com uma expressão enigmática no rosto.
— Agora a minha pergunta é: o quanto a sua vida foi afetada?
Não existia hierarquia entre os dois. Cada um detinha 50% do poder de decisão das questões da empresa. Logo aquela conversa não tinha nada de profissional, era uma questão pessoal desde o início. Manu sabia que Willian nunca aceitou que ela não lhe contasse a história por trás do nome Julia. Quando o rapaz começou a namorar Pedro, ela imaginou que poderia ser ele a explicar partes da história para o amigo, mas não foi o que aconteceu. Pedro e Manu acabaram por estabelecer um acordo de não falar sobre o passado. O que deixava Willian ainda mais curioso sobre todo aquele mistério.
— Por ter tirado dois dias de folga? — Ela perguntou fingindo não entender o que o rapaz havia dito.
Willian não se surpreendeu e com um sorriso sarcástico balançou a cabeça negativamente.
— Vou voltar para o meu relatório. — Disse enquanto voltava a se sentar em sua cadeira.
— Will, desculpa, tá bom!? Você não precisa se preocupar, está tudo bem comigo. A minha vida não foi afetada por nada e nem será.
— Você tem certeza disso? — Indagou o rapaz.
— Absoluta. — Ela disse se colocando de pé. — Vou deixar você trabalhar.
Manu deixou a sala do amigo e passou o resto do dia totalmente concentrada nos projetos que precisava desenvolver.
**
Duas semanas depois de chegar ao Brasil, Julia já estava instalada em um apartamento e começava a pesquisar como faria para abrir o seu escritório de arquitetura. O seu plano de ajeitar as coisas quando chegasse estava dando mais certo do que ela tinha imaginado. A única coisa urgente que a incomodava naquele momento era o fato de ainda não ter conseguido falar com Pedro. O rapaz vinha minando todas as tentativas de aproximação da arquiteta. De fato, Julia ainda não havia feito nenhum esforço para se encontrar pessoalmente com Pedro. Era exatamente sobre isso que ela e Tati conversavam na sala do novo apartamento da arquiteta.
— Ju, se você não for até ele, vocês nunca vão se falar.
— Eu já imaginava que ele não fosse facilitar a minha vida, mas está sendo bem mais difícil do que eu pensei. Eu já tentei falar com ele, marcar um almoço ou qualquer coisa, mas ele parece decidido a não falar comigo. — Julia falou enquanto se sentava no sofá depois de entregar uma taça de vinho para a amiga e servir outra para si.
— Eu já disse pra você ir até ele, isso de ligar e marcar não vai funcionar.
— E eu já concordei que você tem razão. Eu vou procurar ele amanhã, vou tirar o dia pra resolver essa situação.
— Ótimo. Menos uma coisa na lista de ‘coisas a se acertar quando volto pra casa depois de seis anos’. — Falou a advogada com um sorriso.
Fim do capítulo
Obrigada mais uma vez pelas leituras e os comentários. ♥
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