Nunca Te Amarei -- Capítulo 40

Era praticamente impossível alguém entrar no prédio e muito menos subir para os apartamentos sem ser barrado pelo segurança. Não fazia o menor sentido.

Donatela criou coragem e apanhou o celular que estava ao seu lado na cama a fim de iluminar o quarto com a lanterna do aparelho. Como esperava, não havia ninguém no quarto além dela.

Donatela suspirou fundo, aliviada. Mas a sensação de haver outra pessoa no quarto continuava e ela não sabia explicar o motivo.Talvez tivesse tido algum sonho do qual não se recordava mais, não tinha como saber. Ela esticou o braço e apertou o botão do interruptor com o indicador da mão esquerda. Agora, com o quarto plenamente iluminado, teve uma visão mais clara e os resquícios de temores que teimavam em permanecer, se dissiparam.

-- Aff, estou agindo como uma bobona -- ela se levantou da cama e foi até o banheiro e quando retornou, certificou-se de que a porta do quarto estava realmente trancada. Estava. Quando virou na direção da cama sentiu como se o chão tremesse sob ela. A parte do edredom na beirada esquerda da cama estava amassada no formato de uma bunda.

-- Ahhhhh... -- ela saiu do quarto, gritando. 

Kristen abriu a caixa e tirou a velha bonequinha lá de dentro e entregou para Vera.

-- Essa boneca foi a minha avó quem me deu. 

Vera sorriu e sentou-se ao lado dela no chão do quarto.

-- Poxa, que legal você ter guardado os seus brinquedos.

-- Só guardei os mais velhinhos, os novos eu doei para um orfanato.

Vera olhou para a boneca em sua mão e sorriu.

-- Ela é tão fofinha!

Kristen arrancou a bonequinha da mão de Vera e começou a esbofeteá-la de brincadeira.

-- Você está mentindo, ela é feia, feia, feia...

Naquele exato momento, Rick entrou no quarto, primeiro olhou espantado e depois apavorado. Ficou em silêncio por alguns segundos antes de encher os pulmões para gritar.

-- Meu Deus!!! -- saiu correndo batendo a porta atrás de si.

As mulheres se entreolharam. 

-- O que deu nele? -- perguntou Vera, sem entender a reação do rapaz.

Dando de ombros, Kristen balançou a cabeça.

-- Ele não bate muito bem da cachuleta -- disse em voz baixa.

-- Ah, tá. Coitado.

Rick entrou em seu quarto e imediatamente pegou o celular e enviou um WhatsApp para Jefferson:

Jeff, o que faço. A Kristen e a macumbeira estão lá no quarto destruindo um bonequinho de vodu.

Pela aparência da boneca, acredito que seja da Luciana

Mesmo sabendo que não havia espaço para caber uma pessoa ali, a empregada olhou embaixo da cama. Depois foi até o guarda-roupa. Abriu porta por porta, empurrou as roupas para o lado, mas só havia vestidos, blusas e os casacos pendurados nos cabides. 

-- Não tem nada de anormal, senhora -- disse a mulher, abrindo os braços.

-- Tudo bem, Bernadete. Pode ir.

Era um medo irracional, Donatela sabia, pois havia olhado a porta do quarto e ela estava trancada. A explicação mais provável era que ela mesma havia se mexido e feito a marca no edredom. De qualquer forma, ela sabia que teria uma longa noite pela frente. Estava agitada, sentia o coração mais acelerado que de costume e o sono parecia ter fugido dela. Apanhou a cartela de Diazepam na gaveta da cômoda, engoliu o comprimido com um pouco d'água e esperou o sono voltar.

Uma grande onda se aproximava e Kristen se preparava. Ficou de pé na prancha e foi em diagonal até a praia. Antes que a onda morresse, ela mergulhou e deixou que a correnteza a levasse até a areia quente. A prancha foi jogada ao seu lado.

-- Que performance maravilhosa -- Vera bateu palmas.

Kristen rolou e deitou-se de costas, protegendo os olhos contra o brilho do sol.

-- Já estava com saudade. A empresa está me tirando o tempo. Gostaria que os problemas do dia não perturbasse esses momentos de completo descanso e abandono.

-- Ah, você está aí, então? Que bom que a encontrei. O universo enfim, conspirou a meu favor.

Como de propósito, para zombar de sua tentativa de paz interior, a voz irritada de Luciana veio na brisa que agitava suavemente a enseada do Forte de Copacabana. 

Apoiando-se em um cotovelo, Kristen levantou a cabeça e viu a ex-namorada, num biquíni minúsculo, de braços cruzados e virada no Jiraya. Com uma expressão de surpresa no rosto bronzeado e delicado, levantou-se, encarando-a de frente.

-- Estou aqui sim, qual o problema? Copacabana é conhecida mundialmente pelo seu areal com cerca de 6 km de extensão, não é o suficiente para você, queeeerida?

-- Idiota, por mim você pode ficar onde bem quiser. Tô nem aí.

-- Não parece, porque veio até aqui, então? Provavelmente para mostrar esse pedacinho de pano ridículo que está vestindo.

-- Pedacinho de pano ridículo? Fique sabendo que é um Haight. 

-- Esteve na 25 de março recentemente?

Luciana ficou roxa de raiva.

-- Sua... sua...

Vera levantou e se colocou entre as duas.

-- Calma meninas.

-- E você, cala a boca -- Luciana deu de dedo nela -- Calma um caramba! Sua macumbeira da shopee.

-- De que você está falando? -- perguntou Vera, abobalhada.

Luciana mordeu o lábio superior com tanta força que chegou a doer.

-- Pensa que eu não sei que fizeram um boneco de vodu pra mim?

Kristen olhou por um instante para Luciana, no começo séria, depois, caiu na gargalhada. Jogou-se na areia rindo sem parar.

-- Boneco de vodu... Kkkkkk... Da próxima vez vou tirar um pouco de algodão da barriga do boneco. Kkkkk... De onde você tirou essa ideia, sua maluca?

-- O Rick me contou o que vocês duas estavam fazendo ontem com a boneca.

Kristen parou de rir por um momento.

-- Ah, a boneca velha e acabada? Pensando bem, olhando desse perfil em que você se encontra, até que ela se parece bastante com você. 

Luciana foi ficando vermelha, mais vermelha, até que não aguentou mais e caiu sobre ela na areia, com tapas e beliscões.

-- Parem -- Vera tentava tirar Luciana de cima de Kristen.

Kristen não parava de rir, o que deixava Luciana ainda mais brava.

-- Kisssss... 

Quando ouviu a vozinha do filho, Luciana rolou para o lado e fingiu que estava se bronzeando. Kristen levantou-se em um pulo e abriu os braços para receber o irmão.

-- Dudu, meu menino do Rio. Estava com saudades de mim?

-- Tava Kis, onde você tava?

-- Estava viajando, mas agora que voltei vamos nos divertir muito.

-- Obaaa... -- o menino pulou de alegria e abraçou as pernas da irmã.

Luciana puxou o filho pela mão.

-- Vamos para casa, Dudu. O sol está muito forte.

-- Deixa de ser otária. Esse é o melhor horário para as crianças curtirem a praia.

Luciana cerrou um punho.

-- É tudo que eu precisava. Uma solteirona me dizer como devo cuidar do meu filho. 

-- Se eu tivesse um filho, faria tudo para não deixá-lo crescer sem a família. E eu não sou solteirona.

-- Eu sei que não -- ela olhou para Vera -- Diz para a sua namorada me deixar em paz.

-- Quem? -- Kristen levantou uma sobrancelha.

-- A bruxa de Blair. Diga para ela que não tenho medo de bonequinhos de vodu.

Luciana saiu arrastando o filho para longe de Kristen.

-- O que aconteceu aqui? -- Vera estava assustada -- Quem é essa mulher? Parece o capiroto.

Kristen enfiou a bermuda jeans, desbotada. Pegou a prancha, pôs debaixo do braço e foi andando pela areia em direção ao carro.

-- A Donatela tem razão, a Luciana não vai permitir que eu conviva com o meu irmão.

-- Peraí, aquele garoto é o seu irmão? Aquela mulher é a sua madrasta?

Kristen se virou para ela.

-- Aquela é a minha ex.

-- Caramba! Caso ficassem juntas o menino seria o seu irmão ou o seu filho?

-- Para de falar besteira e vamos rápido pra casa.

-- Porque tanta pressa?

-- Não vejo a hora de chegar em casa e encher aquela boneca de porr*da.

Angélica ria sem parar.

-- Eu não acredito que você fez isso. Sua louca.

Luciana abaixou a cabeça, envergonhada.

-- Pois, eu fiz.

-- Boneco de vodu, agora você se superou. 

-- A culpa foi do Rick.

-- Minha nada -- ele se defendeu, imediatamente -- Eu só dei uma informação e você tirou as próprias conclusões. 

-- Você me induziu ao ridículo.

Angélica ainda ria.

-- Kristen vai debochar de você pelo resto da vida. 

-- Eu sei, odeio fazer papel de boba -- Luciana deu um gole no suco antes de continuar -- Você conhece essa moça que ela está namorando?

Angélica pensou por alguns instantes.

-- Para mim é novidade a Kristen estar namorando. Conversamos há pouco tempo e ela não fez nenhum comentário a respeito. Mas enfim, a Kristen que eu conheci era bem safada. Quem sabe ela não voltou a ser o que era.

Luciana olhou desanimada para o copo vazio em sua mão. A fila andou rápido demais. Pensou.

Kristen riu, olhando-a zombeteiramente.

-- Não tem mais apartamento não?

-- Tenho, mas a sua companhia é muito agradável. 

-- Ah, tá. Então, prepara alguma coisa para nós comermos. Acho que o meu secretário do lar abandonou o trabalho.

-- Eu não vou preparar nada. Sou visita.

-- Visita? Você está praticamente morando no meu apartamento. A Luciana já está até pensando que somos namoradas. 

-- Menos tá, bem menos. Sou apenas a sua orientadora espiritual.

-- Você fala de uma forma que parece uma profissão tipo:  Personal trainer; Assistente de cuidados pessoais -- ela se dirigiu a cozinha, abriu a geladeira e ficou parada diante dela -- Não tem nada pronto pra gente comer.

-- Tem ovo?

-- Tem -- Kristen arqueou uma sobrancelha.

-- Então, vamos comer ovo. 

-- Tá bom, você frita.

-- Eu não. Já disse, sou visita.

Kristen pegou uma panela e colocou água, jogou meia dúzia de ovos dentro e levou ao fogo.

-- Resolvido.

Vera olhou de esguelha para Kristen, sentando-se à mesa.

-- Você ainda a ama, eu vi a forma como olhava para ela.

Kristen sentou-se do outro lado da mesa.

-- Até pode -- foi sincera -- É muito recente, mas vou esquecê-la. Pelo menos estou tentando. 

-- Você ficou bem pensativa, lá na praia. 

-- Na certa estava pensando em amarrar a Luciana em um barco a remo com um buraco no fundo e esperar ela afundar.

-- Que maldade -- comentou Vera.

Kristen apoiou o queixo nas mãos e fitou a moça.

-- Acho que vou mandar um presente para a Luciana.

Vera  olhou-a desconfiada.

-- Olhe lá o que você vai aprontar. A sua ex parece bem brava.

Kristen fez um biquinho debochado.

-- Gosto de viver perigosamente! -- teve um sobressalto e levantou-se, afobada -- O ovo!

Para garantir que a experiência da noite anterior não se repetisse, Donatela tomou um comprimido de Diazepam 10 mg e o efeito chegou logo. Ela não sabia precisar quanto tempo, mas caiu em sono profundo. Algum tempo depois, acordou-se sentindo como se alguém estivesse mexendo nas suas pernas. Ela estava deitada de barriga pra cima, com as pernas esticadas, os braços caídos ao lado do corpo. O coração e a respiração ofegante. Ela tentou se mover, mas não conseguiu, seu corpo parecia estar preso à cama. 

Donatela tentou gritar por socorro, mas não conseguiu. Estava paralisada, sem conseguir emitir um mero gemido. 

Respirou fundo e procurou mover o dedo mínimo, bem devagar e aos poucos conseguiu mover os demais dedos, estendendo os movimentos para os outros órgãos do corpo. Virou a cabeça para olhar as horas no relógio sobre o criado-mudo. O relógio marcava três horas. Novamente a sensação estranha de haver outra pessoa no quarto além dela. Permaneceu deitada, com a luz apagada. De repente o barulho de algo pesado caindo nos pés da cama fez seu coração saltar pela boca.

Um frio percorreu o seu corpo, tremia, mas permanecia imóvel. Fosse lá quem fosse que estivesse no quarto, não a estava vendo no escuro e ela não queria despertar a atenção dele e levá-lo a agir de forma impulsiva contra ela. 

Ficou imóvel por mais de dez minutos, quando, finalmente, tomou coragem de dobrar o braço e apanhar a garrafa de vidro com água de cima da mesinha de cabeceira. Vagarosamente levantou a arma improvisada e, com a mão esquerda, acendeu a luz.

-- Parado aí, seu filha da puta! -- ela berrou, imaginando dar de cara com um bandido. Mas não havia ninguém -- Eu só posso estar ficando doida -- murmurou, desorientada, sem saber o que pensar. Não podia ser fruto da sua imaginação, o vaso espatifado no chão era prova disso.

Luciana tomou um banho de chuveiro, vestiu um short e uma camiseta para então ir para a cozinha. Enviou uma mensagem de bom dia para o celular de Jefferson e sentou-se para tomar café. Recostou-se na cadeira, pensativa. Precisava ir à luta, procurar um emprego, seguir a vida. Não estava acostumada a essa vida à toa, sem horários e sem grandes emoções. Ficou ali distraída, e quando percebeu já passava das dez horas. Espreguiçou-se e resolveu comer o pão e o queijo que a mãe havia deixado para ela.

Matilde entrou na cozinha com um pacote de presente na mão.

-- Deixaram para você na portaria.

Luciana olhou desconfiada para o pacote.

-- Pra mim? Tem certeza?

-- Tem um cartão com o seu nome.

Luciana pegou a caixa de presente elegante com fita dourada e desenhos florais.

-- Não sei se abro, pode ser uma bomba.

-- Larga de ser trouxa. Quem mandaria uma bomba para você? Uma pobretona desempregada.

Luciana fez uma careta para ela.

-- Obrigada mãe, estava precisando dessas palavras como estímulo para começar o dia. 

-- Abre logo essa caixa, criatura. Se fosse uma bomba relógio estaríamos ouvindo o tic-tac.

-- Não precisa ser necessariamente uma bomba relógio, pode ser um outro tipo de artefato explosivo.

-- Abre, merd*!

-- Tá, tá. Pedindo assim com carinho.

 

Fim do capítulo