Capitulo 48
Cap 48 - acontecimentos premeditados
Suas mãos estavam na minha cintura e a Fabi atrás de mim, me guiando na dança. Por mais que eu soubesse a coreografia de frente para trás, eu sou travada, tenho vergonha de me apresentar, por mais que em uma festa de amigos. Eu só quero ir embora. Quando finalmente terminamos de dançar ela começou a falar:
- Estava travada hoje Amor.
- Ah, Fabi. Sabe que não gosto de dançar na frente dos outros. A dança é um lance nosso, no escurinho do cinema.
- Humm, e que você tá bem em falta hein Dona Flávia.
- Desculpa amor, trabalho, as seguranças extras, tô tão cansada.
- Se vira Flávia, eu tô com vontade, vou te cobrar comparecimento - ela falou brincando, mas eu sabia que era verdade, uma cobrança fidedigna. A Fabi sabe ir de delicada e fofinha à fogosa e sedutora em um segundo.
- Se quiser vamos embora agora dessa festa e dou um jeito nessa sua vontade - falei baixinho, pé do ouvido. Levantamos dos banquinhos e fomos andando, por um corredor fino, estreito. Começamos a acelerar, mas eu e a Fabi não conseguiamos correr, o corredor era infinito, o chão estava molhado, escorregadio. Sangue, o chão está cheio de sangue - Cuidado Fabi!
Eu tentava correr, mas escorregava no sangue. Cadê a Fabi? Cade? Tropecei em alguma coisa e deslizei pra frente, no sangue, até esbarrar em um corpo. Corpo de quem? Consegui levantar, me apoiando no corpo, tinha sangue na minha roupa, em mim, no meu rosto todo. Corpo de quem? Ajoelhei chegando mais perto, não consigo identificar. Tem mais corpos, mais corpos, mais corpos. Cadê a Fabi? Cade?
- Flávia! Flávia! - uma voz me chamava longe. Quem me chama? Cadê a Fabiola? - Acorda! Acorda - acordei com alguém sacudindo meu ombro, me puxando para o presente. Onde estou? Ah, em casa. No meu quarto? Sim, no meu quarto. A Beatriz estava na minha frente com uma expressão assustada e preocupada, ao mesmo tempo. Dessa vez eu não tentei acalmar a Bia, apenas abracei ela e apoiei minha cabeça em seu ombro, eu precisava ser acalmada. Em retorno, a Bia apenas se manteve ali, em silêncio, me aquecendo e me acolhendo.
- Que horas são? - foi a primeira coisa que consegui perguntar.
- 8h30 mais ou menos.
- Puta merd*. Vou me atrasar - já levantei em um impulso.
- Flávia, calma. A Isabelle vai levar a gente. Vai passar aqui 10h.
- Não, a Isabelle tem que trabalhar. Você também! - respirei, olhando pros lados, desnorteada - Eu, eu também! Eu não avisei o Alcino!
- Ei, ei. Calma! Olha aqui pra mim, olha! - falou pegando no meu rosto, alinhando o olhar - nossa prioridade agora é você. Já avisamos o Alcino, você não vai trabalhar. Nem eu. A Isabelle foi resolver umas coisas e vai levar a gente. Calma! Olha pra mim, respira! - abracei novamente a Bia e tentei, sem sucesso segurar o choro. - Chega, levanta, lava o rosto e vem tomar café!
- Não quero comer nada Bia.
- Vou te dar duas opções. A primeira banho e depois café e a segunda café, depois banho. Ficar sem comer não é opção.
- Meu estômago está embrulhado - completei.
- Eu sei Flavinha. Mas você precisa estar alimentada pra aguentar o tranco de hoje. Ficar em pé lá, aguentar as pessoas. Vai ser pesado o dia - eu puxei o ar fundo, fundo mesmo, minha vontade era deitar em posição fetal e nunca mais sair da cama. Com uma força espiritual enorme consegui levantar da cama. Dei um beijinho na testa da Bia que ainda estava sentada na cama e que foi me acompanhando com o olhar. Peguei uma toalha no armário e segui em direção ao banheiro.
Eu estava tão dentro de mim, tão quebrada, que minha pele estava doendo, meus músculos estavam rígidos. Tirar a roupa do meu corpo doeu, o tecido passava na pele e eu sentia como se rasgasse. Uma dor física que nunca senti. Abri o chuveiro praticamente tremendo de frio, quando a água começou a cair, deu um choque inicial. Mas aos poucos a temperatura do chuveiro foi esquentando o corpo, acho que amolecendo a musculatura, não sei exatamente. A dor foi se dissipando. Não posso dizer que houve um bem estar, mas houve um conforto. Lavei o cabelo, demorei pra sair. Acho que não queria sair na verdade. Sair do chuveiro significa enfrentar o mundo, enfrentar as pessoas e me enfrentar. Eu não queria.
O cheiro do café fresco foi me atraindo assim que sai do chuveiro. Desembaracei o cabelo e me vesti. Humm, uma xícara de café fresco. Tentei me prender a pequenas metas, pequenos faróis e não pensar no “ daqui a pouco”. Quando cheguei à cozinha, a Beatriz estava na pia, coando o café em si. Acho esse cuidado que temos uma com a outra é algo muito bonito, sempre fizemos isso desde que ela aceitou dividir o apartamento comigo.
Ela está de costas na pia, não sei se por carência ou se por conhecê mesmo, fui em silêncio andando pela cozinha, que também não é grande e abracei ela por trás. Apoiei meu rosto no ombro dela, sentindo aquele calor humano, o cuidado. A Bia se assustou quando eu abracei, travando o corpo que depois foi se soltando, ela apoiou as mãos dela na minha, respondendo ao carinho.
- Que abraço gostoso! Pode me abraçar sempre - eu não respondi, fiquei envergonhada, e acabei me soltando.
- aceito uma xícara desse café! - falei sentando na mesinha
- o banho deu apetite?
- Nem um pouco, mas café nunca é demais - a Bia sorriu, um sorriso sincero, fofo. Encheu uma caneca e me entregou, esfumaçando. Começou a puxar papo, mas sem tocar nas duas situações mais complexas do momento, Fabíola e Beatriz. Falamos sobre nossa viagem, sobre aquele camarada fazendo rapel, das fotos dela. Ela nitidamente estava tentando me distrair. Enrolamos nessa conversa por um bom tempo. Até que a Bia levantou e falou que iria tomar um banho e se trocar para irmos - A Isa vai mesmo dar uma carona? Vocês combinaram alguma coisa?
- conversei com ela ontem a noite, de madrugada. Ela mesmo que propôs nos levar. Pode ser?
- Claro, tudo bem. Só não estava contando, mas ótimo. Enquanto você se ajeita eu vou ficar quietinha lá dentro tá?!
- tudo bem. Aqui é coisa rápida - levantei da cadeira, quietinha, mas não deixei de passar pela Bia e de dar um beijinho no cabelo dela. Fui até o meu quarto, deitei na cama de um jeito que o corpo pesou, apertou os ossos. Peguei meu celular e dei uma olhada, eu havia enviado para a Bruna o horário do sepultamento, eu queria a presença dela, o cuidado dela. Mas não havia nenhuma resposta, sei que ela viu a mensagem, mas não respondeu. Eu não estou em condições de resolver o tema Bruna no momento, estou exausta, triste, quebrada. Ela será uma guerra para depois que o meu incêndio estiver resolvido. Não posso contar a minha namorada para uma coisa tão séria, tão importante, então posso contar para o que?
Quando a Isa chegou, ela nem subiu, esperou eu e a Bia lá embaixo. Eu estava nitidamente quebrada, mas depois do banho, eu consegui me manter pelo menos. Desci para o carro, acompanhada de perto da Bia. Antes de entrarmos no carro a Isa já soltou a primeira:
- Ai que casalzinho mais fofo! - ela falou com uma voz fina, piorando a situação - Bora casal 20, entra no carro. Pra hoje. - eu acabei dando risada, se essa era a intenção dela, deu certo. A Bia sentiu no banco de trás roxa de vergonha. - ih Bia, nem se envergonha não cara, o dia de vocês tá na minha mão! - Eu só olhei pra frente, nem quis dar pano pra manga, mas achei um barato. Ainda mais porque sei que a missão pessoal da Isa é que eu me distraia! O caminho todo ela fez comentários sobre operações. Passava em uma rua x, ela começava: cara, fiz uma infiltração aqui, em 2020 e contava uma história maluca. A Beatriz não estava se aguentando e já estava rindo e participando.
Eu consegui me distrair bem até. Mas existia um aperto no meu peito, que quanto mais próximo ao cemitério mais o aperto ia aumentando. Quando avistei a entrada do cemitério, eu travei. Acho que as duas entenderam isso pois um silêncio ensurdecedor pousou no carro. Conforme o carro ia se aproximando da pequena área de estacionamento eu comecei a sacudir minhas pernas, preocupada, nervosa. Conforme a Isa procurava uma vaga eu fui triando o espaço em volta, procurando pessoas conhecidas, carros. Eu vi da outra ponta do estacionamento a Dona Arminda, o Sr Luiz e a Rogéria, prima da Fabi, também descendo do carro. Nem precisava de mais estímulo, comecei a hiperventilar no carro, sentadinha no banco da frente.
- Flávia, vem, sai um pouco do carro - Eu nem tinha percebido que a Bia saiu do banco de trás e abriu minha porta. Olhei pra ela e continuei tentando puxar o ar, mas o ar não vinha - Vem, coloca o pé aqui pra fora, levanta um pouco - Ela me ajudou, segurando minhas mãos - Puxa o ar, solta, faz comigo.
Aos poucos, acompanhando o exercício dela eu consegui me acalmar, pouca coisa, mas o mínimo para conseguir levantar do carro e sair. A Isa estava nos acompanhando, olhando próximo, sem forçar a barra, sem acelerar. Quando eu levantei do carro chegou a dar uma tontura, mas consegui continuar mantendo o exercício de respiração. Cara, não tenho essas coisas a anos, não tenho desmaio por ansiedade a tanto tempo, mas estou na merd* agora.
- Flavinha, vem, senta ali no banco. Vou ver se a Fabi já chegou tá? - a Isa me falou isso, e junto com a Bia eu segui para um banquinho. A Isabelle foi andando com calma, próximo às salas dos velórios, vendo se a urna da Fabi tinha chego. Me olhou lá da frente da salinha, e fez um não com o rosto, depois ela seguiu para a área da administração. eu olhei por cima o cemitério, não é nem de perto chique igual ao do jornalista Evangelista, não é um cemitério público, mas é um bem mais baratinho. A família da Fabíola tem uma campa aqui e um tio ofereceu ao Sr Luiz, uma casinha para colocar nossa pequena.
- Filha da puta! Pode ir embora! Pode vazar daqui - quando eu virei o rosto pra ver quem estava gritando, sem nem entender exatamente o que haviam falado, meu rosto ardeu e eu perdi o equilíbrio - Não é bem vinda. Sua falsa! Animal! Falsa - eu cai pra frente, enquanto a Rogéria subia em cima de mim gritando e me batendo, eu tentei proteger o rosto com as mãos, mas foi tudo muito rápido.
Ouvi a gritaria, tinha mais vozes ao fundo gritando, mas a louca estava praticamente sentada em cima de mim me batendo. Eu estava embaixo tentando me proteger, tentando sair debaixo dela. Em algum momento, alguém conseguiu tirar ela de cima de mim, enxerguei a Isabelle segurando ela, com mais dois homens. A Isa gritava alguma coisa pra ela, enquanto a segurava. Ainda no chão coloquei o dedo no meu nariz, tentando ver o estrago, estava sangrando. A Bia agachou e esticou a mão, me ajudando a levantar
- Você está bem? Flávia! Caraca, tá sangrando. Vem, senta aqui! - A Bia me ajudou a sentar no banco novamente, o mesmo que eu estava antes de ser atacada. Saiu correndo para algum lugar e logo voltou com um pouco de papel higiênico. Eu estava sem norte, perdida no espaço mesmo. Não esperava a Rogéria vir pra cima de mim não. - Tô “coloca” no nariz! - peguei o papel, sequei o excesso de sangue, fiz uma rolha e coloquei na narina esquerda que tava sangrando. A Bia com o cuidado estabanado dela, começou a espanar meu rosto, tentando tirar a sujeira e depois me puxou pra ela, me abraçando, me acolhendo de um jeito que quase faltou o ar.
- Por pouco não dei voz de prisão naquela imbecil - a Isa voltou falando, quase gritando - Mano, que susto! Tava lá conversando quando escutei a gritaria. E você Scania, já foi melhor de briga hein. Estourou muito aí? - com a delicadeza de um mamute a Isabelle pegou o meu rosto, virou dos dois lados - só o nariz mesmo. Quer dar parte da quenga?
- Senta aí Isabelle, só quero enterrar minha mulher e ir embora. Só isso - nenhuma das duas me respondeu. A Bia depois de um tempinho saiu pra pegar uma água pra mim e segundo ela, arrumar um gelo. A Isa ficou perto de mim, se ela tivesse um fuzil ela se posicionava em uma escolta ao meu lado.
Apesar de eu chegar na hora, o carro funerário deu uma atrasada de 10 minutos, quando a Bia finalmente voltou com um gelo num saquinho pro meu nariz, um carro funerário entrou no cemitério, seguido de uma viatura da polícia civil. Eu acredito que vários colegas vão acabar vindo, o pessoal que me conhece, que conhecia a Fabíola. O carro funerário embicou em frente a segunda sala de velório, e a Isa, baixinho me falou - é a sala dela. Acho que sua mulher chegou.
E realmente foi, a Fabi chegou. Eu olhei de longe o funcionário da funerária descendo uma urna, o Sr Luiz acompanhando de perto. Nessa hora meu peito voltou a apertar e eu comecei a chorar em silêncio. Quando a Bia percebeu, agachou na minha frente, segurando minhas mãos em automático. Duas pessoas se aproximaram em passos pesados e lentos, por reflexo olhei e vi o Cantão e a Ana Lu. A Bia ficou com o rosto vermelho, mas continuou agachada na minha frente, segurando minhas mãos. A Ana Lu agachou ao lado da Bia e olhou direto pra mim. Conheço ela de uma forma, que não precisou falar nada, só no olhar eu entendi o apoio e o carinho dela.
- O que foi no nariz sapatão? - o Cantão me perguntou, em pé, sem agachar, nem esperava isso dele.
- Tomou um fight Cantão - A Isa respondeu do outro lado.
- Sério, estourou bem o nariz!
- Gente, vocês dois não conseguem ter noção nem em um velório? Dois chatos cara! - Levantei do banco incomodada já. Os riram, entendi novamente que a Isa estava me distraindo, se eu ficar por minha conta vou afundar nesse buraco que eu criei em mim mesmo.
- Ela lá chegou Fla? - a Ana Lu perguntou
- Chegou, agorinha, junto com a viatura de vocês na verdade. Eu nem entrei ainda, estão montando tudo.
- Foi ontem? - a Ana Lu perguntou.
- Foi umas 5 ou 6 da tarde. Você não tinha que estar no estágio?
- Pedi uma dispensa para vir aqui. Não ia te deixar sozinha, bem agora - olhei pra baixo e dei uma risada mental, minha amiga conseguiu pensar isso, mas a minha namorada, a Bruna, não teve esse discernimento. Não chegou até agora, não me respondeu, confesso que duvido que ela venha. Ficamos ali fora naquele banco por um tempo, não sei quanto tempo, a Isa e o Cantão tentaram me distrair, alguns outros colegas da civil também apareceram. Começou uma das coisas que eu menos queria que era o abraço de todos mundo e falando “meus sentimentos”. Meus sentimentos porr* nenhuma, ninguém fez nada, ninguém cuidou de.nada quando ela precisava e agora vem com meus sentimentos. Enfim os seus sentimentos lá e vira tatu bola.
- Flávia, já montaram tudo lá dentro, não quer ir lá? - A Bia me falou de canto.
- Acho que não vou Bia, não quero guardar essa lembrança da Fabi.
- Fla, é a última oportunidade de poder ver ela. Eu vou com você, levo a Isa de guarda costas. Não vai estar sozinha, vou estar o tempo todo com você - concordei com o rosto, pra cima e pra baixo, com um aperto no peito enorme, voltei a sentir o buraco se abrindo e eu me colocando lá dentro. Seguimos então as três, andando juntas, eu fui no meio, em direção a segunda sala do velório, onde a Fabi foi colocada.
Assim que cheguei na entrada da sala, houve uma redução do tom de voz e minha visão, ficou em túnel. Da porta eu consegui scanear a sala. Haviam 2 sofás com alguns familiares da Fabi sentados, rostos conhecidos pra mim, que nesses anos todos eu vi em alguma festa, algum lugar. A urna estava bem no centro da sala, a tampa do lado direito, encostada na parede. Haviam dois pedestais para vela, um em cada ponta do pé, com velas brancas acesas.
Minhas pernas bambearam quando eu finalmente olhei para a urna em si. Coberta por um véu estava a minha menina. Fui andando devagar, não sei como consegui andar na verdade, não estava sentindo eu andar, na verdade a Bia e a Isa estavam me dando apoio físico, sem elas eu teria caído.. Segurando a mão da Fabi, em pé do lado direito estava a dona Arminda, mãe dela, chorando, chorando e chorando. Eu me aproximei da urna e consegui ver, plenamente a Fabi. Como ontem, muito mais magra do que eu a conhecia, os olhos fechados e nesse momento, maquiada. Meu peito queimava, ardia tanto, mas ardia tanto que eu poderia estar infartando, a água dos meus olhos caiam sem pedir licença. Dobrei meu tórax em direção a ela e dei um selinho, apoiei a mão na testa e fiz um cafuné, sem desarrumar o cabelo, muito bem arrumado
- Eu te amo tanto Fabi!! Te amo tanto! Descansa meu amor! Você lutou tanto, aguentou tanto! Agora tem que descansar meu anjo! Eu te amo muito! - fiquei ali na mesma posição, sem me afastar. Não sei quanto tempo fiquei, só me recordo de estar do lado de fora do velório abraçada a Beatriz.
O velório em si durou umas 3 horas, eu entrei e sai mais algumas vezes, mas bem pouco. Em outros momentos eu caminhei pelo cemitério com a Isa, com a Bia ou com a Ana Lu. As três estavam se revezando em me dar água, passear comigo, conversar sobre outras coisas, me distrair. Eu me mantive bem apática, inserida dentro de mim, num buraco que surgiu no peito e eu estava entrando.
- licença, deixa eu falar com ela - quando eu escutei isso eu não imaginei ser verdade. A Bia, Isa e Ana Lu se afastaram e deram espaço para a dona Creusa, vulgo minha mãe - Flávia!
- Mãe! -eu nem imaginava que ela apareceria, ainda mais porque estamos brigadas. Mas não gastei meu pensamento não, levantei daquele banquinho e apareceu a velha. No abraço, pra variar chorei de novo. Ela não falou nada, absolutamente nada, mas não me tirou do abraço. Fiquei ali no abraço dela até que seu corpo deve ter doido e ela começou a se mexer. Dona Creusa é mais baixinha que eu, então minha coluna também apertou. - Achei que a Sra nem viria! Quem contou pra Sra da Fabi.
- Claro que ia vir né Flávia. Todo mundo lá da Vila tá sabendo. Acha que eu ia deixar você sozinha nesse momento. Tô percebendo que você tem um grupão te dando apoio, mas eu não sabia.
- Abraço de mãe é uma coisa única, quase curativa. Como a senhora está?
- Estava preocupada com você.
- Mas me ligar? Mandar uma mensagem não conseguiu né?! - Soltei sem filtro.
- Chega Flávia! Aqui não é o lugar.
- Nunca é! - respirei fundo - Fica em paz mãe, estou levando minha vida, trabalhando, estudando, correndo atrás do que eu quero. Estou aguentando.
- Eu sei Flávia, mas não tira minha preocupação.
- Quando a senhora estiver preocupada de verdade comigo, vai perder um tempinho me ligando, perguntando sobre a faculdade, sobre namorada, sobre eu. E não apenas se o dinheiro caiu na conta. Cadê a Roberta, não veio com a sra?
- Veio sim, mas foi direto lá no velório.
- Claro, não é mulher pra me pedir desculpas, para vir aqui me olhar na cara.
- Não dá pra conversar com você Flávia, nem aqui, em um velório.
- Poderia ser em uma festa, não muda as coisas que a Roberta faz, não muda as drogas que ela usa e nem como a senhora defende ela.
- Oh, quando você estiver mais calma, a gente conversa. Eu vou estar lá dentro - a velha, de 1,67/1,68 no máximo, saiu andando, sem olhar para trás. Eu devo ter recebido toda minha altura do comprador de cigarro, jeito delicado como chamo meu pai, a última vez que eu conversei com ele foi aos 13 anos, depois disso nunca mais. Nada diferente do que acontece na tradicional família brasileira.
Quanto mais perto ia chegando das 16 horas, mais meu coração foi apertando. Eu precisava deixar a Pistolinha ir embora. Na verdade, pra mim ela já foi faz três anos, mas não imaginava a dor que eu iria sentir em ver ela morrer ou sepultar seu corpo. Acho que quando conhecemos alguém não pensamos na perda, pensamos em como encantar, como conquistar, como amar, qual chocolate dar de presentes, em qual motel levar. Nunca imaginamos qual cemitério vou me despedir ou em qual urna ela vai estar.
Por volta das 15:30, o Sr Luiz me chamou, falou que iriam iniciar uma oração de despedida, que era bom eu participar. A Bia foi comigo, não arredou o pé do meu lado. Quando eu passei pela porta de entrada do velório, cheio de gente ao lado da urna, por mais que eu tivesse visto algumas vezes a cena hoje, a da despedida me doeu ainda mais. Minha pernas travaram, eu não conseguia entrar naquele espaço. Olhei pra Bia procurando uma mensagem, ela me olhou com uma certa candura, como se dissesse “a escolha é sua”. Antes que eu desse um passo para trás, a Isabelle passou a mão pela minha cintura, falando alto e em bom tom “ opa, abre um espacinho pra noiva dela, abre um espacinho”. Foi do jeito Isa me levando para o lado da urna da Fabi. A Isa me soltou, ficou ali perto, junto com a Bia.
Uma conhecida minha, da Fabi e acho que da maioria que estava lá, uma pastora lá de onde moramos, da Brasilândia, veio para fazer a oração de despedida. A Dona Arminda ficou com a mão em cima das mãos da Fabi durante toda a oração. Eu só consegui olhar para ela, branca, fria, finalmente descansando. É bizarro as nuances emocionais que estou tendo, de raiva e ódio por ela ter morrido à paz, gratidão pelo fim. Quando a oração terminou, os funcionários do cemitério já estavam na porta, aguardando para poder fechar a urna e levar. As pessoas foram começando a sair, primeiro os conhecidos, depois os parentes. Eu não sai, a Bia e a Isa também não, ficaram lá comigo. O Sr Luiz deu um beijinho na testa da Fabi, falou algumas palavras, com os olhos cheios de lágrimas. A dona Arminda também falou alguma coisa, deu um beijo nela e se afastou desabada, parou na frente da sala do velório. Eu me aproximei pela última vez da minha amiga, namorada, noiva, musa, pintinho pistola, deu um beijo em seus lábios frios e falei “ te amo Fabi, te amo tanto, fica com Deus, descansa meu amor! Já já vamos nos encontrar! Falta pouco linda”, passei a mão sob seu rosto e fiz um cafuné na testa.
O coveiro já estava pegando a tampa para colocar em cima. Eu me afastei, com alguns passos para trás e vi minha menina ser fechada em um caixão. A Beatriz ao meu lado foi o primeiro lugar seguro que encontrei, abracei ela e comecei a chorar, enquanto o caixão da Fabi era fechado. A maca metálica para o transporte foi colocada dentro da sala do velório e os coveiros juntos levantaram a urna e colocaram naquela maca, as duas coroas de flores, uma da família e uma dos “Amigos do 5º DP” foram colocadas em cima do caixão.
A maca saiu e o cortejo começou. Eu estava andando, mas não sabia mais onde eu estava ou o porquê estava ali. Nunca imaginei a dor de perder alguém que eu amava, tanta, tanta coisa passava na minha cabeça nesse momento que eu não estava conseguindo processar absolutamente nada. Eu só queria que tudo parasse e sumisse da minha frente, as pessoas, os pensamentos, aquele cemitério. Só desaparecesse.
A cena do caixão descendo na campa, da Dona Arminda gritando, das pessoas em volta chorando, dos policiais batendo palma foi uma cena tão complexa, mas eu não estava mais lá. Meu corpo estava, mas eu não processei aquele momento. Sei que eu não desabei fisicamente no chão porque a Beatriz e a Isabelle estavam me segurando, sei que minhas pernas já não respondiam, meus olhos fizeram uma película que eu não processei, não guardei mais aquela imagem.
Quando o coveiro começou a fazer o murinho na gaveta, tampando o caixão da Fabi eu virei de costas e comecei a andar em direção ao carro. Não sei se elas me seguiram ou não, mas só andei em direção ao carro. Eu apenas queria sair dali, apagar aquela cena, só sair. Enxerguei o carro da Isa, onde havia estacionado, diversas viaturas da PC ao lado, acho que umas sete. A náusea do meu estômago foi aumentando à medida que eu cheguei perto do carro da Isa, aumentando de um jeito, abri a boca, ainda andando e saiu em jato, vômito bilioso, amargo. Tentei levantar o rosto, mas não dei tempo, mais um vômito em jato. Levantei o rosto, tentei puxar um ar, a visão ficou turva, escureceu como um funil e não lembro de mais nada.
Acordei com o sacolejo de um carro, tocava uma música leve ao fundo. Humm, deve ser o carro da Isabelle, será? Estou deitada em cima de algo macio, cheiroso. Abri os olhos com dificuldade, peso nas pálpebras. A Beatriz estava encostada no banco, olhando para a rua. Como eu coube no banco de trás de um carro? Tentei levantar, mas uma dor de cabeça súbita fez eu voltar a deitar.
- Não levanta não! Já estamos chegando em casa.
- O que aconteceu, Bia?
- Você desligou Flávia, vomitou e depois apagou. Sorte que a Isa correu e te pegou no ar.
- Ia meter a bola de boliche no chão. Ou melhor, ia rachar o chão! - a Isa falou lá da frente.
- Delicada! - retruquei
- Eu? Nem um pouco - ela própria riu - levanta devagar e tenta sentar aí no banco. Já estamos na Consolação - Eu então, com a ajuda da Bia me sentei no banco, uma tontura leve, mas tudo bem. Consegui ficar sentada, sem muito esforço e realmente, pouco tempo depois estávamos estacionando na frente do meu prédio. A Bia desceu por um lado e eu desci por outro, me segurei no carro, com uma tontura, mas aguentei e fiquei em pé. Na calçada paramos, esperando a Isabelle - Meninas, vou deixar vocês, qualquer coisa me liguem, qualquer horário. Bia - olhou sério pra ela - qualquer horário. Flávia, vem cá - me puxou pra um abraço - Você é forte garota, cara, como você é forte. Eu não teria aguentado metade disso tudo. Se de um tempo de descanso, um tempo de paz. Qualquer momento me liga tá, a gente conversa, distrai, saí pra ver umas mulheres, qualquer coisa.
Esperamos a Isa entrar no carro e seguir viagem e entramos no prédio. Eram umas 18 horas eu acho, começando a escurecer. Subimos em silêncio até o 20º andar, dava pra ver na Bia a exaustão dela. Nem chave de casa eu havia levado, ainda bem que ela é mais organizada, abriu a porta pra nós. Eu fui direto pra cozinha, estava com sede. O primeiro gole de água bateu no meu estômago e quase saiu. Enchi um caneco de água e coloquei para ferver, sei que a primeira coisa que vamos precisar é café.
- Flavinha, aqui estão seus documentos e seu celular - esticou a mão e colocou eles sobre a mesa.
- Bi - me aproximei dela, segurei suas duas mãos e olhei firme nos seus olhos - obrigada por tudo que fez por mim. Foi meu porto seguro nisso tudo, foi uma amiga e uma pessoa muito querida - falei com calma e depois abracei ela, com firmeza, estabilidade - Obrigada por tudo, não tenho como te retribuir.
- Não tem o que me agradecer, é o mínimo que eu poderia fazer - respondeu ainda no abraço.
- Eu não esqueci da nossa conversa, só preciso de um tempo pra me acertar. Não esqueci de nada, tá? - senti seu queixo no meu ombro, falando sim, mexendo pra cima e para baixo. Me afastei dela, ainda segurando suas mãos e olhando fixo - eu vou me resolver, só preciso mesmo de um tempo - falei e dei um beijinho na testa dela, soltando suas mãos - Coloquei uma água pra ferver. Posso fazer um omeletão pra gente se você quiser - ofereci.
- Fla, eu só quero tomar um banho e cochilar um pouquinho. Se quiser, depois pedimos alguma coisa. Pode ser?
- Claro, vai lá. Pode ir primeiro - ela seguiu para o corredor, mas parou na saída da cozinha, me olhou e mandou um beijinho. Eu sorri, acho que pela primeira vez no dia e sacodi a cabeça como sim.
Eu esperei a água do café ferver e passei um café fresco, apesar do cheiro ter espalhado pela casa, a Bia não apareceu. Escutei o chuveiro desligando e depois o barulho da porta do quarto dela fechando. Ela deve estar exausta, como eu estou. Enchi uma caneca, tentei tomar um gole mas estava bem quente, afinal, recém coado. Deixei a caneca em cima da mesa, com um papel em cima e fui pegar uma muda de roupa pra mim. Segui direto para o chuveiro. Caraca, que água quente, gostei do efeito no meu corpo. Eu estava me sentindo suja, eu chorei, apanhei, caí no chão, vomitei, andei por um cemitério. No mínimo tudo muito incômodo, no mais, me sentindo imunda.
Terminei o banho, coloquei uma bermuda e um top, desembaracei o cabelo e segui para o quarto. Finalmente deitei na cama, nossa, meus ossos doeram, parecia que meu corpo tinha meia tonelada. Meus olhos estavam fechando. Forcei um pouquinho e resolvi olhar meu celular, eu quero acreditar que a Bruna me mandou alguma mensagem, alguma justificativa de sua ausência, alguma coisa. Olhei meu whats, cliquei na foto dela, mas não havia nenhuma mensagem, nada. Gente, ou essa menina sumiu do mapa ou como assim, você deixa sua namorada em um dia desses? Isso é algo inaceitável.
Os olhos pesaram e eu os fechei, tentando cair no sono. A imagem do corpo da Fabi, a imagem do caixão sendo fechado, a imagem do suspiro dela, passavam em looping na minha mente. Cacete!!! Eu quero dormir, estou exausta. Levantei e fui procurar no meu armário, devo ter um sedativo aqui, sei que tenho. Onde? Caraca! Não acho essa porr*. A imagem dela não vai embora, passa na minha cabeça direto, full. E se eu sair pra correr? Se eu correr uns 5 km, devo relaxar a ponto de dormir. Sempre dá certo!
Coloquei uma bermuda de corrida, uma camiseta e um tênis. Só 5 km só, não vai dar merd*. Peguei meu documento, um cartão e o celular. A Bia está dormindo, não vou encher o saco dela, vou rapidinho, 40 min estou de volta, sem nem travar. Desci de elevador, caminhei até o portão que dava acesso a rua. Assim que sai a rua comecei a trotar, a imagem dela não sumia, continuava na minha mente. E foi ficando pior, eu correndo e pensando na Fabíola. Como está seu corpo agora? Ninguém abre o túmulo né?! Passei por uma avenida, nem olhei para os lados, quase fui atropelada. Melhor eu voltar, correr agora vai dar merd*. Fui voltando pra casa trotando e algo bateu a minha mente. Estava em frente ao barzinho do Sr Olímpio, ao lado da faculdade. Estava aberto.
- Quem é vivo sempre aparece. Tava malhando menina? - o Sr Olímpio me perguntou assim que entrei.
- Só uma corridinha pra soltar Sr. Olímpio.
- Pra soltar? Eu nem caminho pra soltar! Vai o que hoje menina? Suco de abacaxi?
- Hoje não Sr Olímpio. Me dá uma coisinha mais forte, me dá uma caipirinha de abacaxi.
- Cachaca ou vodka?
- Vodka Sr Olímpio. Enquanto o Sr prepara, me dá uma dose de tequila, pura.
- Vai misturar?
- Vamos ver se dá certo! - ele me entregou segundos depois, uma dose de tequila, o sal e o limão. Eu nunca tomei tequila, a última bebida alcoólica que eu tomei, sei lá, tinha uns 13 anos. Mas geral toma tequila né?! Quem sabe se eu tomar consigo apagar a Fabíola por uns segundos. Lembrei da Bruna tomando, lambi o sal e mordi o limão. Que negócio ruim! Peguei o copinho, vazou um pouco na mão, mas não pensei, só virei, em um gole só! Desceu queimando a garganta, como se tivesse fogo. Sacodi a cabeça para os lados e tentei puxar o ar! Que coisa ruim! Espero que a caipirinha seja um pouco mais doce. Pouco tempo depois o Sr Olímpio me entregou a caipirinha, já deixei pago a tequila, essa caipirinha e mais uma, para assim que acabar. Peguei ela e sentei em uma mesinha olhando para a rua, quero beber pra chegar em casa e dormir. Não quero lembrar da Fabíola, só quero dormir sem sonhar com ela baleada ou morta na minha mão.
Fim do capítulo
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tainateixeira
Em: 07/05/2024
Escritora, sinceramente, espero que tenha um capítulo especial da Flavia dando um belo pé na bunda da Bruna. Nada justifica esse comportamento dela. Sou #TeamBia.
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