No Brasil as coisas vão seguindo como já estavam: o esquema que maama montou em Triunfo está fluindo, apesar de uns pesares, Elzira trabalhando no Recife sem problemas e dona Sibele na luta por ser síndica novamente. O que tem atrapalhado seus planos é somente o fato de insistir pela anulação do processo contra ela, o que, graças a Deus, é rejeitado pelo condomínio inteiro; ao menos isso!

Estamos no final de maio e posso dizer que muita coisa aconteceu neste um mês em que moro em Zurique com Bianca. Esta é uma das cidades mais caras do mundo, por isso o custo de vida é altíssimo. O pessoal da OIT ajudou Bianca a encontrar um pequeno apartamento de preço acessível no subúrbio, além de tê-la assistido na batalha que foi fechar o contrato de aluguel junto à agência imobiliária. Considerei a localização do imóvel interessante por viabilizar o uso de transporte público, mas comprei uma bicicleta que uso diariamente para me locomover.

A bolsa que recebo como professora convidada pelo Instituto é minguada, mas Bianca recebe um salário bem melhor e por isso banca a maior parte dos gastos em comum. Confesso que é algo que me incomoda.

Apesar de estarmos em plena primavera, sinto falta do sol. Zurique está rodeada por montanhas e belas paisagens naturais, o que me compensa um pouco. A cidade também conta com muitas opções de entretenimento e vida noturna, o que deixa Bianca empolgada. Antes que eu chegasse, ela já havia conhecido uma pequena comunidade de pessoas LGBT e prontamente me apresentou ao grupo. Da mesma forma conseguiu arrastar para esse grupo duas mulheres da OIT, as quais são casadas há cerca de 15 anos.

 

--Amore, please, they’d like you to explain about what they heard last night on the Press! (Amore, por favor, eles gostariam que você explicasse sobre o que ouviram ontem à noite na imprensa!) – Bianca pedia ao abraçar a namorada pela cintura – What is the relationship between the new Beatles’s song and the research on neuroinformatics you and your colleagues are doing at Sensors Group? (Qual é a relação entre a nova música dos Beatles e a pesquisa em neuroinformática que você e seus colegas estão fazendo no Sensors Group?) – sorria

 

As duas mulheres estavam em um evento noturno em que todos se comunicavam em inglês.

 

--It’s a long explanation, but I’ll try to sumarize. (É uma longa explicação, mas tentarei resumir.) – Camilla olhava para os demais -- No final dos anos 70, John Lennon gravou uma versão demo com vocal e piano em sua casa e isso seria o nascimento da canção "Now and Then". Anos mais tarde, em 1994, os Beatles tentaram concluir a música, George Harrisson chegou a gravar um solo de guitarra pra enriquecer a canção, mas a qualidade da gravação de John era muito ruim e o projeto foi abortado. – contava a história – Até que em 2022, com uso de Machine Learning, a equipe técnica envolvida foi capaz de separar qualquer banda sonora e dividir todos os diferentes componentes em faixas separadas. – a professora explicava – Com isso o projeto foi retomado e eles finalmente lançaram a música no ano passado. – pausou brevemente – Os sinais biológicos que buscamos no estudo de neuro informática geralmente são como o som na gravação de Lennon: de baixa intensidade e com muito ruído. – gesticulava – Usando conhecimento análogo ao que foi utilizado para trabalhar a música Now and Then, podemos dar muito mais qualidade a estes sinais biológicos e, com isso, obter respostas melhores nos tratamentos de uma série de enfermidades.

(NOTA DA AUTORA: quem quiser conhecer a interessantíssima história da música, segue o vídeo https://www.youtube.com/watch?v=APJAQoSCwuA)

 

--Own, estou orgulhosa! – a advogada segurou o queixo da namorada e a beijou nos lábios – Eu não disse que ela saberia explicar? – sorriu para os demais

 

--Interesting! (Interessante!) – um homem comentou de forma esnobe – Mas apesar de toda essa ciência envolvida não gostei da música, sinceramente. – passou a mão nos cabelos – Última canção dos Beatles, ok, mas... depressiva! – criticou -- E ainda lançada em pleno dia 2 de novembro! Mau gosto! – revirou os olhos – E uma pobreza de ideias muito grande!

 

--Música para os nostálgicos e desiludidos da vida! – uma mulher zombou ao dar uma risadinha

 

--Eu diria que é uma música para quem tem sentimentos. – Camilla respondeu ao beber um gole de água – “Só mesmo Bianca pra me fazer aturar essa gente esnobe!” – pensou – “Tudo LGBT mas e daí? Só dá sangue ruim!” – disfarçava a contrariedade

 

--E você certamente é sentimental. Dizem que os brasileiros são todos assim! – Anelise reparava na professora – Diga-me, Camilla... como conseguiu fazer parte do Sensors Group sem ser proficiente em alemão? – provocou

 

--Mas ela fala alemão! – Bianca retrucou de pronto – Além de ser fluente em inglês, francês, espanhol e árabe! – olhava para a colega de trabalho – Quem precisa de proficiência em alemão depois de tudo isso, não é, Lise? – piscou para a outra – Tampouco eu tenho proficiência em alemão e estou trabalhando na OIT tanto quanto você e sua esposa!

 

Camilla não se deu ao trabalho de comentar. Apenas bebeu um gole de sua água.

 

--Basta falar inglês e está tudo resolvido! – Shelby respondeu em tom brincalhão – Eu saí dos Estados Unidos para trabalhar aqui e lá se vão quase vinte anos! – gesticulava – Lise cobra proficiência apenas por ser alemã; é injusto! – tentava descontrair – Mesmo após 15 anos juntas, eu nunca fui além das frases de sobrevivência como: Alles Gut! (Está tudo bem!) – alguns riram

 

--Tampouco eu tenho essa proficiência. – outro homem comentou – Estava pensando agora... – gesticulava – Saí da França esquecendo tudo e todos para realizar meus sonhos até que vim parar aqui, em Zurique. – bebeu um gole de vinho – Hoje em dia nem sei se me lembro dos sonhos que me fizeram deixar mamãe chorando na porta ao me ver partir. – riu de si mesmo – E quem se importa?

 

--Eu penso que a vida é prática e, portanto, temos que ser práticos! Nostalgia é coisa para os fracos! – Anelise afirmou convicta – E família? – fez um gesto de desprezo – Cada um deve cuidar da própria vida e deixar o ninho quando a maioridade chega. – falava como se discursasse – Essa gente que se prende por família, que fica abrindo mão de si por causa dos outros... – bebeu um gole de uísque – Fracos! Losers! (Perdedores!) – zombou – Ou então, são aqueles fanáticos religiosos que buscam salvar o mundo seguindo os passos ensanguentados de Cristo! – riu brevemente

 

--Concordo! – dois homens responderam ao mesmo tempo

 

--Bem, penso que temos uma contradição aqui. – Camilla começou a falar educadamente – Anelise atua há mais de uma década na OIT lutando por condições de trabalho melhores para pessoas do mundo inteiro e vocês, -- indicou os homens – são do programa Médicos Sem Fronteiras, uma organização humanitária internacional. – considerou – Como podem desempenhar tais atividades se consideram que altruísmo e cuidado com os familiares é coisa para os fracos? – provocou – Alguém que despreza a própria família pode cuidar bem de quem nem conhece?

 

Um incômodo silêncio se estabeleceu no grupo.

 

***

 

--Eu não entendi você, Camilla! – Bianca entrou em casa reclamando – Além de ficar trocando farpas com os outros na festa ainda fez questão de beber água ao invés de ao menos provar um vinho! – colocou a bolsa em cima da mesa – Isabelle ficou ofendida com isso, sabia? – olhou para a amada

 

--Não sou obrigada a beber pra agradar uma mulher que eu mal conheço. – sentou-se no sofá e tirou os sapatos – Além do mais não fiquei trocando farpas, simplesmente respondi as provocações daquela Anelise à altura. – levantou-se – Se não percebeu, a mulher usava de toda forma pra me provocar, inclusive jogando piadinhas e indiretas desagradáveis! – caminhou para perto da advogada e parou diante dela – Até porque ela deve saber de minha vida inteira, né? Certamente alguém contou os detalhes pra poder explicar por que cheguei aqui um mês depois de você! Só não imagino quem tenha sido! – acusou ironicamente

 

--Agora pegasse ranço dela? – cruzou os braços desaforada – Então eu também deveria pegar ranço de Nicolle, porque foi a única pessoa com quem ficasse de risadinhas a noite toda! – acusou – Além do mais você tem o maior tesão nas francesas, né?

 

--Ah, Bianca, faça-me o favor! – deu uma volta pela pequena sala – Nicolle é a única pessoa simpática naquele grupo de LGBTs esnobes que você me arrumou e a gente não ficou de risadinhas a noite toda, deixe de neura! -- reclamou

 

–O grupo é esnobe, a cidade é cara, você sente falta do sol e o que mais? – enumerava nos dedos – Desde que chegasse aqui só fizesse reclamar!

 

--Não é verdade! – retrucou de pronto – Eu não vivo reclamando, mas nada do que você falou aí é mentira! – olhava para a advogada – O grupo é esnobe, a cidade é cara e, sim, sinto falta até do sol! Mas eu tô aqui, não tô? Eu tô tentando!

 

--Tentando? Que piada! – discordou – Ora, Camilla, às vezes desconfio que nem lésbica você é! – acusou

 

--O que???? – perguntou em choque mas acabou rindo gostosamente –Ih, meu Deus, descobriu meu segredo! – ironizou – Eu me relaciono com mulheres desde sempre mas é pra disfarçar!

 

Fingiu não ter ouvido e continuou criticando: -- Onde já se viu uma lésbica que nem fala em casamento? – estranhava – Lésbicas beijam na boca pela primeira vez e já planejam de morar juntas! – gesticulou desaforada – A gente tá junta há anos e você nada! – passou a mão nos cabelos – Todo mundo acha isso estranho!

 

--Que todo mundo, sua colega de trabalho Anelise? – devolveu de imediato – Bianca, nós duas nunca fomos assumidas no Brasil, nosso relacionamento é conturbado há anos e nem todas as lésbicas são casadoiras! Eu nunca fui! – protestou – Além do mais estamos aqui vivendo juntas como um casal! Se isso não seria um casamento, não sei o que é!

 

--Pois eu sei! – aproximou-se da outra – Você veio, tá aqui comigo, mas ao mesmo tempo não tá! – calou-se bruscamente – Vou tomar um banho. – afastou-se e seguiu até o banheiro – Sozinha! – entrou no cômodo batendo a porta ao fechá-la

 

***

 

Eu seguia de bicicleta para mais um dia de trabalho no Instituto. Celular no bolso e fones bluetooth nos ouvidos, pedalava ouvindo a bela canção sobre a qual expliquei a história na noite anterior.

https://www.youtube.com/watch?v=Opxhh9Oh3rg

 

“I know it's true (Eu sei que é verdade),

It's all because of you (É tudo por sua causa)…”

 

Pensava em maama e em nossa história de vida. Nas lutas que travamos juntas ou separadas, mas nunca desunidas.

 

“And if I make it through (E se eu sobreviver)

It's all because of you (Será tudo por sua causa)…”

 

Lembrei de seus olhos tristes ao me ver partir de Triunfo pela primeira vez para estudar. Lembrei de cada despedida em que ela tentava fingir que não sofria.

 

“And now and then (E de vez em quando),

If we must start again (Se tivermos que recomeçar)…”

 

Lembrei de todas as vezes em que ela abriu mão de algo para que eu pudesse correr atrás dos meus sonhos. “Assim devem ser as mães!” – ela dizia – “Os filhos são pro mundo, não sabe?”

 

“Well, we will know for sure (Bem, nós saberemos com certeza),

That I will love you (Que eu te amarei)...”

 

Lembrei de uma vez em que fui recebida no ponto do ônibus por maama e gidda ao voltar para casa nas férias e a mera visão delas me fez perder a fala.

 

“Now and then I miss you (De vez em quando sinto sua falta),

Oh, now and then (Oh, de vez em quando)...”

 

“--Maama! – uma pequena Camilla chamava desesperada – Tenho medo dessa tempestade! – enterrei o rosto no travesseiro – Maama!

--Tenha medo não, bichinha! – maama chegava no meu quarto e se sentava na beirada de minha cama – Tô aqui mode proteger você! – abraçou-me com carinho”

 

“I want you to be there for me (Eu quero que você esteja lá por mim),

Always to return to me (Que sempre volte para mim),

I know it's true (Eu sei que é verdade),

It's all because of you (É tudo por sua causa)…”

 

O que maama sonhou para si? A vida inteira eu a vi pensando nos outros em primeiro lugar.

 

“And if you go away (E se você for embora),

I know you'll never stay (Eu sei que você nunca ficará),

Now and then I miss you (De vez em quando sinto sua falta)...”

 

Já estudei fora tantas vezes, não era a minha primeira experiência em outro país. Mas agora tudo estava diferente. Eu estava diferente...

 

“Oh, now and then (Oh, de vez em quando),

I want you to be there for me (Eu quero que você esteja lá por mim),

I know it's true (Eu sei que é verdade)...”

 

Lágrimas de saudade embaçavam minha visão naquela fria manhã de primavera.

 

“It's all because of you (É tudo por sua causa),

And if I make it through (E se eu sobreviver),

It's all because of you (Será tudo por sua causa)...”

Now and Then. Intérpretes: The Beatles. Compositores: composição original por John Lennon. Versão dos Beatles por John Lennon / Paul McCartney / George Harrison / Starkey. In: Love Me Do (double A-Side). Apple, 2023. Double A-Side Single (4min08)

 

***

 

--Eu não me entendo, Simone! Parece que me transformei numa mulher imatura que não sabe o que quer! – olhava para a outra pela tela do celular – Se Bianca tem razão em algo que me disse foi no fato de que estou aqui e ao mesmo tempo não estou! – confessou – A cabeça ficou em Triunfo; com maama... – pausou brevemente – Eu não queria continuar naquela vida que vínhamos levando, mas também não queria deixá-la. Meus irmãos já estão dando seus furos, sabe? – passou a mão nos cabelos – Ao mesmo tempo não queria perder Bianca e eu sei que nosso relacionamento não resistiria a um distanciamento tão grande... – considerou – Também fiquei tentada a experimentar uma temporada integrando o Sensors Group! – ajeitou-se na cadeira – Sabe que tô negociando com eles de alunos brasileiros virem pra cá e vice-versa! Acho que vai dar um caldo porque eles se empolgaram e... – interrompeu o que dizia – Olha eu falando de trabalho no meio de assuntos particulares tão sérios! – repreendeu-se – É isso, Simone! Acho que endoidei de vez!

 

A psicóloga achou graça e riu brevemente. – Não é nada disso, Camilla! – respondeu com mansidão – O que aconteceu foi que você está aí, mas não por decisão sua. Decidiram por você! – afirmou enfática – Sua mãe, sua família, Bianca... todos decidiram por você! E aí, você simplesmente seguiu o fluxo. – concluiu – Esse é o problema: você sempre foi uma mulher que decide, mas dessa vez os problemas que enfrenta te deixaram numa encruzilhada incômoda. – olhava para a paciente pela tela do celular – O que precisa entender e internalizar é que a situação te exige decidir e renunciar. Você não está decidindo porque nada quer renunciar. Só que isso, me perdoe, é impossível!

 

--É... tem razão... – concordou pensativa

 

--Não decida nada por se sentir em dívida! Não decida nada por causa de remorsos do passado! Não decida nada por dependência emocional ou por ilusão! – aconselhava – Nós já trabalhamos muita coisa na sua psique e você tem todas as ferramentas à mão pra saber o que fazer de acordo com o que realmente precisa e quer! – falava com segurança – Olhe para dentro de si mesma e seja mais que tudo honesta!

 

Camilla ficou pensando no que ouvia.

 

***

 

--Boa noite. – a professora cumprimentou ao chegar em casa – Não pensei que te veria aqui hoje. – aproximou-se da namorada – Cancelaram a tal viagem pro Marrocos? – parou diante dela – Que carinha é essa? – perguntou com carinho – Aconteceu alguma coisa? – preocupou-se

 

--Ai, habibem! – jogou-se nos braços da namorada – A viagem pro Marrocos foi cancelada por causa daquele terremoto do ano passado. Parece que o lugar de onde teve a denúncia de trabalho escravo acabou desabando hoje de manhã e o presidente da Comissão preferiu adiar a vistoria. – abraçava-a com força – Cheguei em casa mais cedo e Barbara me ligou pelo zap. – pausou brevemente – Ela foi presa por dirigir embriagada, uma colega de trabalho quebrou o galho com a fiança mas minha irmã acabou sendo demitida por causa disso.

 

--Vôti! – surpreendeu-se – E o que ela tá esperando pra vir simbora pro Brasil? – a morena perguntou intrigada – Ainda mais agora que sua tia Jasmine se desentendeu com sua maama e não quer mais ficar com ela, seria o momento ideal pra uma aproximação! – considerou

 

--Eu não sei, amore, não sei! – desvencilhou-se do abraço e se afastou um pouco – Mal sei de nós, faz ideia delas! – abaixou a cabeça

 

--Pois eu tenho pensado muito sobre nós e não é de hoje! – Camilla falou com mansidão – Aliás, penso em nós há anos a fio! – confessou – E acho que precisamos finalmente ter aquela conversa que nunca tivemos!

 

Bianca olhou para a professora com receio e desconfiança.

 

***

 

Suhaila contemplava o horizonte da varanda de sua casa, que se localizava na parte mais alta da rua. Apreciava a imagem da cidade naquela manhã de domingo. Zyah havia passado a noite com ela e saiu de madrugada para trabalhar.

 

--Dona Suhaila, acabou-se o feijão e as verdura e só tem um pinguinho de legume e ovo.– a cuidadora anunciou ao se aproximar – Seu Zyah também me disse que vai faltar arroz, farinha e fubá.– olhava para a paciente – A senhora pode ficar aqui sentadinha enquanto vou comprar? – apontou para a cadeira de balanço – Arrumo a senhora nela e vou e volto num instante.

 

“E como que ninguém tinha visto isso até agora?” – pensou contrariada -- Esses meus filho... – revirou os olhos – Tá bom, me sente aí e fico lhe esperando chegar. – concordou – Leve minha bolsinha que o dinheiro que tá aí dentro deve de dar mode comprar as coisas. – apontou para a carteirinha

 

A mulher colocou duas almofadas na cadeira, ajeitou a paciente e saiu apressada com a bolsinha nas mãos.

 

“Quem diria que um dia eu ia ter que depender dos outro pra fazer qualquer bestagem, até me sentar nessa cadeira velha que um dia foi de mãínha...” – Suhaila pensou entristecida – “Quem diria...”

 

Eu nunca tive pretensão de carreira ou profissão. Sempre trabalhei mode ganhar o sustento mas não sonhei com as coisa grande como minha filha. Fui levando a vida cuidando da família, dos que vieram antes e dos que vieram depois de mim, e de repente o tempo passou e levou minha saúde com ele e minha mocidade... Ou nem foi o tempo, mas a tal da CONVIDE miserenta que me deixou essas doença que ninguém entende... Eu não sei por que Deus quis que eu passasse por isso. Pode ser aquelas coisa que fala nos centro, de encarnação, dívidas do passado... Eu não sei... Me resta continuar com resignação e fé, mas eu tenho medo e me sinto só apesar de tudo.

 

--Espia só, o pistingo de cabeça baixa... – reparei no robô parado no cantinho da varanda – Até ele desistiu de mim... – suspirei e peguei o celular no bolso do vestido – Deixe ouvir minhas música! – decidi – Botá aquela do show das orquestra. – procurei a canção

(NOTA DA AUTORA: esta versão com a orquestra de Ouro Preto é especialíssima! https://www.youtube.com/watch?v=BXw_oXZhG5Q)

 

“Na bruma leve das paixões que vem de dentro,

Tu vem chegando pra brincar no meu quintal...”

 

Por um momento me lembrei de uma prosa que tive com minha filha.

 

“--A senhora lembra de alguém quando ouve essa canção? Noto como se entrega à música. – pausou brevemente – Pensa em meu pai, por exemplo? – arriscou

 

--Não... não penso em seu pai há muitos e muitos anos. – olhava na direção de Camilla – Eu penso... não sei... – silenciei brevemente -- Mas desde muito tempo parece que eu espero uma pessoa chegar ou uma coisa acontecer... eu não sei, mas essa música mexe com minhas saudade, não sabe? – dei um suspiro – Já que não tem luz, celular e nem nada, cante ela pra mim? – pedi”

 

Fiquei olhando lá pro fim das vista que vejo dessa varanda e imaginei que minha filha cantava junto com meu artista preferido. Era capaz de ouvir a voz dela...

 

“No teu cavalo, peito nu, cabelo ao vento,

E o sol quarando nossas roupas no varal...”

 

--Isso é hora de enguiçar? – a professora reclamava dando um soquinho no volante – Só porque ficou três meses sem uso não era pra isso, né, fio? – ralhava com o carro – Mas tá bom, melhor você se danar aqui do que no meio da estrada. E pelo menos tá perto da oficina do Janjão. – saiu do veículo e pegou a mochila cargueira – Simbora, caipira! – falava consigo mesma

 

“Na bruma leve das paixões que vem de dentro,

Tu vem chegando pra brincar no meu quintal...”

 

Eu subia a ladeira com pressa. Estava ansiosa por chegar na casa de maama. Depois de três meses em Zurique sob muito trabalho, tensão e reflexões, finalmente me decidi! Não era o meu momento de me distanciar, não era o momento de focar em estudos ou numa nova relação com Bianca, que nada tinha de nova. Eu queria e precisava estar ao lado de maama.

 

“No teu cavalo, peito nu, cabelo ao vento,

E o sol quarando nossas roupas no varal...”

 

--Oxe? – Suhaila avistou uma mulher que subia a rua com um mochilão nas costas – Mas... é ela?? – o coração disparou

 

“Tu vens, tu vens,

Eu já escuto os teus sinais...”

 

Logo avistei maama sentadinha da cadeira de balanço que um dia foi de gidda. Meu coração disparou e um nó na garganta me embargou qualquer fala que desejasse verbalizar. Os olhos se encheram de lágrimas e pude me lembrar de flashs da conversa definitiva que tive com Bianca.

 

“--Eu não vou dizer que não sinto nada ou que não te ame, mas acho que nós não soubemos construir um relacionamento aqui! – falava com emoção – Você representa tudo que eu sempre quis ser, tudo que sempre me senti cobrada a ser como mulher e nunca consegui! – admitiu – E você vê em mim a proteção de mãe que nunca teve de sua maama e se condiciona numa dependência emocional comigo por causa disso! Essa é a razão de seu ciúme que sempre nos desgastou! – chorava contidamente – Eu me prendo a você porque minha autoestima é frágil demais e você se prende a mim porque se sente insegura pra conduzir sua vida por si mesma!

 

--Não me diga isso! – Bianca pedia ao cobrir os ouvidos com as mãos – EU NÃO QUERO OUVIR! – gritou”

 

“Tu vens, tu vens,

Eu já escuto os teus sinais...”

 

--Minha filha!! – Suhaila incrivelmente se levantou sozinha e caminhou até a beira da varanda – Ela veio! – chorava contidamente – Ela veio! -- sorria

 

“A voz do anjo sussurrou no meu ouvido,

Eu não duvido, já escuto os teus sinais...”

 

Sorri espontaneamente ao ver maama levantar-se sozinha e se apoiar nas grades da varanda. As emoções turbilhonavam em meu peito junto com as lembranças de fatos recentes.

 

“--Eu não tô te abandonando, não tô te sacaneando, tô apenas te deixando livre porque precisamos nos libertar! – olhava nos olhos da advogada – Há anos vivemos nesse círculo vicioso, acreditando em promessas de que vai ser diferente sem que realmente seja! – estava emocionada – Seja aqui, no Recife ou em qualquer lugar, somos as mesmas pessoas e os problemas também serão!

 

--E por que a gente tem que se separar? – Bianca não se conformava – Eu não aceito perder você!

 

--A gente precisa se separar pra ser feliz, minha linda! – respondeu de pronto – E se resta alguma esperança pra nós, é preciso que a gente aprenda a amar porque nesses anos todos não aprendemos! – chorava – Eu me apaixonei pelo que queria ser e você pela mãe que nunca teve!”

 

“Que tu virias numa manhã de domingo,

Eu te anuncio nos sinos das catedrais...”

 

--Filha!! – Suhaila chamou em voz alta – A chave tá debaixo do capacho! – anunciou mal controlando o choro

 

--Eu sei, maama! – chorava também – Eu sei! – correu até o capacho para pegar a chave

 

“Tu vens, tu vens,

Eu já escuto os teus sinais...”

 

Mal cheguei na varanda, maama se lançou nos meus braços como uma menina indefesa.

 

--Eu tenho tanto medo disso tudo que tá acontecendo comigo! – aconchegou-se nos braços da professora – Eu tenho tanto medo... – chorava

 

--Tenha medo não, maama! – abracei-a com cuidado – Tô aqui pra proteger a senhora! – fechei os olhos

 

“Tu vens, tu vens,

Eu já escuto os teus sinais...”

 

Não sei se foi por uma criação mental dos processos de Simone ou se por realidade, mas fui capaz de ver gidda, giddu e tia Jandira ao nosso lado, sorrindo para nós e nos abençoando. Eu sentia que eles estavam felizes e isso me encheu o peito de esperança.

 

“Tu vens, tu vens,

Eu já escuto os teus sinais...”

 

Fiz a minha escolha e estava certa de que era exatamente ali onde eu deveria estar.

 

“Ah, ah, ah, ah, ah, ah, ah, ah, ah, ah, ah, ah,

Ah, ah, ah, ah, ah, ah, ah, ah, ah, ah, ah, ah...”

Anunciação. Intérprete e compositor: Alceu Valença. In: Valencianas: Alceu Valença e Orquestra de Ouro Preto, 2014. (4min47).

 

***

 

--Então eles se empolgaram em estabelecer um intercâmbio conosco. Consegui envolver também uns colegas da USP e outros da UFRJ nessa negociação. – contava – Os alunos brasileiros construíram uma reputação muito boa na Europa durante o extinto programa Ciência sem Barreiras e isso ajudou muito. -- gesticulava brevemente -- Pra começar, você vai pra lá no ano que vem e um aluno deles, o Timothy, filho de angolanos, vem pra cá. – olhava para a orientada – Eles ficaram impressionados com seu currículo cheio de experiências internacionais e te aceitaram por unanimidade. Também vendi teu peixe muito bem, então se avie e não vá me fazer passar vergonha! – brincou

 

--Tô impressionada! – Suellen estava boquiaberta – Com tudo! – afirmou enfaticamente – Com essa costura que você fez com o pessoal do Sensors Group e três universidades brasileiras além do fato de ter voltado depois de apenas três meses na Suíça... – balançou a cabeça estupefata – Você vai continuar de licença sem vencimentos e vai ficar morando em Triunfo pra cuidar de sua mãe? E Bianca, como é que fica? – queria saber

 

--Vou ficar com maama integralmente ao menos por um ano! – cruzou as pernas – No mais, vou tratando com o pessoal daqui e da Suíça remotamente, o que é perfeitamente possível, e vou me mantendo com o dinheiro que tenho no banco. Quando acabar, aí a gente vê. – passou a mão nos cabelos – Quanto a Bianca, me perdoe, mas isso não te interessa!

 

Abaixou a cabeça brevemente. – É, tá certa, não me interessa. – pausou brevemente – Mas da parte que me interessa, por que fez isso? Por que recomendou justo a mim? – não conseguia entender – Eu fui uma vaca com você e no entanto...

 

--No entanto uma mulher muito sábia me ensinou a receita de Jesus. – interrompeu a fala da outra – E, repetindo o que ela me disse, com Jesus não se discute! – sorriu

 

--Cara... – não acreditava – Você vive nessa vibe de fazer o bem por que é espírita? – queria entender – Aliás, como você se tornou espírita?

 

--Tudo começou no meu segundo ano de curso técnico. – lembrava – Conheci uma moça de São Paulo que me apresentou à doutrina e me encantei logo de pronto! Pela mesma época maama conheceu uma senhora em Triunfo que frequentava um centro nas redondezas e ela também se encantou com o Espiritismo. – resumiu a história – E desde então, nunca mais saímos desse caminho. – pausou brevemente – Ou vibe, como você diz.

 

Achou graça. -- Eu... posso te abraçar? – pediu timidamente

 

--Só se prometer que não vai se apaixonar por mim! – brincou

 

--Ah! – riu brevemente e se levantou – Pode deixar, eu não tenho o velho fetiche da aluna que deseja a professora! – abriu os braços

 

--Que bom! – levantou-se também e abraçou a aluna – Porque eu não daria conta de lidar com isso. -- sorria

 

***

 

--Eu fiquei pasma com a sua decisão e tudo o mais que fez, mas... senti um orgulho imenso! – Elzira dizia embevecida – Tenho certeza de que se mãínha tivesse viva ela também ficaria orgulhosa. – pausou brevemente – Ela sempre teve muito orgulho de você!

 

--E de você também! – respondeu de pronto – Graças a Deus, ela tem tido motivos de sobra pra se manter orgulhosa de você! – sorriu

 

As duas primas conversavam no apartamento de Camilla.

 

--É... talvez ela tenha, né? – abaixou a cabeça envergonhada – Tirei Xarid de dentro de mim, continuo frequentando o grupo de mulheres, tô indo bem no trabalho, voltei a estudar...

 

--Amém! – a professora postou as mãos brevemente

 

--E o mais importante: venci sua ex síndica nas eleições e agora quem manda nesse prédio sou eu! – brincou e as duas riram – Ave Maria, esse negócio de síndica é um atraso de vida, mas eu tô dando conta!

 

--Graças a Deus dona Sibele conseguiu nada do que queria: nem a anulação do processo e nem a posse como síndica! – Camilla respirou aliviada – E a dívida dela será paga querendo ou não, pois os bens dela continuam nos dando aquela força! – riram novamente – Ai, ai... – balançou a cabeça

 

--Mas, prima, me diga... – olhava para a outra – Você sabe que vez por outra dona Rute vem aqui me visitar, não sabe? Tem vez que traz até a neta. – Camilla balançou a cabeça positivamente –Quando os meninos tava de férias aqui mais eu, se juntaram com Astraia e aprontaram todas! – pensava nos afilhados – Mas não quebraram nada, eu fiquei em cima! – garantiu – E tem vez que dona Rute traz uns homem da igreja dela mode me conhecer... – prestava atenção na prima – Isso não seria arranjo seu pra me arrumar namorado não, né? – queria saber

 

Achou graça. – Você sabe que nunca fui alcoviteira, então não, não é um arranjo meu! – dizia a verdade – Mas ela me pediu permissão pra trazer esses pretendentes pra você e eu pensei: bem... vai que? – riu mais uma vez – Mas, se você quiser, falo com ela pra parar de fazer isso.

 

--Não... – fez um gesto breve – Tem feito bem pra mim saber que tem uma ruma de homem na igreja dela tudo me querendo, não sabe? – sorriu

 

--Como nos velhos tempos né, prima? – brincou

 

--Pra ficar igual, só se você for carne e unha comigo que nem era naquela época... – respondeu timidamente – Será?

 

--E por que não? – levantou-se – Vem aqui, mulher fatal da família! – abriu os braços

 

--Boba! – abraçou a professora com carinho – Eu te amo! – fechou os olhos

 

--E eu também te amo!

 

***

 

Camilla contemplava o sol se pôr sentada em uma pedra no Pico do Papagaio. Outubro estava por terminar e ela pensava na vida. Suhaila havia ficado em casa com Leyna e Xarid, que estava consertando a porta da cozinha.

 

“Amanhã é seu aniversário, né, Bianca?” – mirava um ponto no infinito – “Você continua sendo a minha referência pra um monte de coisas, te admiro muito e te desejo o que de melhor poderia acontecer para uma filha de Deus!” – falava dentro da mente – “Não vou te escrever nem ligar pra evitar parecer que busco uma aproximação e com isso te perturbar, mas Deus sabe que meus pensamentos estão com você!” – mandou um beijo para o céu – Que esse beijinho chegue pra você como um doce carinho, onde quer que esteja! – desejou

 

E lá estava ela, sentadinha admirando a vista. Camilla sempre teve essa conexão com natureza, montanha e coisas perigosas que definitivamente não fazem a minha cabeça! Mas até que um lugarzinho como esse chega a ser romântico. Melhor ainda que está deserto!

Peguei o celular e deixei tocar em mais alto volume a música que me parecia perfeita para aquele momento.

 

“Ô, Sol,

Vê se não esquece,

E me ilumina,

Preciso de você aqui...”

 

--Oxe? – a professora levantou-se rapidamente virando-se para trás – Bianca?! – não acreditava

 

--Não foi só você que sentiu falta do sol. – sorri

 

“Ô, Sol,

Vê se enriquece,

A minha melanina,

Só você me faz sorrir...”

 

--Mas... – não sabia o que dizer ou pensar – Que faz aqui, linda? – observava a advogada se aproximando

 

--Tô de volta! – anunciei sem rodeios – Junto de minha irmã e minha mãe. – pausei brevemente – Uma vez alguém me disse que quem despreza a própria família não pode cuidar bem de quem nem conhece. – repeti as palavras de Camilla – Refleti sobre isso! – olhava nos olhos

 

--Ah... – abriu a boca mas nada verbalizou

 

“E quando você vem,

Tudo fica bem mais tranquilo,

Ô, tranquilo...”

 

--Quanto à OIT, a sede não vai sair do lugar, já conheço o caminho e eles entenderam que nesse momento eu sou muito mais necessária aqui do que lá! – continuei explicando

 

A morena apenas ouvia quase sem acreditar.

 

“Que assim seja, amém,

O seu brilho é o meu abrigo,

Meu abrigo...”

 

--E dessa vez vou me dedicar a um tratamento sério pra trabalhar certas questões como os ciúmes e tals... – passei a mão nos cabelos – Não vai ser com Simone, mas com uma colega que ela me recomendou. Deve ser fera igual, né? – continuei sorrindo

 

--É... – a professora respondeu abestalhada

 

“E toda vez que você sai,

O mundo se distrai,

Quem fica, ficou,

Quem foi, vai, vai...”

 

--Será que desse jeito... – parei bem diante dela – Daria pra gente tentar e... recomeçar? De repente aprender a amar de verdade?

 

“Toda vez que você sai,

O mundo se distrai,

Quem fica, ficou,

Quem foi, vai, vai, vai...”

 

Sorriu. – Vem cá! – puxou a ex namorada para um abraço apertado – Eu te amo, sua maluquinha!

 

“Acho que isso é um sim!” – pensei satisfeita – “Um sim...”         

 

“Quem foi, vai, vai, vaai,

Quem foi...”

O Sol. Intérprete: Vitor Kley. Compositor: Vitor Barbiero Kley. In: Adrenalizou. Midas Music, 2017. (3min36)

 

Creio que para você que acompanhou esse desabafo até aqui, pode ter parecido que a grande escolha cabia a mim e que ela havia sido feita no momento em que decidi voltar para junto de maama. Porém a verdade é que todas nós tínhamos uma escolha a fazer e me parece que a mais difícil de todas elas talvez tenha sido a de Bianca. Isso porque ela precisou renunciar aos planos que tinha feito. Era ela quem queria mudar tudo, desde o começo. Era ela quem não pensava em abrir mão de nada por causa da família. Em suma, eu não buscava outra coisa além de tentar superar minhas limitações e resolver os problemas que a vida me trouxe.

Bianca, e ela sim, me surpreendeu muito.

Ela se viu na necessidade de escolher e escolheu: mudou tudo, abriu mão de seus sonhos imediatos pelo bem de outras pessoas.

Ela renunciou e se colocou disposta a mudar...

Por amor.

 

“O Amor, sublime impulso de Deus,

É a energia que move os mundos:

Tudo cria, tudo transforma, tudo eleva.

Palpita em todas as criaturas.

Alimenta todas as ações.

(...)

A experiência é o Amor que amadurece.

A renúncia é o Amor que se ilumina.

O sacrifício é o Amor que se santifica.

O Amor é o clima do Universo.”

 

Francisco Cândido Xavier. Falando à Terra, Diversos Espíritos

 

Fim do capítulo