Caminhos entrelaçados
Assim que cheguei em casa e liguei pra minha mãe, já sabia que, no fundo, a notícia de passar mais uns dias longe de casa não ia ser bem recebida.
— Não, mãe, a senhora sabe que também sinto sua falta, mas...não, mãe. Não, mãe! Não é nada disso... – tentava argumentar sem sucesso – Ele foi um babaca mesmo, mas é que...Poxa, não é isso. Ah, é? Tudo bem. Não, sem problemas, a senhora sabe. Tá, até mais tarde, beijo, também te amo.
Cristiano olhava para toda a cena de relance até que se aproximou.
— Se desentenderam?
— Ela só ficou nervosa com toda essa situação – dei com os ombros – que eu deveria voltar logo e deixasse tudo isso para lá.
— É o que você quer?
Dei um sorriso sarcástico em sua direção. Já éramos próximos o suficiente pra brincar um com o outro assim.
— Vai morrer de saudades quando eu for?
— Claro! Imagine ter que aguentar essa aí sozinho – ele apontou para a frente, e vi Catarina chegando dos seus passeios matinais. Não fazia ideia de onde ela ia, mas pelo que aparentava, deveria ir para um rio ou algo do tipo.
— Qual o problema com sua irmã?
— Devo falar os problemas dela por ordem alfabética ou cronológica? – ele dizia em um tom revolto – Enfim, deixa ela pra lá. Tá a fim de ir pra casa do Lucas mais tarde?
— O que terá lá?
— Vamos jogar umas partidas, pedir uma pizza, não tá a fim?
— Seria legal, mas...eu... – pausava as palavras, tentando procurar as exatas palavras – Posso levar uma amiga?
— Quem, a Yas? – ele levantou uma das sobrancelhas – Claro, sem problemas! Avisa aí que a gente vai buscar ela.
*
— Posso perguntar uma coisa pra vocês?
— Claro, Téo – dizia Cristiano enquanto ficava com a cabeça nas pernas dele, e Yasmin mexia com o fumo em suas mãos, sentada com as pernas em cima das minhas. Lucas, o anfitrião, ficava em uma cadeira ao lado de Cristiano, compenetrado no jogo sem dizer nada.
— O que vocês fariam se o pai de vocês fossem um cuzão do tipo que não dá pra ficar perto?
— O meu é desde que nasci, então nem sei... – dizia Yasmin com um riso contido – Se fosse pra escolher, acho que ficaria longe.
— Minha irmã é uma otária do caralh* e mesmo assim não consigo ficar longe dela... – Cristiano ponderava – Não dá pra deixar de ser irmão, mesmo ignorando.
— Uma otária muito boa, inclusive – Lucas dizia arqueando as sobrancelhas, no qual Cristiano respondeu dando um chute, empurrando a cadeira dele pra longe.
— Vai se foder, imundo!
Apesar da pequena discussão de fundo, aquele era um ponto a se pensar. Não dá pra deixar de ser família, distante ou não. Era diferente entre conviver com alguém e ter a escolha de ter contato com aquela pessoa, era verdade. Yasmin terminou de bolar o material e acendeu, enchendo o quarto com o cheiro forte que aquilo exalava. Ela me ofereceu, eu neguei, mas os demais aceitaram.
— Seu pai foi otário contigo? – ela tragava, deitando-se de lado ao me olhar.
— Bastante... Acho que não vamos nos dar bem.
— Acho que deveria colocar em uma balança – ela gesticulava com as mãos livres, virando para olhar para cima, e Cristiano devolveu o cigarro a ela – Vale a pena eu estar fazendo esse esforço todo? Para quem estou fazendo esse esforço, é para mim mesmo? O que me motiva a estar aqui? Se os pontos negativos pesarem mais, tem que ver o que te leva a continuar fazendo isso.
— Tem razão... – concordava com a cabeça, totalmente embargada pelo cheiro que se mantinha ali.
— É, Yas, mas digamos que, por exemplo, o pai da Téo é um cuzão, mas se ele quiser mudar a relação deles é bom, mas, e se não? Se ficar falando que é ela a errada? É isso que digo, família ainda é família por causa desses malditos laços...
— Cristiano, tu já tá levando essa merd* pro pessoal – Lucas voltava a falar – vai fazer uma terapia mano, sei lá. A Téo tá falando do pai dela, não da gostosa da tua irmã.
— Ah, a Catarina está aí, Cris? – ele fez uma cara de desgosto enquanto batia no Lucas mais uma vez – Poxa, por que tu não me falou nada, amigo?
— Por que tá interessada? – dizia ele sério, voltando a olhar pro monitor – Ela não vai te dar moral mesmo.
Comecei a rir, mesmo que não tenha entendido o comentário.
— E ela tá com alguém?
— Não sei e não tenho interesse em saber.
Passamos mais um tempo ali falando sobre outras coisas, esquecendo completamente o assunto, até que ela recebeu a ligação do pai pra ir logo pra casa. Acompanhei ela até a saída porque a curiosidade sobre o comentário dela acabou sendo maior.
— Por que tu fica irritando o Cris deixando entendido que a irmã dele é... Sabe? Ele tem problema com gente assim?
Ela levantou uma das sobrancelhas, e começou a rir.
— Deve ser porque a Catarina é, Teodora, só por isso.
— Claro que não, Yas – negava com a cabeça – nada a ver.
— Tá se fazendo, né? – ela tocava na minha testa – Não é segredo pra ninguém isso, só que ela é reservada. Só isso.
Isso de fato não era do meu interesse, e nem sei se deveria ter ficado perguntando da vida pessoal de alguém.
— Por quê? Está interessada nela? – disse ela rindo. Fechei logo a cara, negando com uma careta – Ah, que bom, porque se não ia começar a chorar desde agora.
Ela beijou meu rosto e se despediu de mim mais uma vez. Não demorou muito para que eu fosse pra casa também, deixando Cristiano com o amigo dele e suas partidas repletas de palavrões e reclamações. Assim que cheguei, fui direto para o meu quarto e, para a minha surpresa o quarto de Catarina estava com a porta aberta.
Não consegui conter a minha curiosidade de olhar, nem que fosse de relance. No entanto, antes que pudesse voltar para o meu caminho, um item em específico me chamou a atenção. Tamanha foi a atenção que mal pude perceber que meus pés me levavam para dentro do quarto a passos lentos, hipnotizados pelo que via. Nem conseguia notar o que tinha no quarto e ao meu redor.
Eu já tinha visto isso em algum lugar, tinha a certeza disso, mas não conseguia me recordar exatamente onde. Analisei por mais alguns segundos até que veio como uma luz em minha mente a lembrança.
Questionei-me como ela tinha um item daquele em suas coisas.
— Conhece essa artista?
A voz marcante de Catarina ecoou atrás de mim. Com o vestido de alça que mostrava seus ombros e sua tatuagem, o cabelo preso, segurava uma xícara em mãos enquanto caminhava até mim.
— Bem, eu... Já fui em uma exposição que tinha esses quadros.
— Essas são originais – ela apontou para o quadro, colocando a caneca em sua escrivaninha.
— Sério? – olhava com espanto ainda maior para as obras.
— Sério – Catarina deu com os ombros, indo para o toca-discos que tinha em seu quarto. Colocou o mesmo disco que estava tocando naquele dia que a vi no jardim – ela era amiga do meu tio.
De um primeiro momento, não tinha dado atenção, mas na segunda vez me despertou curiosidade.
— Você está cheirando a maconha – Catarina continuou.
Olhei para ela de relance.
— Eu sei.
Saído do transe em que estava, notei o que tinha ao meu redor. Seu quarto parecia ter saído de um filme. Tinha ao mesmo tempo um ar esotérico e antigo. Sua cama de casal com colchas felpudas e travesseiros que pareciam ter suas fronhas costuradas à mão, uma grande mandala tingida presa acima da cabeceira da cama, parecida com que ela tinha em seu braço, proveniente da herança dos pais, o piso de madeira como do resto da casa, as cortinas de conta misturadas com a tingidas à mão também.
Ao lado, sua abarrotada estante de livros, a escrivaninha de modelo antigo e o seu toca-discos, com alguns deles em uma caixa ao lado. Tudo aquilo em um cheiro que misturava o incenso que queimava ali com o mofo de seus livros antigos. Se ela morasse em minha cidade, com certeza seria taxada de hipster.
— Trabalhei tanto tempo com toxicodependentes no meu mestrado que perdi totalmente a vontade de usar, acredita? – ela voltou a tomar seu chá.
— Sério? E como era esse estudo?
— Bem... – ela pressionava os lábios, pensativa, e voltou a olhar para mim – Analisava alguns estudantes universitários e o motivo que os levava a serem viciados, no dialeto popular.
— Eu não entendo nada disso, pra falar a verdade – cruzava os braços, encostando-me na parede – mas você concluiu o quê?
— Olha, resumindo bem, é a estrutura da pessoa que a faz ruir. Frustração, problemas pessoais, mas a maior incidência eram problemas familiares. Pessoas que faziam faculdade por causa dos pais, avós, ou que vinham de uma família conturbada, situações de trauma...Imagina que a mente de alguém sofreu várias rupturas e ela preencheu aquilo com drogas. Elas sempre vão permanecer ali se você não fizer nada, e as substâncias químicas só vão servindo para mascarar as coisas.
— Resumindo, não usem drogas e façam terapia?
Catarina me olhou de relance e riu.
— Sim, basicamente isso, ou melhor, se forem usar drogas, usem com moderação, não achando que elas vão suprir o vazio deixado por sua família.
Voltou a tomar seu chá, com os olhos fechados, apreciando o ar morno e a música que tocava.
— Por que escolheu fazer isso? Algum motivo em específico?
Catarina voltou a olhar para mim.
— Fiz toda minha graduação baseada em ajudar a mente do próximo de fato, eficaz – ela fechou os olhos mais uma vez, sentindo o vapor do chá subir em seu rosto – então, foi natural chegar nessa linha de pesquisa, ainda mais que a outra tinha levado pro pessoal demais.
Pensei se deveria perguntar o que a tinha feito levar pro pessoal, mas resolvi deixar pra lá.
— Mas, conseguiu? – me prestei a me manter na linha da conversa – Ou pelo menos acha que conseguiu ajudar as pessoas?
— Acredito que sim, Teodora – ela me encarou de onde estava, deixando a xícara de lado – mas, o preço que paguei pra isso... Sinceramente, não sei se estaria disposta a pagar novamente.
— É...Mas, pense pelo lado bom – dei um tímido sorriso de canto – você deve ter feito uma diferença e tanto na vida de muitas pessoas.
Ela se prestou a dar de ombros como resposta.
— É um jeito otimista de ver as coisas.
Olhei pra porta de volta, e depois pra ela. Pelos livros abertos na cama e o computador ligado, ela deveria estar ocupada e cheguei na hora que estava descansando.
— Bem, boa noite, Catarina.
— Até mais, Teodora – disse ela dando um aceno enquanto saía pela porta de onde vim.
Fim do capítulo
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