Capitulo IV
Duas semanas haviam se passado, e os preparativos finais para o baile de lançamento do projeto Essentia Artis¹ – nome escolhido por Adélia, estavam a todo vapor. Sabrina era a mais animada de todas nós, sem dúvida. A facilidade que ela tinha de organizar uma festa era invejável. Agradecia imensamente pelo privilégio de trabalhar com alguém tão competente quanto ela. Apesar de ter assumido esta parte, eu não tinha muito tato com preparativos festivos, então o talento dela me era muito bem-vindo.
Lidar com os artistas era completamente diferente. Enquanto, Sabrina se aventurava escolhendo música, decoração e cardápios, eu me fascinava com as histórias sobre cada uma das obras e a trajetória dos criadores delas. Queria enxergar através de seus olhos, ter a mesma perspectiva, entender todo o processo criativo. Absurdamente irônico – eu sabia. Bastaria um toque simples para ser engolida pela compreensão instantânea, mas não era essa a percepção que eu mais apreciava. Continha certa magia em adivinhar as intenções dos artistas. Esse sentimento era o que me impressionava e cativava meu total interesse.
Adélia, por outro lado, andava ocupada com as negociações com fornecedores e potenciais patrocinadores. Fazia alguns dias que não via a mulher que vinha ganhando constância nos meus pensamentos. Apesar de não nos vermos com a frequência da qual eu gostaria, estávamos nos falando bastante, ás vezes trocando informações sobre o projeto ou conversando sobre algo aleatório. O diálogo entre nós duas fluía fácil demais. Tudo com Adélia era suave e agradável.
Eu que odiava tanto os clichês, agora vinha sendo alvo de todos eles – patético. Um dos mais insistentes… a incerteza da reciprocidade. Essa maldita estava sendo a culpada pela minha súbita covardia, dos nós de ansiedade que se formam aos montes no meu estômago. Não que eu não tivesse experiência em demonstrar interesse em alguém, pelo amor da Deusa, mas tinha algo nisso tudo que me exigia cautela. A gentileza e atenciosidade daquela mulher não eram exclusividade minha, eu bem sabia, mas os olhares… Céus! Tinha uma densidade familiar, que me confundia demais. Ao mesmo tempo que aqueles olhos derretiam doces como mel, também me incendiavam como labaredas de lascívia.
Naquele dia em especial, um sentimento que há muito tempo não me abatia deu as caras sem ser convidado. Saudade. Sim, a famigerada inimiga da distância dava seu olá doloroso. Era tão ridículo, no auge da minha vida secular, estar sendo vítima de suas maquinações perversas. A falta de Adélia estava me mordendo os ombros, me apertando inteira por dentro. Sentia a ausência de pousar meus olhos em seu sorriso gentil, de ouvir sua voz delicada de perto e sorver seu perfume que embriagava meus sentidos. Eu não era mulher de passar vontade, e eu estava cheia dela. Carajo!²
Com as mãos trêmulas digitei uma mensagem, palavras recheadas de incerteza e expectativa. Um clamor tímido que resultou numa resposta quase imediata. Ela vinha! O alívio me tomou por inteira. Não demorou muito para que Sabrina anunciasse sua chegada ao meu escritório, como também não demorou para que sua presença me arrancasse outro daqueles sorrisos tão fáceis, mordidos no canto da boca, irrefreáveis. Eu estava completamente perdida! Pela Deusa!
— Fiquei feliz, e um pouco surpresa pelo convite. – disse tímida, se aproximando a passos lentos, equilibrando-se com elegância e graça em cima de saltos tão altos. Simplesmente, linda!
— Espero não ter te atrapalhado, mas não vou mentir, precisava te ver! – confessei, insegura. Recebi um sorriso radiante, aquele que fazia minhas pernas tremerem e apertava meu peito de uma maneira gostosa.
— Já está livre? Pensei em tomarmos um vinho e jogar conversa fora. – propôs, confiante. Afirmei com uma empolgação quase ingênua, enquanto nos dirigíamos para fora do prédio. A expectativa de ter toda a sua atenção voltada para mim fazia minha pele formigar de ansiedade.
Sugeri que fôssemos para o meu apartamento, e ela aceitou prontamente. Após uma breve apresentação do meu espaço pessoal, marcada por seus elogios à decoração e à minha evidente organização, seguimos para a sacada. A noite alcançava seu ápice, acompanhada de estrelas que irradiavam um brilho especialmente magnífico. Os tons prateados que tingiam a pele de Adélia conferiam-lhe um ar quase etéreo, deslumbrante e intocável.
— Estou bem animada para a noite de amanhã! – afirmou entusiasmada, pegando a taça pela metade que a ofereci. A menção do evento que ocorreria no dia seguinte me fez sorrir pequeno, ciente de que os ânimos de todos estavam aflorados devido a tanta expectativa.
— Não mais que Sabrina! – brinquei, em seguida tomando um gole da minha própria taça.
— Pela Deusa, ninguém supera aquela garota! – disse divertida. — Apesar de que, Daniel também tem me deixado louca a semana toda, perguntando detalhes do baile. Os dois podem dar as mãos quanto a isso. – rimos juntas. O olhar que ela me lançou em seguida, parecia carregar uma expectativa ansiosa, aumentando ainda mais o peso da pergunta pairando em suas íris escuras. — Eva… você… você vai levar alguém? – inquiriu baixinho, de repente.
O questionamento quase tímido surpreendeu meu pobre coração, que já dava sinais de genuíno contentamento com o sabor da possibilidade. Senti uma onda de excitação misturada com nervosismo, tendo a maldita certeza de que aquela era a chance que eu tanto esperava. Adélia me queria!
— Minha atenção será toda sua, senhorita Zwane. Não tenha dúvidas! – soltei o cortejo sem culpa. Disfarcei minha satisfação com seu embaraço, com outro gole de vinho. O gosto único da mistura entre uva e álcool se espalhou depressa por meu paladar. Acentuado. Incitante. Corajosamente, mantive nossos olhares entrelaçados, compartilhando uma entrega e desejo intensos. A constatação de que aquela mulher me queria de forma mais íntima, abalava a minha prudência. A maior prova disso, foi minha falta de iniciativa em não me afastar quando percebi a aproximação repentina de Adélia, quando seu rosto pairou rente ao meu, perto demais. A mescla entre o aroma característico do vinho com seu cheiro de cravo e morango, deixava a ideia de tocá-la muito mais tentadora. Eu queria tocá-la! Aquela idealização soou tão atraente a ponto de nublar minha percepção do quão próximas realmente estávamos, e o que aquilo significaria. Dei-me conta de minha falha, tardiamente. Os lábios cheios encostaram-se aos meus, urgentes, numa carícia deliciosa. O beijo evoluiu lento, instigante, inflamando a vontade que eu tinha dela.
Pela primeira vez em anos, sentia somente os meus próprios sentimentos ao encostar em alguém.
A euforia de não ser atravessada pela memória de outra pessoa deixou meu corpo elétrico, extasiado. Aprofundei o beijo, aproveitando as sensações extraordinárias que o toque dos lábios de Adélia estava me causando. Era cheio de apego. Gostoso demais. Finalmente, podia me permitir estar tão próxima a alguém daquele jeito sem sofrer as consequências.
Contudo…
Eu não poderia estar mais enganada. Os efeitos indesejados da maldição me assaltaram de uma vez. Ondas repugnantes de pavor reviraram meu estômago em fúria. Ignorância, medo, insegurança, preconceito, rancor, ódio, eram só alguns dos sentimentos que pintavam o cenário da memória compartilhada de Adélia. Me senti hostilizada, rejeitada, invadida, desrespeitada, invisível, inadequada. A confusão de emoções arranhava meu peito como feras enjauladas juntas num espaço pequeno. Dolorosamente, afastei-me com a maior delicadeza e gentileza possível. A angústia intensa causada pela lembrança parecia querer arrancar minha pele dos ossos. Afastei-me ainda mais de Adélia, agindo por instinto, fazendo-a me olhar com um misto de assombro e confusão.
— Adélia… – minha lamúria saiu ofegante, carregada de uma empatia dolorosa. Meu corpo inteiro vibrava de maneira desagradável. Sabia que meu rosto devia refletir a aflição interna que eu estava sentindo. Ela havia sofrido tanto! Minha doce Adélia!
— Eva, me desculpe. Eu… me desculpe! – pediu incerta e meio abalada. Apoiada no parapeito da sacada, Adélia respirava fundo, parecendo perdida. Eu queria tanto poder estender minha mão para tocá-la, para oferecer conforto e apoio. Maldição, maldita!
— Adélia… eu… não é uma rejeição! Por favor não entenda assim! – suspirei derrotada, suspirando com sofreguidão. Adélia assentiu, jogando-nos num silêncio que se estendeu repleto de tensão.
— Só… me diz o que há de errado... por favor?! – pediu, num fio de voz. Seu olhar cheio de incerteza, me doeu.
A velha desculpa esfarrapada, que me acompanhava por anos a fio, queria pular da minha boca por costume. Me sentia uma grandíssima idiota por ter de usá-la. Não tinha como não contar aquela inverdade para justificar minha reação. Naquele momento, seria uma mentira nobre para privá-la de se sentir responsável pelo meu desconforto. Ela não merecia cultivar aquela culpa.
— Afefobia³… – soprei, relutante. — É isso… uma maldita evitação fóbica de afeto ou contato físico, que resultam nessas reações extremas. – ali estava… a grande mentira! A história ensaiada e ridícula, reafirmando aquela fantasia como se repeti-la a tornasse uma verdade – não tornaria – por mais que eu a dissesse a tanto tempo.
— Isso é… compreensível. Eu só… não queria ultrapassar nenhum limite e lhe causar mal. Me perdoe?! – disse com um cuidado diferente na voz. Adélia me olhava como se eu fosse frágil, preciosa. Não tinha a costumeira aversão, ou deboche de quando eu dizia aquilo a alguém. Havia compreensão, simples e pura. Me senti suja por enganá-la daquela forma, por despejar aquilo apenas para justificar o quão quebrada de verdade eu era.
— Sou eu quem tem que se desculpar. Não tinha como você saber! – soltei mais um suspiro, torcendo internamente para que minha afirmação trouxesse algum consolo a ela. Não trouxe. Adélia parecia querer saltar pela sacada para fugir do clima constrangedor que caiu pesado sobre nós.
Não foi surpresa alguma, vê-la se despedir logo em seguida, alegando que me daria espaço – tudo o que eu não queria dela. A vida sempre foi uma grande filha da puta comigo, e não me desapontou daquela vez. Nossa noite agradável tinha acabado, desastrosamente.
Depois do show de horrores que protagonizei, agora, me via sozinha com a insatisfação como companhia, e claro, uma garrafa de tequila Don Julio Blanco. Já havia perdido a conta de quantas doses tinha bebido nas últimas horas, mas a proximidade do líquido com o fundo da garrafa, era um bom indicativo de que me restava quase nada. Busquei em cada gota uma redenção que eu não merecia – que não viria.
Uma única certeza pairava na minha cabeça, eu era um ser humano desprezível, e seres assim não mereciam salvação.
Fim do capítulo
¹Essência da arte em latim
²Caralho, em espanhol
³Medo patológico de ser tocado
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