CAPITULO 55
Nara
Silêncio tomou conta do ambiente. Esther, que começava a guardar seus potinhos, parou na metade do caminho e virou a cabeça lentamente. Seus olhos muito abertos lembravam as estátuas dos filmes de terror quando a mocinha entra inocentemente na sala, me encarando com aqueles olhos raros e apavorantes. Minha respiração foi cortada. Ali dentro, os olhares se alternavam rapidamente entre Nyxs e eu em um círculo apavorante: às vezes Nyxs recebia tal olhar, às vezes era eu. Não suportei o suspense e fui a primeira a falar.
— Isso não pode ser possível, Helô. O sangue pode estar sofrendo mutação devido às asas que agora se abrem.
Era verdade. Nós duas estávamos passando por mudanças, então não seria surpreendente que nosso sangue também estivesse em transformação.
— Também pensei nisso. Para tirar a dúvida, fiz um exame detalhado do seu sangue, Nara, que também tenho amostras, para ver qualquer padrão semelhante.
Helô tomava notas em seu tablet, que sempre trazia consigo em qualquer bolso da roupa que estivesse usando. Nesse pequeno aparelho, ela armazenava criptografado o genoma de cada guerreira, seus dons e as consequências do que ocorria no organismo quando usados.
Apesar de sua pouca idade, Helô tinha um QI invejável, ultrapassando até sua própria mãe em conhecimento. Não era à toa que tinha sido designada pela Deusa para ser nossa médica.
— Vou colher outra amostra de sangue de cada uma e comparar. Ainda hoje terei uma resposta.
Helô desligou o tablet e o guardou em um dos bolsos de seu jaleco, ouvindo atentamente o que eu dizia. Nesses momentos, ela se parecia muito com a Ananya.
— Não sei nem o que dizer. Eu tenho certeza que eu não estava no cio quando dormimos juntas, e você também não estava. — Encarei Nyxs, esperando ela confirmar o que eu achava ser verdade.
Mais uma vez Helô nos fitou.
— Mas tem o agravante da Nyxs ter tomado as vacinas em períodos muito curtos para inibir o cio. Posso afirmar com toda segurança que ela poderia, sim, estar no cio de uma forma branda, controlada por remédio. Nara, notou se a aproximação de vocês de alguma forma modificou seu ciclo? — As lobas aguardaram em silêncio minha resposta.
— Meu ciclo adiantou em três meses. Eu também tomei uma dose extra da vacina, a próxima é no mês que vem.
— Nesse caso, você entrou no cio sem saber. Lembram se trans*ram com frequência, pelo menos duas vezes durante o dia?
Esther me encarava como se eu fosse um extraterrestre. Nyxs, coitada, nem falava, olhando assustada para a tia e suas perguntas diretas. O que me tranquilizava era que na minha frente estava minha beta, minha médica e minha companheira. Eu não tinha motivos para ter vergonha.
— Sim, na primeira vez que ficamos juntas. Quando conseguimos dormir era manhã e mesmo assim foram poucas horas. Durante o dia não foi muito diferente.
— Vocês passaram por todo o processo de acasalamento, fizeram amor descontroladamente até o momento de engravidar e depois mais vezes, como acontece com todo casal que completa o laço. — Heloise abriu novamente o jaleco e retirou uma borracha fina, duas agulhas, seringas e dois frascos. — Vou colher uma nova amostra de sangue das duas para ter certeza.
Esther disse algo que eu não ouvi, olhando para a seringa. Injeções sempre me apavoravam. Tive a impressão de que estava prestes desmaiar.
— Nara, criatura, escutou o que eu disse?
Esther aguardou uma resposta, mas eu nem sabia qual a pergunta de tão desorientada que fiquei com a enxurrada de informação. Sem falar naquela agulha pronta para me furar.
— O que disse? Eu não ouvi. — Perguntei, levantando da cama.
Nyxs também levantou. Ao menos, isso demonstrava que ela estava bem.
— Estou preocupada. Se tiver engravidado minha neta, o risco para ela é muito maior nesta ilha, com todos esses assassinatos. É mais seguro que ela volte para Salém.
— Esther, eu amo você, mais do que amo minhas mães, mas se eu estiver realmente grávida isso é um problema meu e da Nara. Não me diga como devo me comportar e não vou voltar para Salém sozinha.
— Não estou falando com você, garota atrevida. Estou falando com minha alfa, que antes de tudo é responsável pela segurança de todas vocês. E se estiver carregando o filho dela, faz parte da minha obrigação cuidar da sua segurança também. Ou esqueceu do que está acontecendo nesta ilha?
— Helô, colha meu sangue e faça sua mágica acontecer. — Estirei o braço. Como um raio, a garota tirou um garrote do jaleco e já veio amarrando no meu braço. Minha coragem momentânea acabou e senti minhas pernas falharem. Nyxs continuava calada e me olhava assustada, de olhos lacrimejantes. Eu não conseguia saber o que ela estava sentindo. Nyxs construiu um escudo de ar ao seu redor que me impedia de sentir seu cheiro.
— Acho melhor se sentar aqui, Nara. — Vendo que a doutora não entendeu, Nyxs explicou. — Ela tem trauma de agulhas.
Todas sabiam desse meu medo sem explicação, mas a verdade é que tomar injeção me deixava desconfortável. As vacinas eu só tomava porque não tinha outro jeito, só de imaginar qualquer coisa perfurando meu corpo já me dava tonturas. Esther tentava não rir. Helô, sempre compreensiva, tentou cortar a tensão.
— Nyxs, antes de cair, você e os outros pássaros conseguiram matar a cobra? — Sua tentativa de desviar minha atenção da agulha puxando meu sangue foi um sucesso.
— Não. Ela conseguiu escapar, mas está bastante machucada. Os gaviões arrancaram pedaços generosos de todo o corpo enquanto eu servia de isca.
— Conseguiu ver para que lado ela foi? Está na hora de dar um fim ao bicho, mesmo eu detestando matar animais. — Segurei um band-aid infantil no local onde a agulha perfurou minha veia.
Nyxs estirou o braço, oferecendo para Helô colher o seu sangue com uma coragem que eu não tinha. Esther só observava.
O som de algo sendo quebrado e uma bagunça generalizada lá fora chegou até nós. Ouvimos palavrões altos e risadas e corremos para ver.
Inaê segurava pelo braço uma garota que esperneava e chutava mais que um burro xucro com arreios, mas parou ao nos ouvir.
— O que está acontecendo, Inaê? — Esther perguntou, já sem paciência. Todo mundo sabia que sua filha amava brigas. Esperamos pela resposta, que certamente teria o enredo editado a seu favor.
— Encontrei essa pestinha espionando o chalé.
— Ela está errada, eu não estava espionando, vim ver a sua alfa. Se quiser, já pode soltar meu braço. Que mania horrível vocês têm de segurar e apertar os braços dos outros. Isso é carência, é? — Respondeu arrogante. A garota sumiu no ar e apareceu mais à frente, rindo da cara de Inaê. Quando ela se deu conta de que não tinha capturado a garota, ela que tinha se deixado prender, começou a rir. Eu e as lobas também as acompanhamos.
— Então é isso? Se essa vela branca o tempo todo podia sumir, por que não se soltou logo, pedra de gelo? — Inaê foi para junto da garota, que apareceu ao lado da Nyxs e mostrou a língua para a loba.
— Você devia ver essa sua cara de bocó achando que estava no comando. E eu não sou vela branca e nem pedra de gelo, sua alimária.
— Sua o quê?
A gargalhada foi geral. Pela a cara da Inaê, era a pela primeira vez que ficava sem palavras. Esther, para meu espanto, parecia admirada com a nossa visitante.
— Alimária era um termo para xingar nossos irmãos ou irmãs há muito tempo. Isso não deveria vir da boca de alguém tão novinha. — Esther arqueou sutilmente as sobrancelhas e franziu levemente a testa. Ela não conseguia disfarçar o interesse na garota, sabia que tinha algo de muito estranho.
— E o que quer dizer, mãe?
— Ela está chamando você de animal irracional, de pessoa rude, ignorante. — Inaê correu para pegar a garota atrevida que a insultou, mas Amina se transportou para o outro lado, fazendo com que ela caísse e provocando risadas.
— Quem é você, meu bem? Não consigo sentir nada quando te observo. Nem bom, nem mal. — Esther perguntou, carinhosa.
— Essa coisinha linda se chama Amina. Foi ela quem me manteve acordada lá no pântano e jogou um glamour para evitar que a cobra sentisse meu cheiro. — Nyxs passou o braço em seus ombros magrinhos e completamente nus com a roupa se desfazendo. Aquela garota precisava de roupas novas.
Vi ela cheirando a Nyxs, que fingiu não ter notado.
— Meninas, Amina esteve esse tempo todo muito próxima de nós. Foi ela que vimos quando estávamos na praia, lembram? No dia em que quase fomos atacadas pelos tubarões?
— Você queria me ver? Aconteceu alguma coisa?
— Não sei, minha protetora não voltou para o chalé e nem está no Darius. Também não está na casa de show, eu já verifiquei.
— Ela já fez isso outras vezes?
— Não. Quando não vem para casa, sempre está no Darius, e quando vai demorar na casa de show, deixa recado. Hoje era o dia de me alimentar, ela não desapareceria sem deixar um pote cheio e não tem nada em casa. É muito estranho, eu tenho um pressentimento ruim. Como você é responsável por nós, eu vim pedir ajuda.
— Quem é sua protetora, meu bem? Será que alguém pode explicar o que está acontecendo? — Pelo tom de voz, Esther estava começando a perder o que nunca teve: paciência.
— Esther, calma que eu já te explico tudo. Deixa só eu entender o que está acontecendo... O que você está pressentindo, minha lindinha? Consegue sentir a Amkaly em perigo?
— Como é que é?
As meninas formaram uma roda em torno da garota, que parecia estar mais branca do que o normal. Isso me deixava preocupada. Seus lábios e unhas estavam arroxeados e os cabelos secos além do normal. Pelo que aprendi nas aulas de vampirismo, quando isso acontece eles ficam inertes, como mortos, até que sejam alimentados. Há quanto tempo ela não se alimentava?
Tomei a frente explicando tentando descobrir o que tinha acontecido.
— Acredito que seja a filha prometida da Amkaly ou a sua alma gêmea. Amina chegou no dia que chegamos e a disseram para vir à ilha pois sua mãe estava doente e precisava da sua ajuda. Desde então, as duas vêm cuidando uma da outra.
— Logo a Amkaly… Com tanta loba legal, a mãe dela é logo aquela vad…
Inaê não conseguiu concluir. Uma nuvem negra escureceu a sala e, quando dei por mim, Amina estava em cima de Inaê com as presas afiadas prontas para enterrar no pescoço da loba.
— Retire o que disse ou eu acabo com você! Do jeito que estou faminta, vai ser fácil drenar esse seu sangue podre. Nem que eu morra outra vez.
Esther não mexeu um dedo para defender a filha. Aliás, ninguém tomou partido. Ao contrário, começaram uma aposta para saber quem iria hipnotizar quem em primeiro lugar. Se a garota não estivesse fraca e com fome, eu apostaria na vampira.
— Eu não vou pedir desculpas, sua mãe era sim uma vadia e uma piranha. Sempre foi.
— E sua mãe é louca, doida e perturbada.
As garotas olhavam admiradas para Esther, que nem reagia. Seus olhos pareciam cheios de calor ao ouvir as ofensas da garota.
— Já chega, Inaê. — Mandou. — Parece criança. Peça desculpas à menina. Amkaly pode ser uma vadia, mas é a protetora dela.
Amina sorriu, aguardando o pedido de desculpas, sem perceber que minha beta também tinha ofendido a sua mãe.
Inaê, com a cara mais lisa do mundo, fingiu pedir desculpas. As duas ficaram de pé, mas a garota parecia não estar bem e suas pernas falharam. Nyxs a amparou deitando seu corpinho em seu colo.
— O que ela tem?
— Fome, ela está com fome. — Me virei para Heloise, que já tinha se movido. Ela se aproximou e tentou sentir o pulso de Amina. — Helô, não adianta tentar sentir a pulsação. Pegue uma bolsa de sangue e venha rápido fazer uma transfusão. Ela já está entrando em processo de mumificação.
Inaê apareceu do nada com duas bolsas de sangue que ela mesma rasgou no dente, despejando boa parte do líquido na boca de Amina. A garota já estava entrando em colapso, aparecendo e desaparecendo sem controle. Esther se posicionou ao lado de Nyxs, com receio da neta ser mordida. Afinal, nenhuma de nós sabia como a falta de sangue afetava um vampiro.
Manon pela primeira vez saiu de onde estava em silêncio, afastando as garotas de perto.
— A filha da Amkaly é uma vampirinha recém nascida, faz pouco tempo que ela foi transformada.
— Ela não vai beber sangue congelado, tem que ser sangue quente. — Esther completou já tirando um punhal para cortar o pulso. Manon impediu.
— Não pode ser o seu. Por enquanto, seus instintos só reconhecem o sangue da Amkaly. Não se apavorem, ela não vai morrer se não for alimentada. Está sentindo dores, desidratada, e vai virar uma estátua. Olhem a cor arroxeada dos lábios. As pontas dos dedos também estão roxas e duras, mas é normal.
As garotas não desgrudavam os olhos do corpinho inerte.
— Não dá para fazer a transfusão na veia, o braço dela está petrificado. — Helô colocou no depósito de lixo cinco agulhas quebradas na tentativa de perfurar o braço da garota.
— Ela vai ter que beber direto do pulso. É um risco, quando acordar pode morder sem querer seu doador, além de ter um vínculo com ele.
— Eu faço isso. Onde corto?
Era difícil identificar a dona da voz, porque todas se ofereceram, inclusive Nalum.
— Eu faço isso, no organismo dela já tem meu sangue, ela não vai me machucar. — Nyxs interrompeu. — Quando eu estava no pântano, ela já estava sem forças e lambeu minhas penas quebradas para tomar um pouco do sangue que escorria.
— Essa pode ser a mudança que estou vendo em seu sangue, o fato de ter alimentado uma vampira em crescimento.
Nyxs olhou para mim e vi a dúvida em seus olhos. Ela não acreditava muito na hipótese da mistura dos sangues, e pela forma como Amina nos cheirava eu também comecei a duvidar.
Nyxs cortou o pulso. O sangue jorrou com facilidade e Manon segurou seu braço e o levou à boca de Amina. A garota não teve reação nenhuma. O precioso líquido se espalhava rapidamente, sujando tudo.
— Nara, vem aqui, abre a boca dela. Cuidado para não quebrar os ossos.
Abri com delicadeza, deixando o líquido se espalhar. Com bastante cuidado para não usar força, lavei os dentes com o sangue. Sentindo o gelo começar a esfriar, empurrei sangue para dentro da sua boca, que já demonstrava uma mudança de cor.
— Vamos lá, pestinha, abra esses olhos lindos. — Nyxs pedia, carinhosa como embalasse um neném no sono. Seu tom de voz ficou mais sério quando nos encarou. — Lá no pântano, quando ela estava se alimentando, eu tive uma visão do futuro.
Meu coração gelou. Esther me olhou rápido, e as meninas esperaram que continuasse.
— Foram pedaços de visões. Eu me vi tendo uma filha com você, Nara, muito parecida com a Nalum. Eu estava chorando e você também, e o Israfil fazia um par de alianças parecidas com essa que às vezes você usa. Fui eu que coloquei no seu dedo. Você colocou a minha e, quando eu te dei nossa filha, te entreguei junto a minha aliança.
Nyxs olhava para a marca no dedo da mão esquerda, em silêncio. Eu não sabia se dizia a verdade ou deixava ela lembrar naturalmente.
— Você viu a gente nas suas lembranças ou foi só a alfa? — Inaê, impaciente, quase cai em cima da vampira.
— Ninguém se lembra de você, sua doida. — Amina abriu os olhos. — E afasta que tá caindo em cima de mim.
A boca cheia de sangue respingava na bruxa, que pulou para trás gargalhando.
Fim do capítulo
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