CAPITULO LIV
CAPÍTULO CINQUENTA E QUATRO
Nara
Os seres que habitavam este lado da ilha pareciam entender o meu desespero. Por onde eu passava correndo, eles ficavam paradinhos, administrando os movimentos. Permaneciam em silêncio onde quer que estivessem.
As árvores, essas eram mais difíceis, tinha que controlar os movimentos empurrados pela brisa. Eu não possuía esse dom de controlar o tempo e Nalum estava mais distante. Tinha que me virar com a paz momentânea do lugar.
Tentei sentir Nyxs pela nossa ligação. Fechei os olhos e alonguei os sentidos o máximo que pude, tentando encontrar qualquer coisa que indicasse onde minha parceira estava. Uma vez, duas vezes… Na terceira tentativa, senti o pulsar do seu coração, muito fraquinho. Ou ela estava muito longe, ou poderia estar desmaiada em qualquer lugar dessa mata. Mas onde? O local parecia imenso e era cheio de surpresas desagradáveis. Pela imagem que vi mais cedo no drone da Manon, toda essa mata acaba num precipício escarpado com uma descida íngreme de mais de cinquenta metros de altura, terminando em um mar. Este também não era nada pacífico. Se a queda não te matasse, as ondas que chegavam a metros de altura certamente o fariam, jogando seu corpo contra os rochedos e o partindo em pedaços. Minha pele arrepiou só de pensar em Nyxs caindo ali.
Me amarrei com o nó da parceira. A todo momento, dava puxões para sentir se havia resposta do outro lado, mas só o silêncio voltava.
Agora só restava me agarrar à esperança e confiar na ligação dela com a filha. Nalum sentiu o pulsar do coração da mesma forma que eu, mas estava muito distante do local.
O coaxar de vários sapos ao mesmo tempo, me atraiu e desviei a atenção para observá-los. Uma quantidade considerável que vinha pulando e seguia em direção à lagoa muito lá frente. Passavam gritando às pressas, até que um deles errou a distância ao saltar e caiu em minha cabeça. Com o medo do impacto em um terreno desconhecido, ele se enganchou nos meus cabelos gritando e esperneando, o que o fez se enroscar cada vez mais.
— Calma, garoto, para de se mexer, eu vou tirar você daí. — Quanto mais eu tocava na sua cintura fria, mais ele fugia do contato e se mais emaranhava.
Mamãe, o que está acontecendo? Senti a voz da minha filha. Era como se eu visse ela se voltar para o lado onde eu estava.
Está tendo uma fuga de sapos outra vez. Estão indo a caminho da lagoa e um deles acabou de cair nos meus cabelos.
Aqui também. Eles estão desesperados, mas não senti calor na terra. Não há incêndio dentro da mata e o modo como estão com medo é muito estranho. O que a senhora acha que deve ser?
Acho que eles estão fugindo da taipan. Ou de outras cobras, o que não faria sentido, já que não encontramos cobras vivas a não ser essa serpente.
Consegui tirar o pobre sapo dos meus cabelos. Ele me olhava com os olhos esbugalhados e soltava uma secreção gosmenta como defesa. Para o azar dele, eu não tinha nojo. O coloquei no chão e limpei a mão no mato rasteiro. Respirei o ar, na intenção de sentir fumaça vinda com o vento, mas não senti nada. Não tinha fogo por perto. A segunda opção era provável: a cobra devia estar por perto.
— Oi.
Cacete! Dei um pulo para trás quando senti uma mão fria segurar meu pulso e ouvi a vozinha infantil aparecendo do nada. Eu não esperava esse encontro.
— Que é isso? Pelos Deuses, garota! Quase me matou do coração! — Amina apareceu do nada, bem na minha frente. Por pouco não a joguei na lama. Ela se virou para o lado da minha voz, satisfeita.
— Ai, que bom, alfa! Vem comigo, eu sei onde está a sua companheira. Venha, rápido!
Fiquei sem fala por um instante, mas logo segurei o bracinho fino da cor de mármore que exalava o cheiro do sangue da minha companheira.
— O que está acontecendo? Porque o cheiro dela esta em você? — A garota deu pouca importância ao fato de eu estar apertando seu braço.
— Se preocupe com a vida dela e não comigo. Faça o favor de soltar meu braço.
Ela olhava diretamente para mim. Sei que não estava me vendo, mas olhava fixamente com seus olhos violetas. Quando ia pedir mais explicação, a voz da minha filha surgiu na minha mente outra vez.
Mamãe eu estou sentindo a presença da minha mãe muito próxima. Venha para cá, veja pela nossa ligação. Estou enviando a localização, apressa o passo. Estou como loba, é melhor para sentir os cheiros.
Eu também acho que sei, ou melhor, tem alguém aqui comigo que sabe onde ela está.
— Pronto, já pode me soltar. Anda, vá atrás da sua filha e sigam em frente. Nyxs está próxima ao local onde esteve antes. Eu vou ficar de olho por aí.
Antes que eu pudesse responder me vi sozinha, a pestinha que se achava adulta tinha desaparecido. Era estranho alguém se referir a mim dando ordens claras como ela tinha acabado de fazer, mas na boca daquela coisinha linda e danadinha a palavra ganhava vida. Essa vampirinha seria o xodó das lobas.
Nalum me enviou as imagens, ela estava certa quanto ao local. Me transformei e tive uma visão completa das árvores ao redor. Ali próximo, a lama era muito densa, onde Nyxs estava presa sem poder sair. Minha loba era muito veloz e dava pequenos saltos na dobra do tempo. Em pouco tempo cheguei ao lado da minha filha.
A senhora falou que tinha alguém que sabia onde minha mãe estava.
Nalum me olhou de cima a baixo.
É uma longa história, conto quando as coisas estiverem mais calmas.
Ela deu de ombros e nada disse. Caminhamos lado a lado, olhando para todas as direções. A cada passada a sensação de proximidade aumentava.
A mata estava muito fechada, era uma armadilha com uma quantidade enorme de lama que chegava a cobrir minhas patas. Ficava até difícil caminhar.
Minha barriga encostava e a lama lambuzava meus pelos. Muitas vezes pisei em coisas que faziam crac e outras em pontas afiadas. Eu pressentia serem esqueletos, ossadas. Só não sabia se eram de lobos ou humanos. Pela cara que fazia a cada estalo, Nalum pensava o mesmo. Mas minha amiguinha morceguinho falou que era só seguir em frente, e era exatamente isso que estava fazendo.
Cada passo era mais lento que o anterior. Se continuasse nessa velocidade eu não encontraria Nyxs tão cedo, precisaria de um milagre.
Mamãe, olha ali.
Nalum apontou com o focinho comprido, já se transformando em humana e correndo.
Nyxs estava com parte do corpo enterrado na lama, inclusive as asas magníficas estavam até a metade enfiadas no lamaçal. Mais perto, vi o quanto uma das asas estava machucada, com algumas penas penduradas e novas pontinhas aparecendo nos locais, avisando que uma nova ia aparecer para substituir a que estava caindo.
Em todo o comprimento da asa, no local que unia carne e pena havia um rastro vermelho de sangue já seco. Procuramos cuidadosamente por uma mordida de cobra no seu corpo, mas não havia nenhuma marca ou o cheiro adocicado do veneno da taipan.
— Filha, vá procurar a nossa família e avise que já encontramos sua mãe. Diga a Esther que vá direto para o chalé.
Tirei com dificuldade o corpo e a tentei levá-la para um local mais seco. O problema é que ponta da asa estava muito enfiada no barro molhado, se forçasse poderia machucar ainda mais e não conseguia carregá-la nos braços sem as arrastar no chão.
— Nalum, volta aqui filha!
Antes de terminar a frase, ela já estava de volta, mais assustada do que antes, quando encontrou sua mãe soterrada.
Qual o problema, mamãe?
A pergunta foi feita direto pelo nosso laço, evitando que o som chegasse a ouvidos que por ali passassem. Só então eu percebi que tinha usando a voz.
― Não consigo colocar Nyxs no meu ombro. Não tenho tempo para limpar minha mente e nos tirar, por isso quero que nos teletransporte até ao chalé no meu quarto.
― Vou deixar as duas em cima da cama, assim fica mais fácil cuidar da minha mãe.
― Seja rápida com o recado para Esther. Enquanto isso, preciso tirar toda essa sujeira do seu corpo antes que essa asa pegue infeccione.
Nalum pegou no meu braço e no ombro sadio da Nyxs e tudo mudou.ba passagem ficou acelerada, passando à nossa frente ou correndo em sentido contrário. Rasgamos o véu fino da camada de ar que nos empurrava de volta para o ponto de partida, mas tudo era feito de sensação. Não estávamos voltando para lugar algum, e sim dando pequenos saltos entre dimensões de tempo e espaço. Em milésimos de segundos, os cheiros dos locais por onde passávamos na travessia chegavam aos pulmões e se iam igualmente rápido. Quando senti o chão duro firme, tudo se ajustou. Estava dentro do quarto que eu ocupava no chalé, sentada na cama com o corpo de Nyxs em meus braços. Nalum mais uma vez desapareceu no ar.
Uma vez que o corpo inerte de Nyxs estava acomodado, cuidei da higiene do seu corpo.
No banheiro, peguei uma toalha de rosto e mais uma de banho. Peguei também um sabonete líquido, óleo para o corpo, e uma esponja e coloquei tudo ao lado da cama. Na cozinha, peguei um balde pequeno e enchi até a metade com água da torneira.
Com tudo pronto, comecei o processo do banho. Usei a toalha de rosto úmida para tirar metade da lama, que já secava em seu corpo, começando pelos braços. Barriga, pernas, pés… E a água já estava imunda. Enchi o balde novamente e comecei outra vez. Somente quando Nyxs estava mais limpa passei a esponja com sabonete. A enxaguei, sequei e passei o óleo para hidratar. Depois, fiz o mesmo com seus cabelos. Durante todo o tempo, ela não se mexeu. Parecia que estava dormindo, ou que estava em outro mundo.
Depois de satisfeita, troquei o jogo de cama, que estava lamentável. Por último, deixei a pior parte: limpar suas asas. Com todo cuidado fui abrindo a asa, que ainda estava meio fechada.
— O que pensa que está fazendo?! — Me assustei com o grito que Esther deu quando surgiu no quarto junto com meia dúzia de lobas apreensivos.
— Tentando limpar a asa e ver se tem picada de cobra. — Expliquei, confusa.
— Vá se limpar, aliás. — Minha beta mandou. — Vá também, Nalum. Vocês estão fedendo a esgoto, deixem que eu cuido dela. Helô, faça um exame de sangue, logo vamos saber se ela foi picada. E o resto de vocês, lá fora.
Fui tomar banho contra minha vontade. Não queria sair de perto daquela cama, mas não ia bater de frente com minha beta. Ela sempre foi metódica e sabia o que fazia.
Minutos depois, retornei já limpa e de cabelos lavados. Nyxs estava acordada e conversava com Esther. Ela foi a primeira a me ver. Abriu um sorriso e bateu com a mão na cama em um convite para sentar a seu lado.
— Senta aqui, lobo mau. — Seu jeito e sua paz me diziam que estava bem.
Sentei ao seu lado enquanto terminava de secar meus cabelos. Esther me olhava curiosa.
— O que houve? Por que estava caída na lama? — Perguntei.
— Eu não estava suportando a subida. Meus pulmões estavam ardendo em brasa, como se estivessem pegando fogo, e uma corrente de ar mais forte me derrubou.
— Foi uma exposição muito próxima ao sol. Quero dizer, maior do que seu organismo está acostumado. Foi isso que fez com que desmaiasse. — Helô explicou, entrando com um semblante sério que me deixou preocupada.
— Tem algo mais? Estou achando você mais séria do que o normal. — Nyxs comentou, e senti que Heloise queria desviar do assunto.
— Fala logo, garota. O que mais você achou no sangue da Nyxs?
Esther arrancou as folhas da mão da garota, quase rasgando. Olhou detalhadamente e as devolveu com cara de paisagem. Eu sei que ela não entendeu nada do que estava escrito no papel.
— Encontrei componentes no sangue que não estavam presentes no último exame. É como se o seu sangue estivesse sofrendo mutação. — Helô olhou direto para mim e para Nyxs como se avaliasse nossa reação. — Não é normal, venho acompanhando a evolução de cada uma das guerreiras e nada se parece com seu caso.
— O que isso quer dizer, Helô?
— Que você está grávida.
Fim do capítulo
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