Epílogo
Na última noite viva, consegui fazer com que a deidade maligna sem nome, libertasse a influência que vinha exercendo sobre Heitor. Fosse pelo acúmulo dos meus pecados ou a grandeza das minhas virtudes, sua fome de mim superava seu interesse nas demais pessoas. Foi o que acreditei. Enquanto aquele ser perverso se alimentava de tudo o que restava de quem eu havia sido, uma estranha conexão entre nós se estabelecia. Misturando nossas existências, como se fossemos dois lados da mesma moeda. Algo nos ligava profundamente.
Ao contrário do que esperei, minha consciência não se desfez. Por pouco não sucumbi completamente à loucura imposta pela minha sobrenatural prisão. Naquela dimensão sombria e etérea, eu tinha uma visão tragicamente privilegiada das lembranças das vítimas anteriores da deidade maligna, proprietária do relógio. Incessantemente, revivia o momento em que cada alma ia sendo sugada de seus frágeis corpos mortais, enquanto ele os liquefazia em sua maldade irrefreável. Aquele ser maligno estava tão aprisionado ao relógio quanto qualquer um de seus cativos. Os desafortunados que entravam em seu caminho, ficavam sobre seu domínio sobrenatural, respondendo aos seus comandos mortais. As vezes encontrando pessoas dispostas a entregar alguém em seu lugar, outras acabando com suas próprias vidas.
Para meu infortúnio, minha irmã teve o azar de encontrar o receptáculo amaldiçoado. Ficando à mercê de seu poder. O maldito tinha tanto prazer com meu sofrimento, que fez de mim seu fantoche. Me usou para perturbá-la. Tornando-a suscetível a ser mais uma peça de sua interminável coleção mórbida. Tentei impedi-lo, abraçando o caos que nos definia. Aceitando a proposta velada de ser sua por completo. Pareceu funcionar. Na vastidão disforme de nossas essências, ele me consumia com voracidade e deleite. Me castigando incessantemente com ilusões sobre Amélia. No entanto, nada que ele fizesse se comparava ao alívio de saber que nenhuma de suas vítimas seria Amélia ou qualquer pessoa que eu amasse. Que nenhum de seus esforços mais cruéis os fariam cativos de suas vontades insanas. Porque eu usaria nossa conexão contra ele. O seu fracasso significava que meu sacrifício não fora em vão, e que deixar minha cigana partir havia sido meu maior ato de redenção.
Apesar desse doce alívio, num espaço de tempo longo demais para se contar, essa precária paz encontrou seu fim. Não contava com a possibilidade de ver o fogo tão similar daqueles olhos outra vez. Não ousava acreditar que, em meio aquele inferno interminável, um ínfimo pedaço do paraíso havia me alcançado novamente. A tempestade castanha daquela garota atiçou um desespero adormecido em meu ser. Apesar de ter plena consciência de que Kiara não era a minha cigana, não conseguia deixar de ser afetada pela familiaridade dos efeitos tão similares ao da minha amada cigana. Os conhecia bem demais. Sentia falta demais.
No entanto, assim como aquela garota havia despertado algo em mim, também teve seus efeitos em meu algoz, que a tanto tempo adormecido sentiu-se outra vez atraído para outro ser com a capacidade extraordinária de harmonizar de forma única o bem e o mal, em uma combinação perfeita. Kiara Santiago era como um farol em meio a escuridão. Um arauto de salvação para os desesperados.
Então, outra vez, me rebelei contra meu maldito algoz, torcendo nossa simbiótica existência, a fim de salva-la de seu apetite devorador. Fiz uma prisão dentro da prisão, e a escondi entre nossos dedos. Perto o suficiente para que a tivéssemos, mas longe o bastante do carcereiro insaciável. Na inexatidão da minha existência, ousei rezar para a deidade que tanto havia sido aclamada para cuidar de mim. Santa Sara Kali. Pedindo-lhe, fervorosamente, que intercedesse pela vida daquela garota, como outrora, acredito, tenha feito pela minha cigana.
Jamais havia tecido súplicas aos céus rogando por auxílio, mas por amor descobri ser capaz de tudo, inclusive expurgar o mal tão enraizado em mim. Não foi surpresa alguma, que através desse sentimento transformador, além de redenção enfim alcancei a liberdade.
No infinito do espaço tempo, reencontrei a nebulosa castanha avelã do meu paraíso pessoal.
Fim do capítulo
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kasvattaja Forty-Nine
Em: 31/01/2024
Olá, tudo bem?
História diferente, mas bem contada dentro da proposta da Autora e Kasvattaja concorda com você: é inevitável um ponto final na nossa história.
É isso!
Post Scriptum:
'A inumanidade que se causa um ao outro destrói a humanidade em mim.'
Immanuel Kant,
Filósofo.
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Maysink Em: 31/01/2024 Autora da história
Ei ei, tudo bem e com você?
Primeiramente, fico satisfeita pela boa impressão que o conto teve.
E agradeço pela sutil orientação! ^ ^
Abraços...