Capitulo VII
Semanas haviam se passado.
Todos ao meu redor estranharam meu estado de espírito recluso, em nada condizente com minha agitação natural. O que eu poderia lhes dizer? Meu coração estava destruído. Ninguém mais poderia ser culpado por isso, a não ser eu mesma. A dor causada pela ausência de Amélia era um lembrete vivo e latejante das escolhas perigosas que havia feito, e sua partida não seria a única consequência. Ele estava vindo por mim. Vindo buscar pelo seu prêmio cobiçado. Não havia mais nada que o impedisse de chegar até a mim. Nem mesmo minha resistência.
Não podia culpar ninguém. Fui eu mesma quem havia me colocado nessa situação, cada uma das escolhas que fiz me trouxeram até ali, e as fiz sabendo bem que elas me levariam até aqui. Sabia que era uma má ideia e segui adiante mesmo assim. Não compartilhei com ninguém o fardo das minhas decisões, não ousei despedir-me de mais ninguém. Eu não aguentaria, essa era a verdade. As pessoas que eu amava mereciam a complacência de uma mentira nobre, e foi o que dei a elas. Estava preocupada, mas não arrependida. Desde a partida dos ciganos não houveram mais assassinatos. A cidade de Vitorio Guerra voltou a sua normalidade ingênua e displicente com verdadeira empolgação. A aura tranquila demais sequer os preocupava, enquanto a mim, arrepiava até o último fio de cabelo. Era aquela típica calmaria que antecedia a tempestade. E como se não bastasse, minha desconfiança se encarregou de colocar um alvo nas costas de todas as pessoas que me cercavam. Até mesmo Isabelle, agora totalmente recuperada, estava ocupando minha lista de suspeitos. Nem o guarda-costas ineficiente escapava. Aliás, aonde aquele incompetente havia se enfiado por todo aquele dia?
Aquela noite estava mais fria do que de costume, me fazendo apertar os braços ao redor do meu corpo amparado pelo grosso sobretudo vinho, esperando conseguir conter o calor emanando de meu interior. Apesar do clima denso, a agitação por ter sido beijada há pouco ajudava na árdua tarefa de me esquentar. Meu ousado colega de trabalho, Heitor Hardin, aproveitando-se do interesse, supostamente, recíproco, me concedeu o carinho fervoroso dos amantes, tomando minha boca à sua com ímpeto desejoso. Nosso flerte implícito vinha acontecendo há algumas semanas, sendo intensificado pela aproximação proporcionada pela matéria sobre Custodibus. Apesar de flertar descaradamente com aquele homem tão atraente, não podia negar que o permiti por pura vaidade. Heitor podia ser o homem mais bonito e gentil que eu havia conhecido, mas jamais ocuparia aquele lugar dentro de mim, que já pertencia a outra pessoa.
As investidas sedutoras de Heitor me ajudavam a lidar com a ausência perturbadora de Amélia. Sabia que me permitir a outro alguém naquela circunstâncias me tornava uma pessoa mesquinha, mas qualquer distração naquele momento era melhor do que me afundar em tristeza e solidão. O deslumbramento pelo audacioso beijo nublou minha mente por muitos passos em direção a minha casa, minha fraca percepção do mundo ao redor mau registrou a aproximação da presença desconhecida que me cedeu um aperto firme e indelicado, ao fixar sua pesada mão munida do tecido banhado a clorofórmio sobre a minha boca e nariz. O característico cheiro do composto químico invadiu meus sentidos desligando-os rapidamente, puxando minha consciência juntamente consigo.
Não pude medir com exatidão por quanto tempo permaneci desacordada, porém bastou abrir meus olhos ao voltar a consciência para que a suspeita recém-formada pela minha mente ainda abalada se comprovasse… Ele havia cumprido sua promessa. Minha infame contraparte, agora prostrada à minha frente, sorria abertamente seu triunfo ao me ter ali vulnerável como mais uma de suas vítimas.
Custodibus era ninguém menos que o encantador editor-assistente, Heitor Hardin.
O maldito judas que me beijou, apaixonadamente.
Seu rosto tão familiar retorcia-se sombrio e imaculado, revirando meu peito numa mescla imperfeita de ódio, surpresa e desprezo. Ele esteve tão perto o tempo todo, guiando-me no seu jogo perspicaz e sádico, jogando despretensiosas migalhas ao vento, pelo simples prazer de me manipular, ludibriando minha inteligência habilidosamente. Foi impossível não me esvair numa gloriosa gargalhada descrente. Não pelo reconhecimento de sua identidade, mas sim pelo estupendo papel ingênuo que desempenhei sob seus cuidados. Ao contrário do que esperava meu algoz alargou o sorriso brilhante diante do meu riso resignado e escandaloso, satisfeito pelos sentimentos amargurados que me dominavam. Eu beijei aquele que seria responsável pelo fim da minha vida.
— Qual será a minha hora? – proferi na habitual prepotência que destinava a sua vil e até então desconhecida existência, durante nossa caçada nefasta. Se ele pensava que a iminência da minha morte fosse causar medo, eu o mostraria o quão errado era intuir isso. Obviamente não queria aquele fim hediondo, não me atraia alcançar a morte precocemente, entretanto, sabia que o havia cativado ao travar aquele jogo de predador e presa com um serial killer.
— Curiosidade interessante, querida Ylena. Darei o prazer de escolher, ainda são 23:55am. – disse gentilmente após olhar um relógio de bolso preto fosco, ligado pela corrente no pequeno compartimento de seu colete preto lustroso. — Pensei que iriamos ter mais tempo, mas seu apetite pelo imediatismo como sempre impede meus melhores gracejos. – Hardin sorriu, aproximando-se lentamente.
— Antes de qualquer coisa que venha a seguir, me poupe do discurso patético de vilão. Pouco me interessa suas motivações ou sua história triste. – ralhei, na fraca tentativa de revidar em ousadia. Engoli o bolo que se formou na minha garganta. — Que seja junto ao fim deste dia. Dê-me este, é o que peço.
A agonia da espera com toda certeza iria se encarregar de consumir minha sanidade. Ninguém me encontraria a tempo, então que fosse o mais rápido possível. O gosto do inevitável já me preenchia a boca, e infelizmente não era nada doce. A morte nos dá seu afago todos os dias, e sua sutileza não nos faz indiferentes a ela, por isso buscamos viver intensamente, por sabermos desse inevitável e assustador encontro. Somos pequenos grãos de areia à mercê do soprar insano da inconstância do tempo, e nossa capacidade de sermos resilientes que carregava toda a beleza de se estar vivo, e eu não mais estaria. Somos feitos de instantes, nada mais! Estamos rodeados pela marcação incessante de nosso fim, e preferimos não perceber. Temos ao nosso dispor exemplos tão sutis de como tudo acaba e ainda assim, deixamos de apreciar a beleza singela daquilo que nos é proporcionado. Não aproveitamos realmente o momento presente, somos moldados por desejos fugazes e momentos líquidos. Cada parte de nós enseja, secretamente, pelo êxtase que antecede o fim. Seja através de um abraço apertado, ou saborear o último gole da garrafa do vinho mais caro. Estamos cercados pelo tic-tac apressado desse relógio invisível roubando nossas esperanças, sem o menor esforço. O mais impressionante de tudo isso é a nossa capacidade de seguir em frente e por muitos motivos fingir que nada disso importa. Eu havia cortejado aquele fim, porque a provocação nada mais é do que alimentar um desejo egoísta, e eu havia sido demais para o meu próprio bem. É inevitável um ponto final na nossa história. O meu tempo havia se esgotado, e eu estava pronta para abraçar o meu fim.
— Que assim seja. – respondeu, solene.
Durante os poucos minutos que me restavam, deixei meus olhos vagarem pelo cômodo, completamente habituada com o local onde estávamos. O sentimento nostálgico me preenchia ao admirar, pela última vez, a requintada decoração do pequeno chalé da propriedade da minha família, onde vivi momentos inesquecíveis com Amélia. Eu estava de costas para a porta de entrada, então pude ver através da larga janela toda a extensão do lago sendo engolido pela noite. Se me esforçasse podia ouvir o som da sua risada divertida ao me jogar no lago. O desgraçado escolheu o meu lugar preferido como meu leito de morte. Perfeito e trágico. O aperto doloroso das cordas em meus pulsos em nada se comparava ao peso grotesco da compreensão de que iria morrer nos próximos instantes no lugar que mais amava. A ardência do friccionar na minha pele não abrandava o latejar amuado de meu coração. Logo encontraria meu fim assombrada pelas lembranças dos melhores dias da minha vida. Poético.
— Tic tac… Tic tac… Quais são suas últimas palavras, minha querida Ylena? – meu captor cantarolou com os olhos gulosos pregados novamente no relógio de bolso. Seu outrora lindo rosto, estava repuxado em uma carranca nebulosa e sádica. Quase não o reconhecia. Era chegada a hora de dizer adeus. O órgão preso em meu peito ardia inconsolável ao pensar nos sonhos que não viveria e na possível dor que a minha ausência causaria nas pessoas que amava. O que causaria em certa cigana. Ainda que não fosse devota a divindades, rogava a padroeira alvo da devoção de Amélia, para que me concedesse uma morte rápida e o alívio eterno.
— “Depois da morte não há nada e a morte também não é nada.” – declamei o que seria meu epitáfio no último resquício de coragem, enquanto via seu aproximar elegante, ansioso por seu último ato. Heitor habilmente envolveu minha garganta. O calor de suas mãos sob meu pescoço alvo, contrastava drasticamente com a apatia contida em seus olhos vítreos apreciando o ar esvair de meus pulmões, tal como minha alma fugindo às pressas de meu corpo, preenchendo o vazio com dor e agonia. Outra vez, meus olhos se fecharam, e a certeza de que seria a última, repercutiu o desencanto do adeus forçado que dava a minha vida, a triste constatação ecoava o desfecho inquestionável. A morte nunca esteve tão perto e meu corpo se entregava facilmente a seu cortejo, iniciando a minha catarse pessoal.
Senti o exato momento que minha alma se desprendeu do corpo físico, flutuando entre as arestas da pós vida, ansiando o descanso eterno tão almejado pelos mortais. Aguardei ansiosa pela minha passagem para o dito paraíso, no entanto, este sequer me tocou. Em seu lugar uma força soterrada em caos me abraçava, me prendendo com garras disformes e inescapáveis, me mantendo na cena de meu derradeiro assassinato. Relutante, voltei a atenção para o episódio desagradável, bem a tempo de ver meu carrasco soltar a massa inerte de carne que foi meu corpo, levando ambas as mãos a seu bolso numa pose desleixada. Ele elevou seu rosto em minha direção, fixando seus olhos completamente tomados em negro na minha forma incorpórea, vendo através do véu da vida e da morte. Ali compreendi que não existia qualquer possibilidade de escapar ilesa de suas pretensões, ele era algo além.
— O q-que você é? – minha voz saiu falha.
— Sou tantas coisas querida Ylena, mas nenhuma delas foge de seu conhecimento, garanto! Mas pode ter certeza que não sou Heitor Hardin. – seu olhar carregava suas más intenções, independente do quanto tentasse demonstrar o contrário com suas palavras quase zelosas junto ao sorriso cauteloso, havia uma chama brilhando em perversão. Fosse qual fosse suas pretensões, elas viriam banhadas na mais pura maldade.
— Diga-me o que realmente você é! – exigi amedrontada, enquanto ele sorria ainda mais largo.
— Sou a gula, a luxúria, a avareza, a ira, a soberba, a preguiça e a inveja. Eu sou a degradação humana, a sombra dos defeitos, a presunção contida nas vontades não ditas dos homens, o egoísmo camuflado de boa vontade, o ódio destilado em amargura, o que insistem em negar a existência, mas ainda assim carregam consigo onde quer que vão ou em qualquer coisa que façam. Eu sou dor e confusão, sou caos e injúria, mas pode me chamar de seu, querida Ylena. Porque a farei minha. Apesar do seu nobre último pedido, gostaria deixá-la ciente das minhas pretensões. Você é inestimável, Ylena! Nenhuma outra alma que cruzou o meu caminho chegou a seus pés. A dualidade do seu ser é atraente demais para que fosse gasta em uma única existência frágil e passageira. Faremos coisas lindas juntos!
Me tornei inerte diante a compreensão. Ele era a precariedade humana, o epítome do nefário, a personificação da maldade em sua forma original, reluzindo sua sedução persuasiva para me tornar parte de si, induzindo o despedaçar da minha alma, a fim de desdobrá-la em várias partes. Mas eu não me entregaria fácil, mesmo morta, pelo pouco que restava de mim, não me entregaria a suas vontades distorcidas e enfadonhas.
— Você jamais me terá! – afirmo.
— Oh minha querida, eu já a tenho! – seu sorriso convencido alargou-se inumano, fazendo seu rosto se desfazer em sombras assim como todo seu corpo, me engolindo para sua vastidão obscura, me jogando no precipício de sua miserável existência, fundindo o início de um com o fim do outro. Ainda que ele não existisse, eu existiria, flutuando pelas frestas etéreas de si mesmo, viajando em meio ao caminho sombrio que ditava indolente, arrastando tudo ao seu alcance para que fosse absorvida pelas trevas que agora se alimentavam de mim.
Inevitavelmente seu caos finalmente me consumiu.
Fim do capítulo
Comentar este capítulo:
Sem comentários
Deixe seu comentário sobre a capitulo usando seu Facebook: