Capitulo XV
Ylena Montelo
“Aquela noite estava mais fria do que de costume, me fazendo apertar os braços ao redor do meu corpo amparado pelo grosso sobretudo vinho, esperando conseguir conter o calor emanando de meu interior. Apesar do clima denso, a agitação por ter sido beijada a pouco ajudava na árdua tarefa de me esquentar. Meu ousado colega de trabalho, aproveitando-se do interesse recíproco, me concedeu o carinho fervoroso dos amantes, tomando minha boca à sua com ímpeto desejoso. Nosso flerte implícito vinha acontecendo há algumas semanas, tendo se intensificado devido a aproximação proporcionada pela minha atual matéria, como ele ocupava o cargo de editor-assistente no jornal em que trabalhávamos, o jovem e atraente editor-assistente vinha me assessorando desde que tomei a frente da divulgação da série de bárbaros assassinatos que assolavam as famílias conterrâneas. Há cerca de três meses nosso Estado vinha servindo de palco para as atrocidades do serial killer, que nomeei como Custodibus, devido ao peculiar ato de exibir as horas obituárias nos corpos de suas vítimas, traçando-as em algarismos romanos, imitando vulgarmente as horas de um relógio antigo. Não havia rastros de suas ações senão o triste resultado de corpos inocentes sem vida marcados com sua cruel assinatura.
O deslumbramento pelo audacioso beijo nublou minha mente por muitos passos em direção a minha casa, minha fraca percepção do mundo ao redor mal registrou a aproximação da presença desconhecida que me cedeu um aperto firme e indelicado ao fixar sua pesada mão munida do tecido banhado a clorofórmio sobre a minha boca e nariz. O característico cheiro do composto químico invadiu meus sentidos desligando-os rapidamente, puxando minha consciência juntamente consigo.
Não pude medir com exatidão por quanto tempo permaneci desacordada, porém bastou abrir meus olhos ao voltar a consciência para que a suspeita recém-formada pela minha mente ainda abalada se comprovasse...Ele havia cumprido sua promessa. Minha infame contraparte, agora prostrada à minha frente, sorria abertamente seu triunfo ao me ter ali vulnerável como mais uma de suas vítimas, seu rosto tão familiar retorcia-se sombrio e imaculado, revirando meu peito numa mescla imperfeita de ódio, surpresa e desprezo. Ele esteve tão perto o tempo todo, guiando-me no seu jogo perspicaz e sádico, jogando despretensiosas migalhas ao vento pelo simples prazer de me manipular, ludibriando minha inteligência habilidosamente. Foi impossível não me esvair numa gloriosa gargalhada descrente, não pelo reconhecimento de sua identidade e sim pelo estupendo papel ingênuo que desempenhei sob seus cuidados. Ao contrário do que esperava meu algoz alargou o sorriso brilhante diante do meu riso resignado e escandaloso, satisfeito pelos sentimentos amargurados que me dominavam.
— Qual será a minha hora? – proferi na habitual prepotência que destinava a sua vil existência durante nossa caçada nefasta. Se ele pensava que a iminência da minha morte fosse causar medo, mostraria o quão errado era intuir isso. Obviamente não queria aquele fim hediondo, não me atraia alcançar a morte precocemente, entretanto, sabia que o havia cativado ao travar aquele jogo de predador e presa com um serial killer.
— Curiosidade interessante, querida Ylena. Darei o prazer de escolher, ainda são 23:55am. – disse gentilmente após olhar um relógio de bolso preto fosco, ligado pela corrente no pequeno compartimento de seu colete lustroso.
— Que seja junto ao fim deste dia. Dê-me este, é o que peço. – a agonia da espera com toda certeza iria se encarregar de consumir minha sanidade, caso optasse por uma hora tarde demais. Ninguém me encontraria a tempo, então que fosse o mais rápido possível. Deixei meus olhos vagarem pelo cômodo, completamente habituada com o local onde estávamos. O sentimento nostálgico me preenchia ao admirar pela última vez, a requintada decoração do pequeno chalé da propriedade da minha família, onde vivi momentos inesquecíveis. Eu estava de costas para a porta de entrada, então pude ver através da larga janela toda a extensão do lago sendo engolido pela noite. O desgraçado escolheu o meu lugar preferido como meu leito de morte. O aperto doloroso das cordas em meus pulsos em nada se comparava ao peso grotesco da compreensão de que eu iria morrer nos próximos instantes no lugar que mais amava. A ardência do friccionar na minha pele não abrandava o latejar amuado de meu coração. Logo encontraria meu fim.
— Tic tac… Tic tac… Quais são suas últimas palavras, minha querida Ylena? – meu captor cantarolou com os olhos gulosos pregados novamente no relógio de bolso. Era chegada a hora de dizer adeus. O órgão preso em meu peito ardia inconsolável ao pensar nos sonhos que não viveria e na possível dor que a minha ausência causaria nas pessoas que amava. Ainda que não fosse devota a divindades, rogava por uma morte rápida e o alívio eterno.
— “Depois da morte não há nada e a morte também não é nada.” – declamei o que seria meu epitáfio no último resquício de coragem, enquanto via seu aproximar elegante, ansioso por seu último ato. Habilmente envolveu minha garganta, o calor de suas mãos sob meu pescoço contrastava drasticamente com a apatia contida em seus olhos vítreos apreciando o ar esvair de meus pulmões, tal como minha alma fugindo às pressas de meu corpo, preenchendo o vazio com dor e agonia. Outra vez, meus olhos se fecharam, e a certeza de que seria a última, repercutiu o desencanto do adeus forçado que dava a minha vida. A triste constatação ecoava o desfecho inquestionável. A morte nunca esteve tão perto e meu corpo se entregava facilmente a seu cortejo, iniciando a minha catarse pessoal.
Senti o exato momento que minha alma se desprendeu do corpo físico, flutuando entre as arestas da pós-vida, ansiando o descanso eterno tão almejado pelos mortais. Aguardei ansiosa pela minha passagem para o dito paraíso, no entanto, este sequer me tocou. Em seu lugar uma força soterrada em caos me abraçava, me prendendo com garras disformes e inescapáveis, me mantendo na cena de meu derradeiro assassinato. Relutante, voltei a atenção para o episódio desagradável, bem a tempo de ver meu carrasco soltar a massa inerte de carne que foi meu corpo, levando ambas as mãos a seu bolso numa pose desleixada. Ele elevou seu rosto em minha direção, fixando seus olhos completamente tomados em negro na minha forma incorpórea, vendo através do véu da vida e da morte. Ali compreendi que não existia qualquer possibilidade de escapar ilesa de suas pretensões, ele era algo além.
— O q-que você é? – minha voz saiu falha.
— Sou tantas coisas querida Ylena, mas nenhuma delas foge de seu conhecimento, garanto! – seu olhar carregava suas más intenções, independente do quanto tentasse demonstrar o contrário com suas palavras quase zelosas junto ao sorriso cauteloso, havia uma chama brilhando em perversão. Fosse qual fosse suas pretensões, elas viriam banhadas na mais pura maldade.
— Diga-me o que realmente você é! – exigi amedrontada, enquanto ele sorria ainda mais largo.
— Sou a gula, a luxúria, a avareza, a ira, a soberba, a preguiça e a inveja. Eu sou a degradação humana, a sombra dos defeitos, a presunção contida nas vontades não ditas dos homens, o egoísmo camuflado de boa vontade, o ódio destilado em amargura, o que insistem em negar a existência, mas ainda assim carregam consigo aonde quer que vão ou em qualquer coisa que façam. Eu sou dor e confusão, sou caos e injúria, mas pode me chamar de seu, querida Ylena. Porque a farei minha. – tornei-me inerte diante a compreensão.
Ele era a precariedade humana, o epítome do nefário, a personificação da maldade em sua forma original, reluzindo sua sedução persuasiva para me tornar parte de si, induzindo o despedaçar da minha alma, a fim de desdobrá-la em várias partes. Mas eu não me entregaria fácil, mesmo morta, pelo pouco que restava de mim, não me entregaria a suas vontades distorcidas e enfadonhas.
— Você jamais me terá! – afirmo.
— Oh minha querida, eu já a tenho! – seu sorriso convencido alargou-se inumo, fazendo seu rosto se desfazer em sombras assim como todo seu corpo, me engolindo para sua vastidão obscura, me jogando no precipício de sua miserável existência, fundindo o início de um com o fim do outro. E ainda que ele não existisse, eu existiria, flutuando pelas frestas etéreas de si mesmo, viajando em meio ao caminho sombrio que ditava indolente, arrastando tudo ao seu alcance para ser absorvida pelas trevas que agora se alimentavam de mim.
Inevitavelmente seu caos finalmente me consumiu.
Fim do capítulo
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