Capitulo XIV
Kiara Santiago
“Estava em meio ao caos desejando ardentemente que ele me consumisse, só para que aquela avalanche tortuosa finalmente encontrasse seu fim. Esta ideia nunca foi tão tentadora antes, como estava sendo agora. A percepção do inevitável causava certo desconforto, era quase agradável, enquanto sentia o metal frio tecer seu caminho majestoso por minha pele dourada, desejando tocar minha artéria com seu gélido carinho mortal. Finalmente tudo aquilo acabaria, me tornando parte do nada. Estes foram meus pensamentos quando Ylena tentou me matar e fracassou, mas acabou me aprisionando na sua própria jaula, sabe se lá como. A menor hipótese de me livrar de seu jogo psicológico, mesmo que fosse perdendo a vida, soou deslumbrante perto de continuar sendo torturada. Não podia vê-la, mas sua voz sempre estava lá, afagando o fundo da minha mente, ecoando ordens suaves, impulsionando suas vontades sob as minhas. Vagar sozinha através das sombras do Château da família, foi de certa forma libertador. O tempo naquela prisão passava diferente, curiosa como sou, me familiarizei com cada detalhe da minha gaiola de madeira e pedra – um jeito bobo de me manter sã. Para quem havia dançado com o próprio diabo, até que estava sobrevivendo bem em meio à escuridão.
Estar a tanto tempo aprisionada nas trevas pessoais de outra pessoa tornou-me desesperada por qualquer fagulha de esperança. Quando Ayla emergiu feito o sol no amanhecer, meu martírio tornou-se menos desagradável. Quando me vi no jardim negro junto dela, soube imediatamente que minha algoz de alguma forma a havia alcançado, retomando todo aquele jogo familiar e diabólico, sedento, ansiando tomar qualquer rastro de vida a seu dispor, como se fosse o líquido essencial de sua cruel imortalidade. A partir dali a corrida contra o tempo recomeçou. Ansiava pelos encontros com Ayla, a fim de alertá-la sobre o mal à espreita, no entanto, minha carcereira astuta, ainda que mantivesse seus olhos voltados para outra pessoa naquele momento, intensificou suas barreiras ao redor de mim para que nada fizesse, e foi assim que ganhei meu companheiro de cela. Caleb foi um infeliz efeito colateral. Sentia por sua vida perdida, mas não podia negar que ter sua companhia abrandou o vazio daquela solidão opressora. Por mais estranho que fosse havíamos nos cultivado uma amizade improvável. Afinal, compartilhávamos a cela e uma afeição especial pela mesma pessoa. Além do relógio, o interesse de ajudar Ayla acima de tudo nos conectava, a única coisa a nos mover para longe da insanidade sugestiva daquele lugar.
Olhei ao redor procurando por Caleb, que conversava comigo dentro da sala principal do Château a poucos minutos, não o encontrando. Ao que parecia, eu tinha sido magicamente levada para fora do casarão outra vez. Não foi surpresa estar no jardim, o que me fez pensar que havia sido enviada para mais um dos sonhos com Ayla, e sequer percebido. Não demorou muito para que sua presença peculiar fosse notada por mim. Ela estava do outro lado do jardim, resplandecendo sob a luz do sol que estranhamente brilhava como em nenhum outro de nossos encontros.
— Ayla! – corri em sua direção me lançando em seus braços, forçando-a a amparar meu corpo meio desajeitada, nos impedindo de cair. Ficamos tão próximas que pude sentir sua risada vibrar em minha pele. Meu gesto impulsivo surpreendeu a nós duas – culpei a preocupação excessiva que tanto eu quanto Caleb havíamos cultivado, uma vez que não sabíamos nada do que estava acontecendo com a garota.
Me afastei devagar, dando-me conta de que aquele sonho não estava sendo como os outros, já que quando ela quem puxava através da conexão geralmente o cenário não era o Château, e estávamos em outra parte do jardim dessa vez. Algo havia acontecido! Minha mente vagava entre as piores hipóteses, me deixando apreensiva.
— Espera! Por que você está aqui? Não me diga que… — minha voz soou torturada pela vaga ideia de Ylena tê-la machucado severamente. Percebendo meu desespero, a garota tomou minhas mãos com as suas num aperto forte, fixando nossos olhos tentando me tranquilizar.
—Hey… Hey… Calma…— respondeu numa tranquilidade assustadora, o que só serviu para me irritar. Bufei imaginando qual risco aquela garota teimosa havia se colocado para levá-la até ali, dobrando o tamanho da minha preocupação.
—O que você fez? – acusei aflita.
—Bem… — a resposta evasiva e a postura acanhada me fizeram estreitar os olhos. Aquilo estava cheirando a uma bagunça das grandes. O que me lembrou de Caleb dizendo como Ayla atraia para si todas as situações mais inusitadas possíveis. Ela soltou nossas mãos, olhando ao redor.
— Ayla! – exclamei, cruzando os braços com a postura enrijecida, arqueando ainda mais a sobrancelha, a intimando começar com as explicações. Minha atitude pareceu surtir efeito, diante meu escrutínio a garota contou tudo. Em nada me alegrou certos detalhes de seu relato. Saber que Ylena estava causando mal às pessoas usando minha identidade fez surgir sentimentos perigosos. Independentemente de estar ou não com o relógio, nada a impedia de propagar seu caos, e eu estava tão cansada de viver nas sombras de sua maldade irrefreável sem poder fazer nada. Impotência causava um nó doloroso no meu peito. Ayla crispou os lábios vendo-me negar com a cabeça descrente, ainda tentando assimilar o que me contou. Me perguntava, como duas garotas podiam ser tão imprudentes em pensar que um ser maligno e sobrenatural iria simplesmente contar-lhes todos os segredos facilmente. Soava no mínimo, ridículo!
Não estendi aquela conversa, em nada iria adiantar passar qualquer sermão, todas nós estávamos ferradas de qualquer maneira. Ante meu longo silêncio, Ayla se permitiu analisar melhor o lugar ao nosso redor, parecendo se dar conta do cenário singular. Toda aquela luz estava despertando certo estranhamento em nós duas. Fora de seu escrutínio, agradeci por não está mais sob a mira atenta daqueles castanhos líquidos. Era minha vez de observá-la. A postura naturalmente marrenta instigava demais à vontade em desfazer a mão aquela armadura feita de tinta negra que cobria seus braços de maneira ostensiva. Temendo que ela percebesse meus olhares nada discretos, também acabei me virando para a propriedade admirando o belíssimo lugar banhado a luz, totalmente diferente da habitual penumbra costumeira da minha prisão. Estar ali me fez lembrar o quanto sentia falta do calor sob a pele, do cheiro de flores sendo carregado pela brisa do entardecer, do frio da grama sob meus pés descalços, das reais sensações correndo pelo corpo, mas não menos a falta de estar livre. Queria tanto que Caleb pudesse estar ali conosco, me afligia pensar nele, preso sozinho na escuridão. Sem minha presença, ele estava à mercê daquela casa que nos consumia lentamente, levando pouco a pouco nossa lucidez e identidade, nos tornando lembranças esquecidas no tempo disforme de sua dimensão.
— Então...aproveitando a oportunidade… posso saber, como me conhece? – de todas as perguntas que pensei que ela fosse fazer, aquela não estava dentre elas. A frase inesperada fez meu rosto esquentar, sem graça. Não passou pela minha cabeça que fosse se lembrar desse detalhe insignificante, em meio a tantos acontecimentos mais importantes que o sucederam. Só voltei a olhá-la, quando foi seguro não transparecer o quão envergonhada estava em falar sobre este assunto justamente com ela.
— Isso não é relevante, não agora pelo menos. – tentei desconversar, trilhando um caminho conhecido pelo suntuoso jardim. Antes de dar-lhe as costas pensei ter visto um vislumbre de um sorriso arrogante. Ela não iria desistir tão fácil.
— Muito pelo contrário, o momento me parece perfeito! – contrapõe ardilosa. Não respondi, deixei um sorriso presunçoso enfeitar minha a boca seguindo em direção ao pergolado de madeira, para ganhar tempo. Aquela era minha parte preferida da propriedade, a vista da estrutura clássica do casarão era impressionante dali. O modo como a vegetação o abraçava, se estendendo desajeitada por todos os lados, os pequenos galhos corajosos, contornando o batente das grandes janelas brancas harmonizava com a solidez cinza.
—Hey, você está fugindo! – acusou sardônica a garota a trás de mim. Ignorei-a, deliberadamente.
Chegando embaixo da estrutura de madeira, sento-me num dos bancos acolchoados, observando Ayla se aproximando de mim. Ajeitei o corpo, num ato reflexo do estado nervoso pelo teor da conversa a seguir. Dei batidinhas leves no estofado do sofá indicando a Ayla para que se sentasse ao meu lado. Seu rosto reluzia genuína curiosidade, quando também se acomodou. Dizer que queria ter aquela conversa na atual situação em que nos encontrávamos seria uma grande mentira, havia idealizado o fazer em outras circunstâncias, porém não adiantaria postergar o assunto. O olhar inquisidor de Ayla confirmava que ela não deixaria passar daquela.
— Então? – perguntou não contendo o evidente interesse. Novamente me ajeitei, aproveitando para ficar de frente pra ela, encostando meu braço esquerdo sobre o encosto do sofá, levando em seguida a mão atrás do pescoço.
— Quer a história resumida ou completa? – suspirei derrotada. O arquear intenso das sobrancelhas grossas dela deixou claro que seria a versão completa, sorrio encabulada. Pelo que conhecia dela, sabia que não precisaria contar toda a história de fato, bastava um indício e sua mente sagaz faria as conexões sozinha. Por isso, escolhi bem minhas próximas palavras, ainda que internamente, torcesse para estar certa.
— “O ser humano gosta de complicar as coisas, é só uma brisa, quem sabe ela bagunce teu cabelo, quem sabe te acaricie o rosto, quem sabe, quem sabe…”
Num primeiro instante, a curiosidade contida em seus olhos deu lugar a confusão, os semicerrando levemente enquanto sua mente trabalhava cada palavra, logo o reconhecimento tomou seu semblante. A citação foi um tiro no escuro, principalmente por ter sido ela quem a havia mandado há tanto tempo.
— Meu Deus! – clamou surpresa. Seus olhos brilharam aturdidos por finalmente ter desvendado o misterioso remetente das citações literárias guardadas no velho livro de capa vermelha tão querido e familiar. O entusiasmo de seu assombro me soou adorável. – Agora faz sentido o porquê de as mensagens terem parado, você estava aqui! – concordei resignada. Não foi fácil evitar as lembranças de antes do relógio, quando visitando uma cidade nova num dia aleatório de novembro, entrei numa cafeteria aconchegante, me deparando com uma garota totalmente alheia ao mundo ao seu redor e parecia pouco se importar com isso. Fiquei tão intrigada, que acabei frequentando a cafeteria durante a minha curta estadia na cidade. A dualidade expressiva de Ayla me causou fascínio. Ao mesmo tempo em que ela realizava mecanicamente as tarefas da cafeteria, a olhos interessados via-se que apenas seu corpo estava ali, pois sua mente vagava no próprio universo, somente quem se perdia em si mesmo entenderia a grandiosidade daquela cena. Naquele momento, desejei poder ver o mundo que ela escondia dos outros.
Bem lembro da vez em que ela, lendo uma das mensagens anônimas, deixou escapar um sorriso, enfeitando o canto da boca pela ousada citação eu havia escolhido, me cativando completamente. Nunca tinha a visto sorrir antes, e só serviu para torná-la mais convidativa a meus cobiçosos olhos. Veja bem, não sou uma mulher tímida, apesar de ter usado o anonimato para me fazer notar, a verdade é que tenho certo prazer em provocar curiosidade. Soava clichê, todavia todos nos tornamos vítimas dele em algum momento.
—Nunca te vi no café, tenho certeza de que me lembraria! – sorri largo com a sutil sugestão de que minha presença lhe seria notável, fazendo seu rosto tingir-se em vermelho ao dar-se conta de como aquilo havia soado, e que eu tinha percebido o tom implícito.
— Essa é a intenção do anonimato. Não viu por que eu não quis que visse! – provoquei, não lhe dando tempo para retratação. Gostei mais do que deveria da sua confissão involuntária. Meu atrevimento lhe custou um olhar constrangido, fazendo-a desviar do assunto, saindo da saia justa que colocou a si mesma.
— Isso é tão estranho. Tudo parece estar interligado. – comentou aturdida.
—Sinto muito, é minha culpa vocês estarem envolvidos. –confessei exausta.
—Não é, ok?! De algum jeito bizarro, isso acabou nos encontrando. – tentei mostrar o quanto suas palavras me confortaram através de um sorriso simples, que fora retribuído. Aquela culpa vinha pesando minha consciência, latejando um talvez insistente que se tivesse sido mais determinada, poderia ter impedido Ylena de matar Cal e encontrar Ayla. – Como começou? Se não se importar em dizer! – perguntou curiosa.
A sucessão de acontecimentos imediatamente inundou minha mente. Desviei meus olhos para o jardim, vagando perdida pelas flores, enquanto deixava as palavras saírem pausadas, confidenciando a minha versão da história.
— Meu pai herdou alguns bens, dentre eles o Château. Numa das visitas, acabei encontrando o relógio entre os pertences dos antigos moradores, que ainda não tinham sido retirados da propriedade... Fiquei tão fascinada que o peguei para mim. Andava com ele por toda parte, era como meu tesouro escondido… — sorri pela memória boba. – Pouco depois...começaram os sonhos, o estado de transe, enfim...poupando os detalhes conhecidos...numa bela noite lá estava eu na biblioteca do Château cortando meu pulso com o abridor de cartas, cena nada bonita. Não conseguia interferir, não comandava minhas ações, só sentia a dor da lâmina na minha pele, a satisfação enlouquecida me corroendo por ver o sangue escorrendo, e outros sentimentos que não eram meus. – suspirei desconfortável, evitando a voz embargada devido ao esforço em conter as lágrimas. – Minha irmã mais nova, Olivia, apareceu e consegui me socorrer. Ela me arrastou para longe do relógio, só não sabia que eu já não estava mais lá... Tudo foi tão rápido e confuso. Num minuto, dividia o momento de terror com Ylena, e no outro estava aqui, presa no domínio dela. – o peso da realidade trouxe o gosto amargo da indignação, há tanto contida. Amedrontada, voltei meus olhos à silenciosa garota à minha frente, e seu olhar transtornado me quebrou completamente. Sem pensar, me inclinei na sua direção encostando a testa no ponto de encontro entre seu ombro e pescoço, me equilibrando com as mãos sob seu abdômen macio, senti os braços desenhados se fecharem ao meu redor, acolhedores. Ali, silenciosamente deixei sair ruir o que vinha me acompanhando por todo aquele tempo. No abraço de Ayla, me deixei ser amparada por sua resiliência acolhedora. Seria desejar demais não sair daquele abraço?
Aos poucos fui me acalmando, a névoa da aceitação dolorosa se desfez, restando somente a serenidade calorosa pairando entre nós. Ficamos naquela posição até senti-la se mexendo, me fazendo afastar lentamente de sua agradável proteção. Com a mão direita, ela acariciou meu rosto com as pontas dos dedos com delicadeza, contornando as linhas expressivas de cima a baixo, descobrindo-as. Seus olhos escuros brilhando interessados seguiam a trilha imaginária que compunha em minha pele. Estávamos tão próximas que conseguia distinguir nitidamente cada traçado negro ao longo do braço estendido da mão que me tocava, as discretas pintas distribuídas por seu rosto, a tonalidade avermelhada dos lábios cheios e sinuosos. A percepção de ser o alvo de sua compenetrada atenção, causava uma aflição gostosa. Aquela a constatação provocou um satisfação extasiante, me tornando uma grande massa de expectativa ambiciosa. Eu a queria mais perto, e não seria real. Esse súbito entendimento desmotivador somado a desesperança ao notar que aquele desejo tolo não poderia se realizar caiu pesadamente sobre mim. Éramos personagens do mesmo livro, sendo separadas pelos acontecimentos irreais de nossas histórias.
—Você é perigosamente cativante, para o seu próprio bem. – disse-lhe divertida e relutantemente levantei numa rapidez invejável, impondo certa distância entre nós. Soava como uma ideia adequada e segura para ambas naquele momento. Ela demorou instantes para assimilar o afastamento repentino, parecendo perdida em divagações próprias ao acenar distraída. A insignificância de certos detalhes nos pega desprevenidos quando ignorados despretensiosamente, como naquele momento, quando me dei conta das coisas além dela, o mundo encantado em que estávamos voltou a vibrar seus detalhes. Não saberia dizer quando a chuva havia começado caindo lenta e silenciosa, banhando a extensão multicolorida e viva que nos cercava. Talvez estivéssemos tão profundamente empenhadas uma na outra sob a segurança rígida da madeira do pergolado, que sequer percebemos o que acontecia na realidade paralela ao nosso redor.
— Ei... olha! Está chovendo! – murmurei chamando sua atenção.
Ayla se levantou ainda presa no estado absorto e calado, cruzando os braços numa postura defensiva ao recostar seu ombro na viga de madeira da entrada, os olhos negros admiravam a sobriedade das lágrimas incessantes caindo do céu espalhando a sensação morna devido ao efeito das gotas frias em contato com o solo quente. Fechei meus olhos aproveitando o sentimento agradável proporcionado, tão contrário a sufocante escuridão de minha prisão. Era engraçado como o sistema límbico interagia bem com o córtex cerebral nestes momentos. Meu cérebro lembrava perfeitamente os cheiros, a sensação do calor, mas não era real. Simples assim. Tudo ali fazia parte de uma memória. Era a explicação mais lógica que conseguia dada a situação.
Não percebi quando desci os degraus, deixando a carícia líquida do céu descer sobre mim, enquanto meus pés descalços absorviam a mistura sagrada entre terra e água. A prazerosa sensação se espalhando por todo meu corpo energizando-o, deixando-o eufórico, o tecido do vestido negro ficando pesado, grudando na pele como num abraço apertado, tal qual a pressão do olhar da garota que permanecia sob a proteção do pergolado me seguia de perto, pressionando cada extensão de mim, tão apertado quanto o tecido molhado me cobrindo. As rajadas enérgicas vindas dela irradiavam um calor perturbador por minha pele, marcando a fogo o caminho que seus castanhos incendiários traçavam. Era o que ela queria me causar, afinal eram as memórias dela não eram? Não sei se ela o fazia de propósito, o que não me impedia de sofrer os potentes efeitos de suas ações impensadas. Tamanha era a intensidade emanando dela, que sequer consegui dirigir-lhe um olhar. Ao contrário elevei o rosto aos céus, sentindo a letargia gélida me banhar a face. Senti o exato momento, que ela se pôs ao meu lado, também sendo lavada pelo clamor do universo sendo despejado suavemente sobre nós. Assim como o poder contido em seus olhos, sua presença era igualmente perceptível. Nada mais me soava tentador como a imagem dela sob a chuva, sorrindo inebriada pelo afago molhado. As translúcidas gotículas fundiam-se a sua pele como se fossem uma só, ditando uma dança própria ao escorregar pelo corpo pálido acompanhando seu contorno sutil.
Repentinamente a chuva fina tornou-se tempestade, castigando tudo abaixo de si com o engrossar de gotas furiosas. A inesperada mudança nos fez correr para as dependências do casarão em busca de abrigo, pois o pergolado não sustentaria aquela chuva. Entretanto, foi só passarmos pelo arco da porta principal para nos darmos conta de que estávamos completamente secas, o barulho da torrencial queda d'água havia dado lugar ao mais absoluto silêncio. Apenas o frescor pairando no ar, deixava claro o que vivemos do lado de fora. Era como se alguém tivesse usado daquilo para nos atrair para a casa. Pensar nisso fez minha espinha gelar. A mera possibilidade do que realmente podia estar acontecendo sussurrou orações involuntárias em minha mente para que estivesse errada. Olhei a garota ao meu lado, que parecia tão confusa quanto eu diante a inesperada situação. Senti-me inclinada a seguir para o segundo andar, foi como uma sugestão sutil e coerciva para que o fizesse. Que levasse Ayla até lá.
— Vem! Quero te mostrar uma coisa. – estendi a mão para Ayla, que desconfiada entrelaçou nossos dedos, se deixando ser guiada. Ao fim da escada, o longo corredor cheio de portas se estendeu à nossa frente, cenário que me era indesejadamente familiar. Temerosa, me aproximei de uma das portas, e não foi surpresa que acima do batente via-se o relógio talhado ali – assim como haveria em todas elas. Eu sabia bem o que encontraria atrás de algumas daquelas portas, não soava nada animador o que aquilo de fato poderia significar.
— O que é isso? – Ayla perguntou, também olhando os vários batentes marcados com horas diferentes.
— Aparentemente estamos na dimensão do relógio, mas ao mesmo tempo não estamos. Talvez nossas dimensões tenham se estreitado, não tenho certeza. – externei aquela ideia que pairava na minha cabeça desde o momento que colocamos nossos pés na casa.
— Isso é possível? – sussurrou duvidosa, apertando os olhos em confusão. Em outra situação até duvidaria também, mas há muito que inexplicável havia se tornado a minha mais nova realidade.
— Acho que já passamos do limite aceitável dessa palavra! – debochei.
O tilintar contínuo de um dos relógios atraiu nossa atenção, quando projetou o retumbar grotesco dos ponteiros marcando a meia noite por todo o corredor, o som vinha da porta do meu quarto. Aquela que por inúmeras vezes tentei abrir assim como Caleb, porém era uma das que sempre estavam trancadas. Nenhuma delas havia se destacado antes, essa parecia nos chamar com fervor para nos aproximarmos. Igualmente aflita, Ayla seguiu meus passos até a porta barulhenta e insistente. O aperto de nossas mãos unidas se intensificou quando a garota ao meu lado, estendeu meio hesitante a outra mão a fim de alcançar a maçaneta dourada.
— Ayla! – chamei em contenção, não podia simplesmente deixá-la embarcar numa rota perigosa e desconhecida, como bem sabia que seria se ela passasse por ali. Os segredos tão bem guardados por aquelas portas agora ecoavam seus gritos agourentos e familiares, que pareciam ser inaudíveis para ela, mas não para mim, que os conhecia bem demais. Aquela pavorosa trilha sonora era emitida constantemente na gaiola sobrenatural que me aprisionava. Já podia sentir todo o seu anseio sombrio me consumindo a pele em agonia.
— Antes de prosseguir, entenda que pode não ser uma experiência agradável. Então… tenha a certeza de que quer mesmo continuar. – alertei-a.
— Não posso te pedir para ir comigo, mas gostaria que fosse. Mas...se não quiser, entenderei. – seu cuidado e sua coragem me serviram de incentivo. Havíamos chegado num ponto sem volta, por isso, apertei sua mão com mais força, sorrindo em confirmação. Ela voltou a mão à maçaneta abrindo a porta, dando o primeiro passo à frente, nos transportando para o que quer que tivesse escondido atrás daquela porta.
Fim do capítulo
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