Capitulo XIII
Madison Taylor
Depois do bizarro encontro com a irmã Montelo viva—mas não menos macabra, minha amiga tatuada se afundou ainda mais em seu costumeiro modo taciturno. Imaginei que ver Kiara não estivesse sendo uma ideia fácil de digerir para Ayla. Principalmente se nossas suspeitas fossem confirmadas e lá encontrássemos o poltergeist oxigenado. A hipótese de ver ao vivo e em cores a culpada pela morte de seu ex-namorado usando a bela face da irmã de suas amigas, não soava nenhum pouco animadora — nem mesmo para mim. Confesso, que no início aquela história toda me pareceu uma loucura completa, mas lembrar da inquieta performance noturna de Ayla vagando nervosamente pela casa — o que vinha durando semanas, e ver Caleb caindo inexplicavelmente da torre do Château, corroborou para crer que sim, tudo aquilo era real. Ela jamais inventaria algo daquela magnitude.
Naquela fatídica noite, os acontecimentos foram tudo menos normais. O ar espesso ao redor do casarão pesou meus ombros, como se tivessem sobrecarregados com 150kg. O desespero de Ayla podia ser sentido amargando a garganta feito fel. No entanto, nada superou a sensação amedrontadora de ver o corpo de alguém estirado sem vida à sua frente. A dor da minha amiga foi tamanha que ultrapassou sua pele consumindo tudo ao redor, como famintas labaredas de fogo, pude sentir minha própria pele ardendo em descrença e raiva, sendo este último sentimento o mais incomum partindo de Ayla. Apesar de seu jeito pragmático e reservado, aquela garota carrega consigo um coração enorme, muito bem camuflado pelo humor ácido e debochado, por isso não era fácil despertar sentimentos negativos dela, no máximo lhe oferecia indiferença. Entretanto, aquele cosplay de fantasma da ópera desbotado, havia alcançado a parte crucial de Ayla, seu coração.
Os dias subsequentes à tragédia foram igualmente angustiantes, não havia sequer a sombra da minha amiga de humor questionável. Ayla passou a ser uma pessoa rancorosa com sede de vingança. Não precisei de muito para entendê-la, em seu lugar, estaria sentindo o mesmo. Por mais fantasiosa que fosse a situação, lá estava eu ao seu lado, e permaneceria ali até que não me fosse mais permitido. Aqueles pensamentos me acompanharam quando abri a porta do loft, seguindo até a nossa pequena cozinha onde fui pegar água. O líquido transparente repousava pacifico no copo de vidro entre os dedos da minha mão. Não muito depois, Ayla entrou no meu campo de visão, seu rosto transparecia preocupação e ansiedade. Sabia que ela queria que dissesse logo se havia conseguido convencer Ella a nos deixar ir até o Château naquela noite, mas o prazer de torturá-la fazendo suspense surgiu involuntariamente. Me mantive em silêncio, ignorando-a. Não era justo, eu sabia, quase gargalhei quando ela grunhiu irritada, parecendo uma garotinha mimada. Me deleitei mais um pouco com sua carinha indignada, dando goles propositalmente lentos na água gelada, disfarçando o sorriso satisfeito ao final. Sabia que ela lia em meus olhos a audácia por trás da minha demora.
— Madison Taylor! – visivelmente ultrajada com a brincadeira, Ayla exasperou-se, depois disso não aguentei e gargalhei gostosamente alto, deixando-a mais irritada. Ela me deixou sozinha na cozinha, marchando raivosa até o sofá.
— Hey, esse mau humor terrível não faz bem! – me ignora, virando o rosto em direção a parede de vidro da sala, por pura implicância. Rendida, sentei-me ao seu lado puxando sua figura marrenta para mim, cedendo relutante. A curiosidade brilhava em seus olhos castanhos quando finalmente se permitiu me olhar.
— Nós iremos ao Château. Satisfeita? – soltei de vez a preciosa informação, sorrindo ao ver seus olhos arregalaram minimamente surpresos, como os meus ficaram quando havia conseguido convencer Ella de usar o Château como sede da noite das meninas naquela sexta-feira. Me pareceu a desculpa perfeita para conseguirmos entrar no projeto de casa dos pesadelos, sem levantar muitas suspeitas das nossas reais intenções, vez que a rígida camada protetora estabelecida pelas meninas sobre a irmã mais velha não nos permitia uma abordagem direta. – Nós precisamos de um plano! –decretei. Ayla se ajeitou no sofá, me direcionando um olhar afetado de desdém pela minha ideia simplista.
— Claramente iremos improvisar, mas se isso for lhe trazer segurança! – empurrei-a pela ousadia em debochar de mim. Na minha cabeça ter um plano era o mínimo, mas ela estava certa, não sabíamos o que encontraríamos até chegarmos lá de qualquer jeito, acabaria sendo inútil.
— Ok… Pelo menos lembre-se de escolher roupas adequadas, será um primeiro encontro épico! – emendei mexendo as sobrancelhas sugestivamente, cutucando sua barriga com meu dedo indicador. Remexendo nervosa, a garota saiu do sofá mantendo-se numa distância segura de mim. Aquela atitude me causou risos, eu havia conseguido deixá-la sem graça com minhas insinuações implícitas, como sempre.
— É sério isso? – limitei a dar de ombros como resposta enquanto também me levantava, indo para meu quarto. A etapa número um daquela loucura havia finalmente começado, então precisaria de um tempinho para me preparar psicologicamente.
Mais tarde naquele mesmo dia, fomos recepcionadas pelas irmãs Santiago na entrada do Château. Inicialmente, começamos com o cansativo tour pelas dependências da casa — devo dizer que andar por longos minutos por toda a propriedade me rendeu uma dor de cabeça irritante. Não era fã de ambientes tão rústicos, ao contrário de Ayla que não perdia um detalhe daquele mausoléu, devorando avidamente cada pedacinho novo apresentado. Como esperado, as irmãs evitaram todos os cômodos destinados à Kiara, o que me fez trocar discretos olhares com minha amiga confirmando nossos possíveis destinos para nossa pequena incursão noturna. Coincidentemente, a torre protagonista da fatal queda de Caleb, ficava em uma dessas partes — detalhe que minha mente insistiu em gravar, mas optei por manter apenas para mim.
Passada a interminável tortura disfarçada de passeio turístico, fomos gentilmente direcionadas para a sala de jantar, que assim como todo ele, detinha detalhes rústicos notáveis. Como as largas janelas adornadas por pomposas persianas na cor creme, onde a brisa refrescante da noite passava suavemente, o carpete marsala preenchido por desenhos exóticos em marfim e dourado amparando nossos pés abaixo da longa mesa de mogno, os lustrosos móveis de madeira dispostos estrategicamente pelo amplo cômodo, sem mencionar o gigantesco lustre de cristal no centro. Até mesmo a prataria reluzia o requinte clássico do ambiente, me causando náuseas. O que as pessoas tinham contra o estilo moderno e minimalista? Céus, eu só queria acabar logo com aquilo. Perdida nos meus devaneios decorativos aflitos, fui despertada pelo toque gélido da mão esquerda de Ayla sob meu braço. Ela mais do que ninguém sabia do meu descaso por decorações tão antiquadas. Minha sutil reação desgostosa, não passou despercebida de seus olhos atentos, seu aperto suave em meu braço servia como alerta para que me comportasse.
—Juro que se a cama tiver dossel, me jogo naquele lago sem nem pensar duas vezes. – resmunguei baixinho ao me aproximar minimamente da figura divertida sentada ao meu lado, Ayla se limitou a emitir um risinho discreto, já que o restante dos moradores da casa logo se juntaram a nós na mesa, o que me fez ajeitar a postura no lugar alargando o sorriso agradecido pela recepção tão calorosa vinda deles. Era a primeira vez que víamos o casal Santiago, e de cara pude notar a semelhança deles com as filhas, eram daquelas famílias em que a herança genética prevalecia quase completamente, a salvar pelos pequenos detalhes singulares, como os olhos verdes da Sr.ª Alba e os lustrosos cabelos negros salpicados de prata do Sr° Diego.
O jantar com nossos anfitriões transcorreu tranquilo e divertido. Como qualquer pai e mãe ao conhecer as amigas das filhas, nos contaram várias histórias constrangedoras das garotas inclusive de Kiara, que apesar de sua situação delicada, foi mencionada carinhosamente. Após o momento nostálgico, o casal não se demorou em nossa presença, logo se despedindo alegando quererem nos deixar à vontade para fazermos o que pessoas jovens faziam longe dos olhos dos pais. Apesar de ter usado a desculpa da noite das garotas para termos acesso a Kiara, Ayla e eu nos permitimos aproveitar daquele momento descontraído com Ella e Olívia. Alguma coisa me dizia para fazermos isso enquanto podíamos, principalmente pela incerteza do que estava por vir.
—Prontas para o maior desafio da noite? – Ella brincou com o fato de “invadirmos” a adega atrás de animação líquida para nossa reuniãozinha.
—Pelo amor, a porta nem está trancada, garota! – ralhou a outra Santiago impaciente, enquanto eu e Ayla sorrimos cúmplices, pois nem de longe aquilo seria o nosso maior desafio naquela noite.
Entre brincadeiras e risadas, furtamos algumas garrafas de vinho da adega particular dos Santiago, e nos direcionando para o sunroom, que, na minha humilde opinião, era o único lugar que salvava naquele mausoléu medieval. Os vidros sustentados pelas vigas de madeira, proporcionava ampla visão da campina e parte da piscina do lado de fora, ambos localizados atrás da casa. Sua estrutura lembrava bastante a um aquário gigante, com a participação natural da noite junto a luz das lanternas marroquinas ao redor, davam o charme aconchegante do lugar. Algumas plantas caiam em cascatas verdes do lustre central, escorregando os ramos desordenado do teto ao decorrer da estrutura de uma das portas do lado direito, se juntando a alguns vasos grandes com outras plantas dispostas no chão, trazendo para dentro o vislumbre da vida selvagem apreciada pela janela. No lado contrário, ao fundo do cômodo via-se o piano negro. Longos sofás perolados rodeavam a mediana mesa de centro escura, onde Olivia repousou os vinhos junto às taças, enquanto Ella acionava pelo celular o sistema de som da casa, colocando para tocar a playlist pop aleatória – outro detalhe que também julguei digno de apreciação, ao menos um toque do mundo moderno em meio a tanta velharia.
Cinco garrafas de vinho depois, e uma rápida troca de olhares com Ayla, demos boa noite às outras duas garotas nos direcionando para o segundo andar onde ficavam os quartos que usaríamos conforme indicado mais cedo. Cada uma no seu para não levantar suspeitas. Apesar de levemente embriagada, a apreensão da ansiedade revirava meu estômago, como se fosse um mau presságio. Essa sensação só crescia enquanto não recebia o sinal verde por mensagem da minha amiga. Combinamos de esperar alguns minutos para garantir que todos se encontrassem devidamente em seus quartos. Dizer que estava eufórica com aquilo seria um grande eufemismo, meu real desejo era o de correr para o mais longe possível daquele Château, arrastando Ayla comigo – mesmo a força, porém sabia que meu receio não fosse páreo à sua obstinação. Aqueles pensamentos martelavam minha mente ensandecidos, enquanto perdia o olhar pela escuridão da madrugada vista da janela do quarto. Infelizmente meu desejo de fuga não se realizou, movida pela sensação inquietante causada pelo tão esperado apitar indicando a mensagem recebida, me apressei em direção a porta, dando de cara com Ayla do outro lado. Seguimos devagar pelos corredores, em direção ao lado contrário de onde estávamos hospedadas, evitando todo e qualquer tipo de barulho, para não chamarmos atenção indesejada. A aura do perigo camuflou a ansiedade que me acompanhava. Quando entramos na primeira porta, sendo a do quarto de Kiara, o sentimento sufocante apertou minha garganta pelo simples vislumbre do arco da janela da torre do lado esquerdo da mansão. Saber que foi dali que Caleb caiu não estava ajudando em nada para que aquele sentimento passasse. Não sabia como Ayla conseguia se manter tão pacifica estando naquele cômodo, talvez sua mente não tenha registrado a real conexão que possuía com sua dor mais profunda e mal cicatrizada. Minha amiga mantinha a postura tão rígida que parecia ter uma barra de ferro atravessada de ponta a ponta em sua coluna, mantendo-a extremamente ereta. Como estava de costas para mim, não conseguia ver seu rosto para confirmar a aparente indiferença. Não se demorando ali, ela rapidamente se retirou do aposento, alegando estar vazio. A garota na minha frente carregava o semblante nublado e frio, enquanto dava pesadas passadas apressadas se pondo o mais longe dali possível. Comprovando que ela também não conseguia se manter indiferente.
Três tentativas frustradas depois, decidimos por bem, seguir até a cozinha no andar de baixo, a fim de tomar alguma coisa que acalmasse nossos nervos fragilizados, devido a frustração de não termos encontrado um vestígio sequer de Kiara. Parecia que a morena tinha evaporado ou nem estado por ali. Depois de dois generosos copos de água gelada, o baixo som de uma música clássica tocando nos chamou a atenção. As notas seguiam uma cadência deliciosamente instigante, mesclando perfeitamente notas graves e agudas. Não entendia nada daquele estilo musical, mas, numa breve busca em minha memória, nenhum outro conseguiu se comparar ao que estávamos ouvindo. Era simplesmente lindo! Curiosamente, Ayla também foi entorpecida pela melodia suave, cedendo ao seu chamado provocante largando desajeitada seu copo sobre o balcão e se dirigindo a passos vacilantes até a fonte da música. Obviamente a segui, pois me encontrava igualmente curiosa. A cada passo que dávamos o som se tornava mais claro, a acústica da mansão era impressionante, pois da cozinha não parecia que o som vinha de dentro da casa. Mas lá estávamos nós, alguns cômodos depois, de volta ao sunroom. Seguimos até lá, na certeza de que as notas tocadas indicavam que alguém estava dedilhando divinamente o piano, e o único que havia repousava seu brilhoso corpo negro naquele lugar.
A imagem à nossa frente foi incontestavelmente amedrontadora. De costas, podia-se ver os longos cabelos castanhos despencando em cascatas onduladas, dançando conforme os movimentos muito bem executados sob o instrumento dava vida a aura densa ao nosso redor, quase palpável, aumentando nota por nota. No que pareceu o clímax da música, os movimentos das mãos da artista à nossa frente, ganharam ainda mais agilidade, tecla após a outra tecia uma história sem palavras, tocando nossa alma. Fomos completamente imersas no lamento melodioso proferido pelo piano em resposta aos afagos precisos que sofria, mas, infelizmente, como toda boa história, chegou ao fim no zumbir agudo de sua última nota. A artista se permitiu ao silêncio contemplativo pós espetáculo, como se esperasse a salva de palmas que comumente se seguia depois. Sua postura altiva, manteve-se de costas como se estivesse só, ainda que algo em mim gritasse que ela sabia que tinha plateia. Vendo que não nos moveríamos um milímetro sequer, ela se moveu irritantemente elegante para o meu gosto, nos dando a completa visão do largo sorriso de dentes perfeitos que carregava consigo. Era assustadoramente bela a face daquela que nos olhava. Diferente das fotos que vimos, o rosto bem desenhado de Kiara Santiago em nada se parecia com a garota doce e atrevida, nem chegava perto disso. Não, a mulher que nos encarava agora, tinha em si um mau incontido flamejando no olhar pesado que nos dirigia, as delineadas sobrancelhas negras arqueadas na mais profunda ironia, os lábios cheios e chamativos formaram um sorriso presunçoso, e nada daquelas feições maldosas diminuía o impacto desconcertante de sua imponência. Desdenhava de nossa presença sem nem se importar em disfarçar.
— Ora, ora, ora! Há que devo a honra de tão preciosa visita? –o som grave e rouco de sua voz nos atingiu de maneiras diferentes, supus. A mim, a vontade desesperadora de correr para longe daquela mulher sorrindo alucinada, o peito latejando intensamente a ponto de me fazer querer vomitar. Agora, em Ayla, a coisa acontecia de outra forma. Veja bem, apesar da carranca característica de minha amiga a calmaria lhe servia perfeitamente de contraponto. Só que naquele momento eu via ódio nela, emanando em ondas crescentes, se quebrando umas nas outras ferozmente, destinadas ao único ponto em comum, Ylena. E a maldita se mantinha perturbadoramente satisfeita com aquilo.
— Você sabe muito bem a quem, Ylena! – contrariando a energia intragável que emanava de si, Ayla a respondeu sem vacilar um centésimo. Suas palavras soaram numa naturalidade cortante, jamais ouvida por mim. Isso em nada parecia abalar a outra garota, quando se pôs a levantar do banquinho do piano, exibindo uma calmaria invejável. Em momento algum, o sorriso presunçoso deixara seu rosto, nem mesmo Ayla perdera a expressão impassível diante dela. Já eu, mera mortal, tinha certeza de estar transparecendo todo o meu desconforto, pensando sem para no quão sedutora soava a ideia de pôr a maior distância dali, o mais depressa possível.
— Ah, meu nome nunca soou tão bem! Olá, Ayla! – provocou Ylena, enquanto dava passos discretos ao redor do largo piano negro o acariciando delicadamente com as pontas dos dedos, se posicionando o mais próximo de nós. O sorriso de escárnio sequer oscilou enquanto ditava suas palavras lotadas de sarcasmo.
—Podemos, por favor, pular a parte das apresentações? – manifestei-me incomodada com todo aquele teatro desnecessário, não estávamos numa maldita encenação dramática, então não tinha necessidade daquilo se estender de maneira tão encenada. Além do mais, não dispúnhamos de tempo para uma longa conversa, alguém poderia acabar nos ouvindo.
— Desse jeito você me ofende! Deixe-me ser uma boa anfitriã! – emendou a morena dissimulando uma hospitalidade que não lhe cabia.
—Não perca seu tempo, nem nos faça perder o nosso. Você sabe o que nos trouxe aqui! –redarguiu Ayla, raivosa.
— Tão apressada Ayla, talvez, eu possa ceder um segredo ou dois, apenas para lhe saciar a curiosidade de anseios tão perigosos. –cantarolou.
— Guarde-os para você, Ylena. Suas ofertas frívolas em nada vão me saciar. Não sou dada a intenções vazias. Diga logo o que fez a Kiara! – Ayla cortou decidida, enquanto, eu silenciosamente dava graças a Deus por sua iniciativa, porque não estava em meus planos tomar chá e jogar conversa fora com aquela usurpadora demoníaca, ao contrário dela que parecia se demorava degustando cada palavra e gesto que fazia em nossa direção.
— Não tenho explicações para lhe dedicar, minha querida. Então vou direto ao ponto, como deseja, devolva o que é meu! – exigiu.
— O que a faz pensar que faremos isso? – a garota ao meu lado soou desafiadora e atrevida, causando um franzir irritado na outra garota, e uma careta preocupada em mim.
— Oh minha doce Ayla, vocês não têm noção do que sou capaz. Mas... será um prazer mostrar a vocês! – notei que ali nossa conversa tinha acabado.
Num piscar de olhos, a maldita se colocou à minha frente envolvendo meu pescoço com ambas as mãos, formando uma gargantilha desajeitada de dedos ao redor. O choque da sua atitude repentina paralisou meu corpo, devido a força do aperto que cortava imediatamente a passagem de ar para meus pulmões, imergi no mais completo estado de desespero. Aquela desgraçada ousava tentar me matar. Nervosa levei minhas mãos às suas, tentando inutilmente afrouxar o afago mortal. A costumeira sombra que espreitava os enforcados já dava o ar de sua graça, cantando em meus ouvidos para que fechasse meus olhos e me entregasse a sua escuridão acolhedora, mas no exato momento em que me rendia, me perdendo sob o olhar castanho gélido daquela desgraçada, o ínfimo sopro de ar encheu meus pulmões, fazendo meus olhos se abrirem por completo a tempo de ver o corpo de Ayla debatendo contra o de Ylena, conseguindo debilmente afastá-la de mim. Para meu pavor, meu despertar não foi rápido o suficiente, pois no mesmo instante vejo Ylena empurrá-la com tanta força que a fez perder o equilíbrio devido ao ímpeto da ação e em seu despreparo ao recebê-la, cair de cabeça sob a lateral do piano. Ainda tossindo energicamente devido a constância da circulação de ar de volta aos meus pulmões, fixei meus olhos incrédulos na imagem devastadora. Ayla jazia desacordada sobre o próprio sangue que agora enfeitava o chão com o líquido rubro.
— Sua desgraçada! – gritei num misto entre desespero e raiva.
— Oh, lamentável! – ouço a maldita assombração sussurrando dissimulada. Preenchida de fúria, voltei em sua direção, mas o som de passos apressados me impediu de tomar qualquer atitude agressiva. A máscara de garota debilitada foi vestida habilmente por Ylena, que se pôs sentada envolvendo os braços ao redor dos próprios joelhos, naquela típica cena de pessoa frágil e confusa. O tumulto de pessoas rompendo as portas do sunroom se instalou rapidamente, principalmente depois do grito horrorizado de Ella ao ver o corpo de nossa amiga estatelado e rodeado de sangue.
— O que aconteceu aqui? – exclamou a Sra. Alba, horrorizada se aproximando de Kiara a envolvendo protetoramente pelos ombros. Eu queria poder esbravejar que aquela não era a filha deles e sim uma usurpadora sobrenatural, mas a situação em nada favorecia, o odor de sangue me deixava cada vez mais tonta. Ver minha melhor amiga se esvaindo em sangue bem na minha frente e as fisgadas em minha garganta, também não ajudavam.
— Chamem a ambulância, pelo amor de Deus! – gritou Olívia.
Abalada, permaneço ao lado de Ayla, me adiantando para segurar sua mão delicadamente, notando imediatamente o quão fria estava. Ouço a voz altiva e urgente do patriarca Santiago brandindo ordens a quem quer que fosse, mas na minha cabeça a sentença mais cruel da noite já se instalara. Culpa. Se tivesse sido mais cuidadosa, se tivesse dado ouvidos à minha intuição berrando para que não fizéssemos e desistíssemos da ideia tola, talvez Ayla estivesse bem, talvez … só talvez… esse mantra repassava incessantemente, enquanto os paramédicos me afastaram para fazer os procedimentos iniciais para levá-la ao hospital, porque, graças aos céus, ela respirava. Levei meus olhos para Ylena, que na segurança dos braços maternos de Alba Santiago, discretamente despendia seu sorriso perverso por todo aquele circo macabro, fazendo meu sangue ferver de ódio. Levantei-me urgentemente, ignorando qualquer sensatez, partindo na sua direção a fim de despejar na sua cara cínica toda a minha fúria, até perder a força ou até que alguém me impedisse, mas este último aconteceu cedo demais, fazendo meu coração errar as batidas revoltado quando Olivia me puxou para o lado contrário daquela confusão, muito longe de Ylena e sua mediocridade.
— O que caralh*s aconteceu aqui? – questionou a garota agitada,
— Vai por mim, você não vai querer saber Olívia! – eu estava nervosa demais para responder-lhe educadamente, minha paciência igualava-se a zero naquele momento.
— Ei! Me deixe ajudar. – insistiu cuidadosa diante meu rompante nervoso.
— Você não vai acreditar, e outra, Ayla vai me matar se te envolver. – exaspero.
— Se não percebeu, ela não está aqui para impedir. Fala! – sua afirmação quebrou o último resquício de força que restava em mim, me fazendo falar tudo. No auge do meu desespero, desabafei sem medir as consequências. O estado emocionalmente frágil no qual eu me encontrava pouco impedia de não ultrapassar o limite “não vamos envolver ninguém" que a minha amiga desacordada estabeleceu e agora ela estava a caminho do hospital porque ficamos esperançosas demais ao acreditar que poderíamos lidar com aquilo sozinhas, havíamos subestimado aquela poltergeist oxigenado. Ao contrário do que esperava, Olívia aceitou numa tranquilidade espantosa, aquela narrativa maluca. Ela me abrigou em seus braços no final, se limitando a dizer que desconfiava de que algo estranho estivesse acontecendo com a irmã e que nos ajudaria com o que fosse dali em diante. Estando dentro do abraço acolhedor de Olívia, depois de ver Ayla sendo levada, só conseguia pensar que deveria ser eu a imobilizada dentro de uma ambulância e não ela.
Não demorou muito para que os integrantes da família Zahir ganhassem as portas do hospital público de São Valeriano. A mãe de Aly, Vitória, uma senhora de cinquenta anos, seguia apressada ao lado de seu marido, Mateo, que, tão diferente do habitual sorriso galante, trazia consigo o semblante carregado tão parecido com o da filha, internada em estado grave. Até mesmo Gael, sempre indiferente à presença da irmã mais nova, transbordava preocupação, mas Vitória de longe era a mais aflita dos três. Ao me verem junto da família Santiago aguardando notícias na sala de espera, se adiantaram em me abraçar – apenas os pais de minha amiga, pois Gael adiantou-se à procura dos médicos para se atualizar do quadro de saúde da irmã. Disfarcei o suspiro aliviado, ao perceber que a história inventada habilmente por Olivia, tinha os convencido, porque do contrário não estariam me confortando e sim, exigindo explicações sensatas para o que houve.
Apesar da tensão da situação, me esforcei em mantê-los informados quanto ao estado pouco estável da filha caçula do casal Zahir. O silêncio devastador da sala de espera do hospital, em nada ajudava a controlar nossa angústia, o passar das horas causava um aperto estranho em meu peito, o branco excessivo daquele lugar me sufocava ainda mais. Minha mente aflita mal registrou o momento em que ambas as famílias se apresentaram, com evidente desconforto pela ocasião pouco convencional. Eu só conseguia repassar o sorriso ardiloso de Ylena diante o mar escarlate de Ayla.
Durante a madrugada, as notícias que chegaram foram miseráveis — a meu ver. Ayla estava relativamente bem, seu quadro seguia instável e incerto, pois devido à forte pancada permanecia desacordada. Os exames mostraram que ela tinha apenas uma concussão leve, então estavam otimistas. Só nos restava aguardar que ela acordasse para confirmar se houve algum dano maior. Como Ayla ficaria internada, a designaram para o quarto de observações, liberando a permanência de um acompanhante. Obviamente, todos foram para casa menos a minha pessoa. Inclusive, usei todo o meu arsenal de argumentos persuasivos para convencê-los que esta era a melhor opção. Argumentos tão ridículos, que por pena ou cansaço mesmo, acabaram se convencendo e me deixando por ficar.
A imagem imóvel e pálida do corpo de Ayla sob a cama do hospital, me causou arrepios. Se vê-la deitada no mar do próprio sangue foi assustador, ali era insuportavelmente assombroso. Queria ver sua boca atrevida proferindo suas gracinhas ácidas, ver o revirar típico de seus olhos de deboche, sentir os cutucões irritantes dos seus dedos magros. Nem mesmo a tinta negra tracejando os desenhos aleatórios em seus braços tinha o brilho habitual, pareciam respingos negros de uma tinta aguada qualquer. Amedrontada, me aproximei vacilante de sua cama, tomando-lhe a mão fria entre as minhas tão quentes. Ali longe dos olhos curiosos e questionadores me entreguei ao pranto na mais profunda amargura. O órgão em meu peito latej*v* num medo jamais sentido, nem mesmo a presença sobrenatural de Ylena o havia deixado daquela forma tão apertado. Eu segurava com força parte do meu mundo naquele aperto, por temer senti-lo esvair por entre os dedos para nunca mais voltar.
Fim do capítulo
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