Capitulo IX
Meus olhos ardiam devido à claridade vinda do lado de fora, responsável por terminar de me acordar. A indelicadeza daquela luminosidade passando pelo vidro da sala do loft me causou resmungos contrariados enquanto me levantava indo em direção ao banheiro do primeiro andar. Uma olhada ao redor mostrou que eu era a única acordada, o restante permanecia entregue aos braços de Morpheus. Não sendo o bastante ter sido brutalmente arrancada do maravilhoso mundo dos sonhos, uma dorzinha de cabeça seguida de um leve enjoo veio lembrar a meu corpo o resultado da noite de bebedeira desenfreada, o gosto azedo na boca me rendeu uma careta pelo sabor desagradável.
Já no banheiro, o reflexo do estado degradante no qual me encontrava reforçava o nível baixo que o álcool podia levar uma pessoa. Até poderia dizer que nunca mais voltaria a beber daquele jeito novamente, mas a quem eu queria enganar. Madison era uma péssima influência. Ruiva desgraçada! Durante minha discussão interna, peguei uma das embalagens de escovas de dente que deixávamos ali, para emergências, o estado débil de minhas pernas impossibilitava minha ida ao segundo andar tão somente para escovar os dentes. O vício por café forte já sinalizava sua prioridade. Após ter os dentes escovados, o cabelo desgrenhado preso num coque desleixado e a cara lavada, sigo o tortuoso caminho até a cozinha tentando fazer o mínimo de barulho possível.
Como não tinha garantia de quando as meninas iriam despertar, me ocupei exclusivamente em fazer a preciosa bebida quente. Olhando o maravilhoso líquido escuro caindo lentamente na xícara branca, sou completamente seduzida pelo cheiro inebriante e delicioso exalando no ar. Isso não impediu minha mente de vagar até o sonho com Kiara. Nossa conversa trouxe novas perspectivas. A situação era muito maior do que imaginávamos. Com aquelas informações tínhamos um ponto de partida real, apesar de serem meros fragmentos, ainda assim, muito mais do que tínhamos conseguido até ali.
— Bom dia, meu amorzinho! – cortando minha linha de raciocínio, o alto bocejar de Mads me despertou.
— Bom dia, tem café pronto! – respondi por trás da xícara já em minhas mãos.
— Maravilhosa! – disse pausadamente, passando animada por mim e me dando um beijo estalado no rosto. A aparência de Madison depois da noite anterior era irritantemente impecável, sequer uma olheira a enfeitava. Não sei como me surpreendia, aquela garota tinha o inacreditável dom de ficar plena quando nós, reles mortais, sofriam dos piores efeitos da ressaca.
— As meninas também acordaram? – resmungo ainda meio ranzinza.
— Não. O cheiro do café fez meu estômago roncar e me lembrei dessa delícia que guardei ontem. – disse dando uma mordida generosa num croissant recheado de geleia de morango, outrora escondido na geladeira. Enquanto meu estômago lutava para aceitar o líquido escuro pouco adoçado, o ser superior à minha frente devorava satisfeita outro pedaço da bomba doce com gula.
— Garota, você não é humana! –afirmei bufando estarrecida, e a maldita ainda piscou sorrindo debochada ciente da situação precária do meu estômago.
Algum tempo depois, entre a brava luta contra meu enjoo e o sorrisinho triunfante da ruiva, as outras duas garotas se juntaram a nós na pequena cozinha. Assim como eu, elas também sofriam indignadas as consequências de nossa aventura da noite anterior. Depois do breve café, elas então voltaram ao Château, já que mais tarde daquele mesmo dia voltaríamos para o segundo dia do festival. Aproveitando o tempo que teríamos até nos reencontrarmos, contei a Mads sobre o sonho, deixando-a perplexa.
— Caralh*! Então uma vadia amaldiçoada está assombrando por aí com um relógio velho e de quebra prendeu a princesa na torre! Bizarro!
— Mais ou menos isso! Espera, o quê? Que porr* é essa de princesa? – podia sentir meu rosto se contorcer em confusão.
— O quê que tem demais!? Essa história é tão maluca que está parecendo conto de fadas, mas com um enredo mais sinistro. – deu de ombros.
— Madison só cala a boca e foca, ok? – falei cortando sua divagação fantasiosa. – Precisamos saber sobre essa Ylena. Acredito que por ela, vamos ter mais informações sobre o relógio e um jeito de desvincular Kiara dele.
— Pode ser que na biblioteca pública tenha alguma informação sobre relíquias antigas ou o registro de possíveis moradoras com esse nome. Você olhou melhor o relógio? Talvez haja algum detalhe que possa nos ajudar a identificá-lo. – sugeriu inocente.
— Não o toquei depois da primeira vez, e considerando o que sabemos, qualquer um que tenha contato direto com ele pode ser influenciado, não acho seguro que cheguemos muito perto dele. – decreto incisiva.
— Ok! Nada de tocar na relíquia da morte. Podemos ir à biblioteca amanhã, passo na cafeteria e te busco! – após nossa conversa, tomando todos os cuidados possíveis para não tocar o relógio, o guardo dentro de uma caixa de veludo negro escondendo-o o mais longe possível de nós duas.
Horas depois, enquanto me encontrava sentada na beirada da cama de Madison, esperando-a terminar de se arrumar para seguirmos até a praça e encontrarmos as meninas, conversávamos sobre a revelação da identidade da garota misteriosa dos meus sonhos. Minha amiga estava tão surpresa quanto eu havia ficado, e não conseguia parar de confabular o porquê dos meus sonhos serem com Kiara Santiago, diferentemente dos de Caleb, que se bem me lembro sequer a mencionou.
— Você vai contar para as meninas? – sua pergunta sai meio abafada devido ao gloss deslizando em sua boca.
— Não quero envolver mais ninguém nessa história. – respondi num sussurro pesaroso enquanto a observava fazer caretas engraçadas ao se maquiar. Vi seus olhos voltarem-se aos meus através do espelho, em clara cumplicidade. Porém vendo meu evidente desconforto, Mads se adiantou em mudar o rumo da conversa antes que meu lado trevoso resolvesse dar as caras novamente.
— Sabe, parando para pensar, nós não vimos sequer uma foto dela. Então vai, me conta… como ela é? – disse numa animação conspiratória.
Inquieta, me levantei indo até à janela do quarto, perdendo meus olhos no padrão das cores das folhas das árvores lá fora. Meus pensamentos se voltaram a Kiara, especialmente em seus intensos olhos castanhos. Ou como diria um escritor bem conhecido, olhos que o diabo lhe deu, de cigana oblíqua e dissimulada…olhos de ressaca.
— Nossa! – Madison exclamou tão alto que acabou me assustando.
— O quê? – perguntei virando-me lentamente em sua direção cruzando meus braços, desajeitada. Podia sentir meu rosto queimando de vergonha pela possibilidade dela ter percebido como a beleza da garota dos sonhos me afetava.
— Nada! – desconversou, mas aquele sorriso malicioso no rosto dela entregava seus pensamentos. – Se ela se parecer só um pouco com as irmãs, deve ser linda. – ignorando seu comentário cheio de segunda intenções, suspirei nervosa, aproveitando para desconversar e tentar disfarçar o quão sem graça estava.
— Na verdade, elas não se parecem muito.
— Como não? Ella e Olívia tem muito uma da outra, fisicamente pelo menos. – perguntou curiosa, não rendendo a possível provocação que faria, para meu alívio. Comemorei aquilo, silenciosamente.
— Ah, é verdade. Mas o tom de pele dela é mais vibrante, quase dourado, não sei se o fator sonho influencia em algo. Só posso dizer, que é essa a impressão que tenho. – falei dando de ombros. Aquele assunto estava me causando uma inquietação crescente, já podia sentir minha pele ardendo pelo constrangimento. Pensar em Kiara revirava algo desconhecido dentro de mim. Não querendo pensar muito sobre o que poderia ser aquilo, simplesmente atribuí aquelas sensações ao teor sinistro que nos cercava.
— É só o que tem a dizer? Por Deus, você é péssima com descrições Ayla! – bufou insatisfeita.
— O que queria que eu dissesse?
— Deixa para lá! Vou pedir uma foto para Ella hoje. Bom que confirmarmos se é ela mesmo nos sonhos e não a dona da relíquia da morte te enganando.
— Jura, Mads? Trabalhamos com referências agora?! – cutuquei-a sarcástica.
— Idiota! – queixou-se revirando os olhos em impaciência, me dando as costas retomando sua longa e dolorosa arrumação. Frustrada com sua demora, segui até a sala jogando o corpo sobre o sofá, bufando. Para minha felicidade, saímos pouco tempo depois e assim como na noite anterior aproveitamos ao máximo aquela também.
Fim do capítulo
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