Capitulo VIII
Várias tortas depois, Liv e eu voltamos até as meninas e assistimos alguns dos shows. Ao fim do evento, minhas animadas amigas resolveram que tomar uma bebida mais forte que as batidas sem álcool da barraca de caipifruta seria uma boa ideia, assim partimos para Midd. O resultado disso? Quatro jovens embriagadas cambaleando por entre as ruas da cidade durante a madrugada. Definitivamente, eu estava precisando disso.
—Car dans mes yeux, ça se voit. La fièvre dans les yeux, oui, ça se voit. – a cada passo a voz de Madison podia ser ouvida nitidamente por toda a vizinhança. A maldita ruiva estava cantando a animada música num francês embolado. Alguns vizinhos nada satisfeitos com a cantoria embriagada apareciam em suas janelas gritando impropérios direcionados a ela que graciosamente — ou nem tanto — fazia questão de cantar ainda mais alto lhes mostrando o dedo do meio exultante de sua rebeldia, enquanto o restante de nós, ria da interação nada apropriada.
— Mads, acho melhor você parar. – Olivia falou tentando parar de rir, sendo totalmente ignorada, pois a garota ruiva continuou a cantar num tom ainda mais estridente.
— Desse jeito vamos tomar um banho de água fria. Sossega! – Prevendo o desastre irreversível com os vizinhos, trouxe Madison para perto olhando em seus olhos desfocados, debilmente tentando manter uma expressão séria ao lhe repreender.
— Tá, tá bom, parei, parei! Que povo chato da porr*. Não pode curtir um porre nessa cidade! – seu jeito nada sóbrio era bastante engraçado, me impedindo de manter a pose brava por muito tempo, aquela situação junto a nosso estado igualmente ébrio também não ajudava. Entre gargalhadas e tropeços chegamos intactas no apartamento, e instantes depois todas às quatro estavam deitadas nos colchões sobre o chão da sala, capotando num sono profundo.
"Não me lembro de como fui parar na sacada do loft, mas me encontrava de pé rente a grade de proteção que a cercava. Como sempre a vista noturna logo ganhou minha atenção, dissipando minha confusão. Meus olhos captaram o brilho incandescente das inúmeras estrelas que se agarravam ao vultoso manto negro, espelhando a infinidade luminosa do universo. Por algum motivo elas pareciam estar brilhando mais que o normal, sobrepondo a morbidez silenciosa que comumente as acompanhava, descarregando sua potência cintilante.
— É linda a vista daqui! – o ar me fugiu tão de repente quanto aquela voz se fez presente ao meu lado — se é que era possível perder o fôlego em sonho, porque sim, sabia que estava sonhando. Aquele timbre familiar, mesmo que o tenha escutado uma única vez, causou efeitos assim como sua presença, descarregando aquela energia vibrante. Tomada de ansiedade, virei o rosto de lado encontrando o dela direcionado às estrelas. A garota morena me visitava novamente, porém, não estávamos cercadas das costumeiras flores negras e do velho casarão – o que agradeci silenciosamente, uma mudança muito bem-vinda de cenário.
Apesar da tranquilidade tão avessa de nossos outros encontros, a inquietação por desejar saber mais dela e em como se envolvia naquela história ainda se fazia presente. Entretanto, algo em sua feição me travou, apesar do pequeno sorriso que carregava, havia um toque de tristeza, exigindo toda uma delicadeza para abordá-la.
— Me desculpe, mas… quem é você? – incerta, tentei iniciar o diálogo, suavemente. Diante minha pergunta, seus tempestivos olhos castanhos voltaram-se para mim, refletindo a deslumbrante galáxia particular contida nos desenhos de sua íris avelã. Um olhar jamais havia me impressionado como o dela. Os contornos de seu rosto davam o contraste ainda maior à sua expressão altiva. Ela conversava através dos olhos.
— Prazer, me chamo Kiara! – apresentou-se com um sorriso leve, destoando totalmente da aura sombria que outrora lhe cercara. O nome conhecido destacou-se em minha mente, o mesmo nome que vinha ouvindo durante dias das garotas Santiago. Seriam a mesma pessoa? Parecia um questionamento ridículo diante tantos acontecimentos interligados, que anulavam a palavra coincidência.
— Ahn....Talvez vá parecer estranho, mas qual seu sobrenome? – pedi incerta, implorando aos céus para que ela não confirmasse minha suspeita. Aquela história já estava complicada demais para ter mais uma pessoa envolvida.
— Não tem problema. – seu sorriso se tornou divertido. – É Santiago.
— Wow! É você mesmo. – exclamei espantada.
— Parece que sim. – disse, me olhando desconfiada com o cenho franzido. – Do que estamos falando mesmo? – questionou rindo sem graça e ainda meio confusa.
— Como isso é possível? – divaguei ignorando-a. –Não nos conhecemos! Como posso estar sonhando com você?
— Hum… na verdade, eu conheço você. – disse envergonhada.
— O quê?
— Longa história... Não temos tempo para isso. Você precisa saber sobre coisas mais importantes, cariño! – sentenciou, antes que eu insistisse em entender melhor aquela história.
— Do que está falando? – se aproximou tocando delicadamente o meu rosto. Como da primeira vez uma corrente elétrica invadiu meu corpo na mesma hora, aquecendo familiarmente o local tocado, fazendo o calor agradável se espalhar depressa. Surpresa, levei minha mão sob a sua, sentindo a energia acolhedora emanando dela.
— O que houve com Caleb… eu sinto muito! A força sobrenatural por trás do relógio o influenciou a fazer aquilo. Aconteceu quase a mesma coisa comigo e agora estou presa a ele. Temos que impedi-lo de fazer o mesmo com você. Então, por favor, tem que se livrar dele! – suplicou.
— Então, Caleb também está preso a ele? – Kiara, me olhou receosa, quase contemplativa, como se ponderasse se deveria ou não me responder. O crispar nervoso de seus lábios carnudos, denunciou sua relutância.
— Nossa situação é diferente, Ayla. Sei que não é o que quer ouvir. – disse vacilante ao se afastar delicadamente. – Quando Ylena tentou me matar, minha irmã conseguiu interferir, mas de alguma forma trocamos de lugar. Mesmo estando em meu corpo, ela não consegue usá-lo completamente, para isso precisa do relógio, para acessar seu poder real. – o sabor insosso daquela verdade desagradável preencheu minha boca. Eu realmente havia perdido Caleb.
— Quem é Ylena? – minha voz soou embargada. Precisava mudar de assunto para desfazer o nó doloroso em minha garganta. Não sei se Kiara percebeu, mas agradeci por ela continuar a falar.
— Ela está ligada ao relógio assim como eu, só que de uma forma muito mais profunda. Quase como se fizesse parte dele. Não sei muito, ela me bloqueia todas as vezes que tento descobrir. – conta frustrada.
— Meu Deus, tudo isso é muita loucura!
— Eu sei, por isso preciso que dê um jeito no relógio, para mais ninguém se machucar. Nós precisamos pará-la.
— Não posso fazer isso! – rebati, rapidamente. Ela não estava sugerindo o que eu achava que estava, não é?!
— Não só pode como deve! – insistiu. – Você está em perigo, assim como qualquer pessoa ao alcance dele também estará.
— Impressionante! – rugi indignada vendo seu rosto permanecer impassível. – Você não pode me contar que está presa a um relógio, com uma assassina se passando por você, que inclusive matou o meu namorado, e simplesmente pedir que destrua o único meio de resolver tudo isso. Eu vou te ajudar, e não será desse jeito!
— Não, você não vai! – ela se afastou bufando impaciente, sua expressão antes pacífica deu lugar a um franzir intenso entre as sobrancelhas, os braços cruzados imponham sua insatisfação diante minha resistência.
— Kiara, não pude ajudar Caleb. Não me peça para não de te ajudar! – rogo a ela, penosamente.
— Você não entende! Não posso deixar que se arrisque dessa forma! – exala desalento. Ela toma um minuto ou dois e então solta grosseira. – Fora que não serei usada como desculpa para uma possível vingança. Sinto muito que o tenha perdido, mas infelizmente o que está feito, está feito!
Suas palavras me ofenderam de tal maneira que por um instante fiquei sem saber como explicar que não era somente por ele, como também por Olivia e Ella. Ia além do meu laço com Caleb e as irmãs Santiago, era o certo a se fazer.
— Não é só por ele! Há pessoas que te amam e que são importantes para mim. Quero poder dar isso a vocês e para isso preciso te ajudar! – insisto trincando os dentes pela sua teimosia.
— Isso tem que acabar! – decreta.
— Olha só, enfim concordamos em alguma coisa! – que garota teimosa, emendei mentalmente, restringindo aquele pensamento apenas para mim. Meus olhos reviraram por toda sua persistência. A garota contrariada, balançou a cabeça em negativa dando um riso incrédulo, enquanto apertava os braços ao redor do próprio corpo tentando conter a chateação por minhas palavras. Sabia que estava correndo perigo com esta decisão, mas não podia escolher não ajudá-la, me colocar no lugar dela fora inevitável. Perder o controle da própria vida por conta de um ser sobrenatural maligno, sequer podia imaginar o tamanho da tortura e justamente por isso não conseguia acreditar que ao em vez de pedir ajuda para si mesma, ela simplesmente renunciou a possibilidade em prol de salvar qualquer pessoa que tivesse o azar de cruzar o caminho daquele maldito relógio.
— Não quer sua vida de volta? – soltei aquelas palavras demonstrando toda minha indignação com a insistência em se sacrificar daquele jeito. Ela se recostou na grade do parapeito, mirando os pequenos pontinhos brilhantes no céu novamente, seu gesto durou pouco, logo seus olhos estavam de volta em minha direção, o semblante transbordando resignação e angústia.
— “Nada em mim, foi covarde, nem mesmo as desistências: desistir, ainda que não pareça, foi meu grande gesto de coragem.” – o poder daquelas palavras serviu para incendiar ainda mais minha indignação, me recusava acreditar que ela se sujeitaria a uma atitude tão destrutiva. Não, eu não permitiria que a parte vil daquela história saísse ganhando mais uma vez. Eu a mostraria que valia a pena lutar.
— “Nossa maior fraqueza está em desistir. O caminho mais certo de vencer é tentar mais uma vez.” – o tom enérgico e decidido a surpreendeu, meus olhos queimando em convicção afirmavam a força da minha decisão em fazermos o necessário para que ela pudesse voltar, e não dando brecha para o contrário. Aproximei-me tomando a liberdade de abraçá-la, querendo lhe retribuir o conforto que ela me proporcionara com um simples carinho em meu rosto. Sua postura altiva se desfez tão fácil, quando se aconchegou em meus braços, repousando o rosto sobre meu ombro direito.
— Seja a mulher sagaz que as pessoas que te amam, acreditam que seja! – permanecendo dentro de meu abraço, ela afastou o rosto prendendo seus olhos aos meus, a suavidade vinda de sua respiração balançou meu coração, através do seu olhar repleto de gratidão. Havíamos entrado num acordo silencioso.
— Obrigada por ser mais do imaginei! – ela disse sorrindo.
Com a imagem daquele sorriso agradecido, fui tragada de volta à realidade.”
Fim do capítulo
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