Capitulo VII
Minha desolação abrandou-se dando lugar à impetuosa vontade em dar fim àquele mistério. Ao contrário da última semana, os dias subsequentes voltaram a sua letargia cotidiana, e, apesar de meus esforços para obter mais informações se mostrarem escassos, aos poucos minha vida ia voltando a normalidade — para a alegria de meus pais e minha completa frustração. Não me dava gosto ter interações sociais precárias, mas minha aura nada afável andava espantando até os mais inconvenientes habitantes de São Valeriano, me livrando das condolências rasas e suas curiosidades invasivas — o que olhando pelo lado bom era perfeito.
Em contrapartida, os preparativos para o primeiro dia do festival do equinócio de primavera estavam a todo vapor, visto que em respeito a recente perda da família mais querida da cidade adiaram o início das festividades o quanto puderam. Os cidadãos de São Valeriano estavam animados por poderem, finalmente, voltar às suas programações normais. A cidade havia retomado a rotina. Parecia o certo para eles — vale dizer que nada estava certo dentro de mim. Entretanto, fingir se mostrou necessário já que me afundar em melancolia não seria mais uma opção, pelo menos não com Madison e as irmãs Santiago.
Tendo isso em mente, as três garotas me aguardavam do lado de fora da cafeteria para irmos juntas à Praça Lavínia Hotth, onde ocorria o primeiro dia do festival. Meus pais, ansiosos com meu retorno do mundo fúnebre do luto, me liberaram mais cedo naquele dia. Minhas amigas estavam animadas, mesmo se contendo em solidariedade a minha perda, e por mais que ficasse tocada pela consideração, sabia que não podia acabar com aquela pequena amostra de diversão à nossa disposição. Então lá estávamos, quatro garotas junto à multidão, entre as mais variadas tendas desde comidas à bijuterias. Ao longe algum artista local tocava alguma música animada, servindo de trilha sonora para o evento. A decoração estava bem criativa, trabalhada nas mais diversas cores e formas, cada detalhe disposto transparecia o cuidado e dedicação dos moradores em compor o melhor cenário para a festividade, nos transportando para um clima alegre e acolhedor. Pude ver toda essa energia brilhando nos olhos de minhas amigas. Em Mads a satisfação de reencontro com à terra natal e nas garotas Santiago o deslumbramento pelo novo. Mesmo relutante, vê-las tão bem em meio àquela animação me fez dar uma trégua dos sentimentos sombrios e me permitir aproveitar aquele momento. Também seria o que Cal gostaria que eu fizesse.
— Hey! Meninas, o que acharam? – Olívia chamou nossa atenção, nos mostrando um tipo de trança colorida feita numa das tendas próximas.
— Ah meu Deus, Liv! – Ella exasperou surpresa pelas cores marcantes que sua irmã havia escolhido para o penteado bem elaborado.
— Você está aparecendo um arco-íris! – Mads disparou divertida, gargalhando alto o suficiente para atrair os olhares de algumas pessoas ao nosso redor, a fazendo se esconder de vergonha pela atenção indesejada daqueles estranhos, enquanto eu apenas sorria comedida.
— Porr*, Madison! – Liv xingou entre dentes, enquanto todas continuávamos rindo de sua cara envergonhada. Mais um pouco e ela faria um buraco no chão para se esconder, tinha quase certeza.
— Não fica assim vai, Liv! Ficou bonito, ok? Mads que é palhaça demais! – digo tentando tranquilizá-la.
— Ah, pronto, puxa saco! – minha amiga diz logo em seguida dando língua a nós duas. – Vem Ella, quero ver o que tem ali! – completa ao passar seu braço pelo da outra garota a arrastando para a tenda à nossa frente, sem dar tempo dela ao menos responder se queria. Eu e Olívia, nos entreolhamos sorrindo, diante a atitude pouco madura de nossa amiga, e as seguimos devagar.
Mais tarde naquele dia, acabamos nos sentando próximas ao palco montado para os artistas locais que toparam se aventurar, podia-se ver instrumentos dispostos por ali para os corajosos em mostrar sua música. Entretanto, não se ouvia o som dos acordes ou voz se arriscando em letras conhecidas naquele momento. Como plano de fundo, os gritos alegres das crianças correndo felizes se fazia presente junto ao farfalhar discreto das folhas embaladas pela brisa, as conversas animadas das pessoas ao nosso redor e o gotejar incessante da fonte no centro da praça. A vida se fazia presente em cada um desses detalhes me fazendo chegar à conclusão de que, ainda que haja dias nebulosos a vida não para e nem toda mágoa duraria para sempre. Estar em meio a isso tudo, me fazia pensar em Caleb. Podia sentir parte dele comigo estando ali. Era estranho pensar, mas ele se fazia presente em cada detalhe daquele festival, fosse por ser o evento que ele mais gostava, ou pela bagunça que fazia em cada tenda que já conhecia de cor. Ainda sentia a dor junto àquela saudade esmagadora, mas também havia a felicidade reconfortante de ter compartilhado daquelas lembranças. O havia perdido fisicamente, mas agora que a pesada névoa da perda ia se desfazendo lentamente, compreendia que ele jazia em mim, e me deixar afundar na maldita depressão do luto não seria justo com a pessoa que ele havia sido. Ele jamais seria apagado de mim, essa era a verdade! Era hora de deixá-lo ir da melhor forma possível.
— Aly, tudo bem? – a voz suave e o toque delicado da mão de Lív em meu ombro, atraíram minha atenção para sua forma delicada se sentando ao meu lado. Trazia consigo dois copos de suco de amora equilibrados em sua mão livre, cortesia de uma das tendas, estendendo em minha direção, que prontamente aceitei.
— Ahn… está sim! Obrigada!
— Tem certeza? Parecia estar com a cabeça longe!
— Ah! Não é nada demais. – tentei desconversar sorrindo fracamente, não queria acabar com o clima alegre de ninguém naquele dia.
— Hum…estava pensando em Caleb? – questionou cuidadosa. O silêncio que pairou entre nós, foi um pouco desconfortável, tanto que não mantive o contato visual depois disso. Não sabia se podia falar sobre aquele assunto sem evitar os demais acontecimentos ligados a ele, principalmente pela possibilidade de sua atual casa possuir alguma conexão com aquilo tudo. Porém não queria soar indelicada diante sua genuína preocupação.
— Sim…– concordo, perdendo meus olhos pelas pessoas que passavam à nossa frente.
— Se não se sentir confortável, podemos não falar sobre. – antes que eu pudesse falar qualquer outra coisa, suas palavras gentis me cortaram.
— Não…. Ahn …. Tudo bem!
— Sabe, Kiara adorava esse festival.
— Sério? – ambas rimos do meu jeito exagerado, não era todo dia que elas falavam da irmã mais velha. Então a vi assentir, ainda sorrindo. – Caleb também. Era a época do ano que ele mais gostava, se estivesse aqui estaria deitado reclamando por todas as tortas que teria comido no stand da senhora Garcia. – sorri com a lembrança. Era fácil imaginar o garoto guloso de 1,85 m jogado pela grama com a barriga estufada, esse era Cal.
— Kiara gostava das músicas dos artistas locais, até planejava tocar aqui em algum momento. – compartilhou.
— O que ela tocava?
— Piano. Mantemos o dela lá no Château, não deixei que eles se desfizessem dele. – Liv tomou fôlego antes de continuar. – Depois do que aconteceu era meio que um pedaço real dela, sabe?! Me pareceu errado ajudar a apagar quem ela foi sendo que ela está bem ali, mesmo que distante! – seu suspiro saudoso trouxe um discreto sorriso cúmplice a meus lábios.
Eu entendia de certa forma o que Olívia sentia, Caleb ocupava boa parte da minha vida, e não tê-lo me desnorteava a ponto de crer que não seria possível seguir sem essa parte. Foi então que percebi o que Olivia queria me mostrar. Ainda que não o tivéssemos da maneira como gostaríamos, eram nas lembranças boas que tínhamos que nos agarrar.
— Obrigada, Liv. – encostei minha cabeça em seu ombro meio desajeitada. Lágrimas teimosas escorregaram pelo meu rosto, lavando aquele sentimento pesado que vinha me acompanhando, trazendo consigo um alívio imensurável. Levantei meu rosto, e as mesmas lágrimas também banhavam o rosto dela. Sem que esperasse, uma ideia surgiu, e sorrindo arteira me a levantei estendendo a mão para a garota, num convite implícito.
— Vem, hora de comermos algumas tortas. – o sorriso aberto e brilhante que se abriu no rosto dela encheu meu coração de ternura. Nós duas havíamos conseguido uma espécie de conforto. Partimos sobre os protestos confusos das outras garotas que ficaram para trás, e seguimos sorrindo por entre as pessoas na praça, indo até as famosas tortas da senhora Garcia.
Fim do capítulo
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