Capitulo VI
Não existem palavras suficientes, ou capazes de descrever a completude da dor da perda. Existem pessoas que lidam bem com esse sentimento, ou o tão bem quanto lhe é possível, outras não sabem conviver com o sentimento inexorável da ausência. Eu não me encaixava em nenhuma dessas opções, afinal, sentia que parte de mim havia morrido naquela noite com Caleb e minha alma apenas esquecera de largar a carcaça a qual estava presa. A verdade é que o sofrimento não me vestia nada bem e, infelizmente, era o único que me restara.
Completavam sete dias após a tragédia, uma semana do espetáculo macabro dirigido pelas deidades responsáveis em dar fim a nossas miseráveis vidas. Aproximadamente 168 horas desde que presenciei o inimaginável acontecer diante meus olhos sem poder fazer nada além de assistir uma parte especial sendo arrancada de mim. Não satisfeita com sua tortura bárbara, a vida decidiu me presentear com a ausência dos pesadelos e ao fechar meus olhos não vinha um sonho sequer, nem bom, nem ruim, sem Château, sem garota misteriosa. Absolutamente nada. Fui amaldiçoada ao vazio. Quanta ironia!
Durante este tempo, não emiti uma palavra sequer, abracei o silêncio como a um amante querido, a melancolia me beijava a face dando bom dia, bem como também vinha desejar boa noite, me mantendo imersa entre as lembranças boas e os acontecimentos que nos levaram até aquela fatídica noite. Meu estado de espírito não estava em boas condições para conversar com os policiais, então Madison o fez por nós duas. Naquela noite tinha apenas as garotas Santiago na casa, no entanto todas possuíam álibis justificáveis para o fato de não terem ouvido toda a confusão que fizemos do lado de fora. Devido a isso e as demais circunstâncias apuradas, foi declarado como suicídio.
Sequer consigo pensar nesta palavra sem sentir repulsa.
Eles não conheciam Caleb, não sabiam o que vínhamos passando para simplesmente dizer que ele escolheu nos deixar, quando tenho certeza de que ele não o fez! Todos prestaram suas condolências no dia do enterro, todos aceitaram aquela sentença absurda de que Caleb pulou da torre do Château por livre e espontânea vontade, todos deram um ponto final naquela história, menos eu! Não quando o vi sendo arrancado de nossas vidas sem qualquer misericórdia, sua doce existência ceifada com a morte precoce.
“Todo domingo, a família Monterraz se reunia em agradecimento a mais uma semana que se encerrava e a dádiva de outra que logo se iniciaria, e como nos últimos meses, lá estava eu, aproveitando mais um dia ao lado daquela família tão festiva e animada! Não que a minha não fosse, mas eles com certeza superavam qualquer outra
Antes de o almoço ser servido, eu e as irmãs de Cal, Samira e Évora, conversávamos sentadas nas cadeiras próximas à pequena piscina, de lá podíamos ver Caleb correndo animado pelo grande espaço nos fundos da casa, sendo perseguido pelos seus outros dois irmãos, Armand e Tiago. Seus cabelos caiam em pequenas cascatas castanhas molhadas devido à brincadeira que acontecia entre eles. A guerra d'água nos alcançou em poucos instantes, e, para infelicidade de todos acabei conseguindo me esquivar a tempo, antes de que Tiago pudesse me acertar e molhar minha roupa, o que não foi o caso das outras duas ao meu lado, que, vítimas do susto receberam os jatos de seus irmãos as molhando completamente.
Para minha falta de sorte, Caleb tomou minha estratégica fuga como sua missão pessoal, me perseguindo por todo o jardim. A cada passo que eu conseguia dar para longe de sua arma cheia de água gelada vinda da piscina sua frustração ficava visível, o motivando ainda mais. Sua perseguição havia ganhado plateia, podíamos ouvi-los incentivando meu namorado, nos causando risos. Eu me sentia satisfeita por estar conseguindo desviar da maioria dos jatos daquela arminha de plástico, ainda que meus braços e rosto sofressem pequenos tiros d'água de raspão. No entanto, para o desagrado geral, minha roupa continuava intacta.
— Uma hora você vai cansar e eu vou te acertar! – o garoto revelou divertido, quando me coloquei escondida atrás de uma das pilastras da varanda de sua casa, dificultando sua mira.
— Você pode até estar certo, mas não será assim tão fácil. Vai ter que se esforçar mais um pouco, garotão! – diante minha resposta atrevida, um largo sorriso incrédulo tomou a face de Caleb, que logo se desfez quando, tomado de concentração, partiu correndo em minha direção. Involuntariamente, corri novamente em direção ao gramado próximo à piscina, e quando dei por mim, longos braços rígidos rodearam a cintura me mantendo presa sob seu aperto firme. O familiar perfume amadeirado misturado ao frescor da água se fez presente quando tomada pelo susto inspirei profundamente. O contato de suas roupas ensopadas, umedeceu minhas costas assim como os pingos gélidos do seu cabelo arrepiaram minha pele por onde passavam.
— Te peguei! – certificou-se o garoto atrevido colando seu rosto ao meu, molhando ainda mais meu pescoço com seu cabelo encharcado. Eu podia sentir seu sorriso triunfante por conseguir finalmente me alcançar. Aceitando que a brincadeira acabou, me virei em sua direção sorrindo rendida, aproveitando nossa proximidade para passar meus braços sob os seus ombros largos, me entregando a seu abraço molhado, enfim dando-me por vencida. Em seu lindo rosto, um sorriso vitorioso, tão radiante e alegre que foi impossível não espelhar. Sem delongas, o beijei, tentando capturar todo sabor da aquela felicidade, os incontáveis efeitos da sua boca na minha se espalharam rápidos, tão contrária a lentidão dos nossos movimentos. O som de gargalhadas, assovios e palmas nos interromperam, nos fazendo olhar envergonhados para os familiares dele que se divertiam com a cena boba de nossa brincadeira.
Naquele instante compartilhávamos a felicidade dos atos simples da vida, da sagacidade inocente oculta na espontaneidade.”
Um tilintar contínuo cortou minha lembrança, fazendo com que minha atenção se desviasse em direção a fonte do barulho intrometido. Em cima da cômoda do meu quarto jazia o relógio de bolso mostrando o passar lento das horas. Madison o havia colocado ali na noite passada, depois de os policiais o devolverem, já que a mãe de Cal, Amaya, os contou que me pertencia. Segundo Mads, o relógio estava sobre suas mãos quando o encontraram estirado no jardim, depois disso não tive coragem de o tocar, tão pouco quis me livrar dele. Apesar de sua origem duvidosa, aquele era o último presente que ele havia me dado, que ele havia tocado, uma pequena parte palpável do que restou dele.
Duas batidas na porta se fizeram audíveis, e como esperado o rosto de minha amiga apareceu pela fresta. Suas visitas a meu quarto se tornaram regulares, o medo de um possível surto era real para as pessoas ao meu redor. Afinal eu havia perdido alguém importante, parecia-lhes justificável tal atitude inconsequente. Um cuidado previsível. Eu sabia lidar racionalmente com a dor da perda, não seria a primeira vez que alguém que eu amava deixara este mundo, na verdade, eu estava inconformada! Desta vez não foi premeditado, ou por causas naturais, não, a vida de alguém que não tinha motivo algum para deixar este mundo tão precocemente foi roubada, seu fio de vida no tear do destino não foi cortado porque era chegada a hora, mas sim rompido atrozmente por uma torpeza inimaginável.
Assim como o meu, o rosto de Madison transparecia o impacto do capítulo assombroso vivido por nós duas na semana anterior. Apesar de não conhecer muito bem Caleb, minha amiga refletia todo o meu sofrimento e desolação, em cumplicidade. Em outro momento, me empenharia a não transparecer meu incômodo para não afetá-la, mas não me restava nada naquele momento senão dor e raiva, tornando tal tarefa severamente difícil de ser feita.
— Sei que o silêncio como auto castigo, nesse momento, parece a melhor das opções, mas você tem que reagir Ayla! –elevei meus olhos novamente à janela do peitoril onde estava sentada. Aquele lugar vinha sendo meu ponto fixo todas as noites. A visão do céu despejando suas lágrimas grossas por entre as pesadas nuvens tingidas em cinza escuro e os relâmpagos cortando o céu como chicotes incandescentes manifestando todo o seu furor, parecia espelhar perfeitamente o que se passava dentro do meu coração, numa performance impecável de fúria.
— Há algo de especial na chuva, não concorda? –suspiro cansada, ainda olhando pela janela. – Principalmente sobre a tempestade... Os sons dela soam como música para mim... Adoro observá-la, sua impetuosidade me acalma. É como se mostrasse que nada pode a dominar, ainda assim, nós resistimos bravamente como podemos, mas de repente seu repelo cessa! Não porque queremos, mas sim, pela própria vontade dela. – meus olhos encontraram Mads encostada displicentemente sobre a porta fechada atrás de si. Estava atenta às minhas palavras proferidas em tom baixo, mas audível o suficiente. Suas costas escorregaram com lentidão pela madeira, se sentando ao chão apoiando as mãos sob os joelhos. Ela via através das minhas palavras, me lendo como ninguém mais poderia fazer, tínhamos aquela capacidade de entender os tons implícitos em nossas conversas. Ali não seria diferente.
— Entendi o porquê de gostar dela, sua trilha sonora favorita cala a boca de qualquer um sem esforço! – juntas rimos quando o som vindo do lado de fora agiu soou como uma confirmação irônica ao que ela acabara de falar.
Perdemos algum tempo observando as gotas furiosas batendo contra o vidro da janela do meu quarto, demonstrando sua obstinação a cada rajada furiosa e irrefreável. Pareciam querer transpassar nossa fortaleza frágil de madeira, vidro e concreto. A brisa leve nos alcançava através das frestas da madeira, lambendo nossas peles expostas dissipando a tormenta contida em nossos nervos em frangalhos. Ficamos paradas ali, por incontáveis instantes. Ainda assim, podia sentir a curiosidade insistente vinda dos olhos de Madison pairando sobre mim, de vez ou outra. Sabia que lhe devia uma explicação sobre o que vinha acontecendo, principalmente porque desde a noite no Château e minha súbita reclusão, obviamente não conversamos. Compreendia que ela só havia me dado espaço para digerir minha perda e que meu tempo havia acabado. A curiosidade dela havia vencido. Ela não era uma pessoa paciente, e me admirava muito ter conseguido durar tantos dias, tínhamos um recorde afinal. Ainda sem olhá-la, me esforcei para começar a falar. A tentativa de manter a voz firme fez eu me sentir boba. Talvez contar me faria algum bem, mas não parecia ser uma tarefa fácil, segredos eram facilmente esquecidos quando não compartilhados. O suspiro ruidoso escapou de mim, a conversa nem havia começado e já me sentia cansada. Falar tudo em voz alta deixaria de ser o devaneio criativo exclusivo da minha mente e se tornaria real, e inevitavelmente, eu pareceria uma completa louca.
— Escute até o fim, ok? – a ruiva assentiu complacente, me dando a dose necessária de coragem. – Caleb vinha tendo sonhos que estavam mexendo muito com ele, e de início pensei se tratar apenas daqueles pesadelos que mexem mesmo conosco de tão vívidos. Só que… o que acontecia nos sonhos dele eram semelhantes ao que acontecia nos meus. Ambos estávamos no Château e algo nos puxava até lá. As mesmas sensações, os mesmos detalhes… eram coincidências demais para serem somente sonhos em comum, entende?! E tudo começou com o relógio. – apontei com o queixo o objeto inanimado em cima da cômoda ao lado, vendo Mads olhá-lo e depois voltar sua atenção para mim, incentivando que continuasse. – Acredito que ele meio que desencadeou esses acontecimentos, e de alguma forma afetava mais a Cal do que a mim. Só que não conseguimos descobrir o que tudo isso significava, não, a tempo de impedir o aconteceu.
— Então, todos esses eventos estão conectados ao que houve com Caleb? – questionou, cautelosa.
— Ele não fez aquilo propositalmente, isso eu garanto. –respondi convicta.
— É um pouco surreal para acreditar! – Mads se pôs de pé num ato nervoso, o reflexo da descrença a fazia ajustar os curtos fios de cabelo acobreado inquietamente, os bagunçando mais do que arrumando. Já esperava por reação semelhante, porque assim como ela, eu e Caleb também havíamos surtado diante aquela amedrontadora confusão, a qual fomos arrastados à força.
— As coisas se complicam ainda mais! – zombei amarga.
A ruiva fez uma careta pesadora, andando agitadamente de um lado ao outro na minha frente. Seu visível estado inquieto me fez abraçar os joelhos os trazendo junto ao peito, tentando alcançar um nível aceitável de conforto para continuar a falar.
— O relógio foi vendido por um dos funcionários do casarão, daí o vínculo entre eles. Além disso, segundo os policiais, Cal estava com o relógio, mas ambos decidimos que seria melhor não ficarmos com ele até entendermos tudo. Não entra em minha cabeça o porquê dele o ter consigo convenientemente estando logo naquele lugar.
— Realmente, tudo parece estar mesmo interligado. – confabula.
— Achei ter deixado isso claro no início da conversa, Madison! – retruco meio ácida, pela redundância da sua fala.
— Ok, foi mal. Só é meio difícil admitir que algo assim possa estar acontecendo.
— Eu sei. Estou tão confusa e com tanta raiva. Não era para isso ter acontecido!
— Calma, Aly. Vamos resolver toda essa situação, ok? – tentou apaziguar.
— Não sei se tem alguma solução, Mads. Aliás, nem sei se vai adiantar. Duvido muito que se levar essa história à polícia, por exemplo, seja levada a sério. No mínimo vão alegar estresse pós-traumático, ou na pior das hipóteses serei tratada como louca. – suspiro cansada.
— Não é uma completa mentira, convenhamos! – debochou, claramente tentando quebrar um pouco da tensão, o que só me fez jogar uma das pequenas almofadas do peitoril em resposta a seu sarcasmo natural. Ela tinha a mania de lidar com humor em situações complicadas, naquele ponto éramos parecidas.
— Primeiramente, precisa saber se quer mesmo descobrir o que realmente aconteceu com o Caleb. Você entende, não é Aly? – questionou cautelosa. Em seus olhos percebia sua preocupação.
— Sim! Ou estou certa e algo o fez pular, ou ele pulou por conta própria. Aí só me resta aceitar. – suspirei chateada.
— Saiba que independente do que acontecer estarei ao seu lado. – Mads disse, sentando-se na minha frente e colocando as mãos sobre as minhas em cumplicidade.
— Não é como se você fosse aguentar apenas assistir da plateia! – provoquei.
— Faça me um favor? Vai se foder, garota! – rimos fracamente.
Não queria arrastar ninguém mais para aquela confusão, nem mesmo Madison, mas sabia que sozinha não conseguiria. Algo importante havia sido brutalmente arrancado de mim, e agora sentia que o que estava por vir seria ainda maior do que sequer poderíamos imaginar. Nunca mais seríamos as mesmas, era um fato, e por mais vazia que me sentisse, não me restara outra alternativa além de continuar.
Fim do capítulo
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