CAPITULO LII
CAPITULO CINQUENTA E DOIS
Nara
O tempo parou. Até mesmo minha respiração ficou fraca quando as lobas perceberam o medo em meus olhos, e minha voz falhou quando tentei explicar por que me recusava a atender um pedido feito no desespero. Esther sabia do meu amor e respeito por cada criatura da floresta. Eu jamais colocaria a vida delas em perigo. Nyxs também compartilhava desse amor e respeito, por isso eu não conseguia entender seu pedido.
— Não posso, minha querida. Por mais que você tenha motivos para pedir isso, atear fogo resultaria na morte de todos os animais. Os de grande porte podem escapar, mas os pequeninos morreriam sem ter chance de lutar pela vida.
As guerreiras olhavam para os lados em busca do perigo invisível que todas nós pressentimos. Inaê caminhava pelo perímetro mais distante, ouvidos atentos à nossa conversa.
— Pois então me liberte, ou comece a atear fogo na mata. Começando próximo daqui e se estendendo num círculo de dois quilômetros à nossa direita. Se continuar hesitando, é provável que minha filha morra. — Ela estava realmente apavorada.
— Me diga, o que está acontecendo? O que você vê que nós não vemos?
— Há uma taipan de barriga amarela imensa, já adulta pelo tamanho, a um quilômetro daqui, encarando nossa filha neste momento.
Não foi preciso explicar mais. As lobas que estavam comigo tiveram um vislumbre, como se uma peça de teatro fosse exibida na nossa frente, e vimos como a cobra girava na ponta do rabo, em pé, e olhava para os lados. Parecia um ser de outro mundo, um ser consciente e muito inteligente.
Heloise, Manon, Angel e Inaê ficaram estáticas, encarando a serpente encantadas e com medo. Todas ouviram o comando através da ligação que nos faz únicas e concordaram. Acredito que Iara, do outro lado, também tenha escutado através da sua gêmea e entendido.
— Todos nós vimos, seus escudos estão baixos, as imagens estão fugindo. Erga-os e tente controlar as emoções.
O desespero que Nyxs sentia naquele momento veio direto a mim por nossa ligação. Era como se eu estivesse lá, vivendo tudo ao seu lado. E, devido ao meu vínculo de beta, Esther também sentiu a mesma coisa.
Esther conversava com as filhas, dando ordens enquanto elas aguardavam inquietas e prontas para entrar em combate, mesmo sabendo que correriam o risco de ser picadas pela cobra mais venenosa do mundo.
— Ela está me procurando desde aquela noite em que você achou que ela tinha te visto. Na verdade, ela sentiu o meu cheiro e tem me procurado desde então. — Explicou Nyxs.
— Talvez ela tenha confundido seu cheiro com o da Nana. — Foi a resposta recebida através do laço.
— Ouviu isso, Nalum? Consegue se comunicar com ela, filha? Você também tem o dom de encantar as cobras. — Perguntei apavorada.
— Acho que não tenho mais esse dom, mamãe. Não sinto nada, nem vejo nada. — Respondeu sem dar muita atenção, concentrada no que havia à frente, observando a mata fechada que se estendia.
— Nara, liberte minha neta. Vou fazer um círculo com pó para impedir a cobra de passar. — Antes mesmo de terminar de falar, já estava abrindo o sobretudo. Desta vez, era cinza. Diferente dos anteriores, que variam apenas na cor, este modelo era parecido com essas capas incríveis usadas por espiões em filmes de investigação. No caso de minha beta, servia para esconder todos os seus pós mágicos. A capa era feita inteiramente com fios da aranha striga, uma espécie venenosa de outro reino e foi trazida por Miriam para a confecção de nossas roupas que necessitavam de magia para proteção, desaparecimento e aparição.
Esther misturou dois pós de cor vinho com um cheiro horrível e fez um círculo grande, nos mantendo dentro dele. Eu observava seu trabalho meticuloso e me esforçava para segurar as pernas de Nyxs, que estava impaciente e ameaçava alçar voo.
— Nyxs ainda não sabe controlar o corpo nem as correntes de ar.
— Besteira! Ingrid voa e nunca se perdeu. Sua filha voa e nunca se perdeu também. Asas servem para alguma coisa. Solte-a, Nara. Por favor, antes que se arrependa. — Esther estava começando a perder a paciência, algo que nunca teve. Seu pedido veio carregado de raiva, parecia que ela estava com vontade de me estrangular.
— Nalum está fazendo voos baixos agora. Ingrid voa baixo também e minhas asas não dão sinal de vida. O que está pedindo é uma loucura. — Mesmo sabendo que Esther era capaz de arrancar a neta dos meus braços e libertá-la, eu a mantinha presa. O que não sabia era que se Nyxs continuasse sua transformação eu não seria capaz de prendê-la. Como se prende uma águia que nasce livre e nunca conheceu um cativeiro?
— Solta ela, mamãe. — Nalum pediu, antes de voltar a se dirigir a Nyxs. — Mãe, não vá muito longe. Não quero perder a senhora. Eu não posso ficar longe daquela que escolhi como mãe.
— Me solte, Nara. Filha, eu prometo voltar. Eu sempre vou voltar por você e para você.
Era tudo que eu precisava ouvir. Esther também me olhava, pedindo em silêncio. Contra minha vontade, soltei Nyxs, certa de que estava fazendo a coisa errada. No mesmo instante, uma águia fêmea majestosa e imponente alçou voo, ganhando altura nos céus. Ainda em transformação, via-se com nitidez pernas muito parecidas com as de humanos. A ave, toda prateada com camadas de azul-mar, planava. A certa altura, ela gritou, chamando outros dois que desceram como raios, também aos gritos. Os três pássaros mergulharam no meio da mata, batendo as asas freneticamente e subindo outra vez.
Dava para distinguir Nyxs pelo corpo, com braços e pernas que ainda eram humanos, mas os dedos eram garras cruéis, ao mesmo tempo lindas e mortais.
A luta era violenta entre as aves e a cobra. Cada vez que as aves subiam, traziam penduradas no bico lascas de carne. Estava tão maravilhada com a briga que acontecia no pântano que demorei a perceber que apenas o casal de falcões subiu aos céus e desapareceu entre as nuvens. Não havia sinal da águia de penas prateadas e azuis. Esperei alguns segundos e, quando já estava entrando na mata, ouvi alguém gritando bem próximo.
— Mamãe, eu não consigo me comunicar com ela! Não escuto seu coração, não sinto nada! Tente a senhora pelo laço de vocês! — Nalum gritava, muito distante de onde estávamos, já próxima ao local onde a lama começava.
Sem perceber, ela afirmou que tinha conhecimento do meu laço de parceria com Nyxs. Estava tão preocupada que deixei para pensar nisso depois.
— Conseguiu alguma comunicação com Nyxs, Esther? — Perguntei enquanto caminhava para perto da minha beta. Nesse momento, senti um puxão no fio que nos ligava, como se ela tivesse se desligado.
— O que foi, Nara? Por que essa cara de enterro? Você tomou a decisão correta. Ela deve estar na mata seguindo a cobra.
— Não. Acho que dessa vez fui imprudente. Não sei explicar, mas algo não está correto. Estou inquieta, algo está muito errado. Nyxs não subiu junto com os falcões, e Nalum também não está conseguindo falar com a mãe.
Alguma coisa estava muito errada, mas o que estava fora dos padrões? Eu também não estava conseguindo me comunicar. Tentei sentir o laço que nos unia. Estava lá, esticado e muito forte como uma ponte de aço. Eu podia caminhar até o outro lado, mas havia uma porta de aço blindada que não me deixava entrar. O mais aterrorizante é que não sentia o ambiente, o perfume do local onde ela poderia estar. Era como se Nyxs estivesse presa entre dois mundos. O que estava acontecendo que eu não estava entendendo?
Esther tentava me acalmar, explicando.
— A Manon e Inaê estão na mata caçando a cobra. Pelos gritos do casal de pássaros, já devem ter estraçalhado a serpente.
— Minha preocupação é com a Nyxs. Ela deve estar lá em algum lugar sem poder se comunicar.
— Pois vá procurar. Leve a Nalum junto. Eu vou cobrir o terreno pelo outro lado da mata com as meninas. Tome cuidado, no final da floresta fica o precipício.
— Acho que não vai dar não. Olha quem está vindo lá, mãe. — Todas nós viramos para ver de quem Nalum falava.
— Cacete! Justo agora que não precisamos, ela aparece, ainda mais com essa aí. Não confio na Camile. Calíope, consegue me ouvir?
— Pode falar, Nara.
— Venha cá. Faça uma social com sua amiga, não estou com paciência para aguentar Camile. Mas pegue leve com a Amkaly, ela está passando por transformações. Depois eu explico tudo.
— Social com Amkaly? Sério? Ela não vai mudar nunca, nem mesmo se o mundo estivesse acabando... — Minha irmã reclamou, claramente insatisfeita com a missão. Eu não me importava. No momento, a ruiva era o que menos ocupava meus pensamentos. Mesmo assim, me demorei alguns segundos a observando.
Amkaly estava apreensiva e preocupada com algo, tentando disfarçar da amiga que caminhava ao seu lado, sem perceber. O que estaria acontecendo com a garotinha para ela ficar neste estado? Será que essa caminhada servia para afastar Camile de perto da garota? Ou será que a garota tinha fugido outra vez?
— Mamãe, se quiser, eu posso ficar invisível para saber o que elas estão planejando.
— Não, prefiro que venha comigo para descobrir o que aconteceu com sua mãe e por que ela não subiu com as outras aves.
— Alguém aqui chamou a dupla do fogo? — Iara chegou com os cabelos assanhados e pedaços da roupa queimados, o que mostrava claramente que ela e minha irmã tinham se desentendido. Olhando para Calíope, dava para ver que ela tinha controlado a filha da minha beta. De que maneira, eu ainda iria descobrir.
— Calíope, quero que você lide com aquela dupla que vem acolá. — Apontei virando o rosto para o lado e erguendo um pouco o queixo, gesto seguido pela dupla. Minha irmã se empertigou toda, mostrando claramente o desconforto que seria interagir com a loba vermelha. Isso era outra coisa que teria que descobrir mais tarde, ou melhor, deixar que ela falasse com suas próprias palavras para exorcizar de vez o passado e seguir em frente. Em outra hora. Por agora, eu só queria me embrenhar no mato, e foi o que fiz, sendo seguida por minha filha, que não fez perguntas, apenas caminhou ao meu lado. Nalum trabalhou em uma trança e em seguida prendeu os longos cabelos mechados em um coque no alto da cabeça, escondendo o real tamanho dos fios.
— Nyxs está metade pássaro, metade humana. Ela conseguiu voar para caçar uma taipan dentro da mata, acompanhada por um casal de gaviões, mas desapareceu e não subiu mais. Agora Nara está indo procurar. — Esther explicou para Iara e Calíope, que estavam mais distantes, cobrindo o perímetro, e não haviam presenciado a metamorfose da sobrinha.
— Ouvimos uma boa parte do que está acontecendo aqui. O que a senhora vai fazer com a mãe?
— Vou cobrir o lado norte da mata por fora. Ingrid vai por dentro. Inaê e Manon já estão à procura, e vocês vão ficar para fazer social com a dupla.
Silêncio se instalou e eu sabia que minha beta já tinha começado sua busca. Sem dúvida, ela tinha se coberto com o pó da invisibilidade e também o jogado sobre as garotas antes de ir para o outro lado. Eu continuava na busca de pistas, como vegetação amassada, arrancada ou pisoteada, ou qualquer coisa que demonstrasse ter ocorrido uma luta.
Mais distante, vi muitos sapos grandes e pequenos em fuga, indo direto para a lagoa. Isso só queria dizer uma coisa: tinha cobra por perto.
— Filha, olha! — Chamei Nalum, que estava muitos passos à minha frente. Quando tive sua atenção, mostrei o que despertou meu interesse. — Veja ali daquele lado, os sapos. Eles estão fugindo de algo. Vamos descobrir o que os está assustando.
— Ou eles estão fugindo de algum predador, ou atearam fogo na mata e o calor excessivo os expulsou em busca de água para hidratar a pele antes que resseque. — Nalum tocou no solo, procurando sentir o calor do fogo.
Uma vez ganhei tatuagens de runas nas mãos com esse poder, que foi transmitido no sangue da minha filha quando ela foi gerada. Nalum podia sentir qualquer tipo de calor. Ela e as outras garotas herdaram esses dons que antes tínhamos somente através de runas.
— Notou algo estranho, filha?
— Não, mamãe, nada. Está tudo muito normal.
— Normal até demais. Não escuto o vento e tampouco o farfalhar das árvores. A mata está silenciosa, isso acontece quando algo assusta os animais.
— Vou ficar invisível e me teletransportar. Fique aqui, mãe, vou tentar descobrir do que eles estão fugindo.
Assim que Nalum sumiu, foi a minha vez de me transformar em loba e sentir os cheiros.
Fim do capítulo
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