CAPITULO L
CAPÍTULO CINQUENTA
Como se tivesse lendo meus pensamentos. Iara, sorria jogando água com a mão em concha, a água salgada caiu dentro dos meus olhos ardendo como brasas, foi assim que nadamos até a praia onde Esther nos aguardava impaciente
— Algum sinal da Nara? — Perguntou assim que chegamos, sem um pingo de paciência.
— Não sei, mas há bem pouco tempo ela disse que iria para dentro da floresta. Eu sinto a presença dela, mas não sei onde está. — Iara respondeu com a mesma arrogância. Superior e subalterna na hierarquia militar.
Ela enrolou os cabelos na mão e torceu para tirar o excesso de água. Sem pensar e Para ajudar, liberei um pouco do calor das minhas chamas em sua direção. Iara me lançou um sorriso lindo de gratidão quando seus cabelos voaram ao sabor do vento sequinhos. Iara prendeu seus fios lisos e pretos em um nó. Uma pena, eu eles eram tão lindos, sedosos e compridos. Não percebi que Esther nos encarava até que pigarreou para chamar nossa atenção.
— Vamos entrar na mata como lobas e seguir pela ligação que vocês têm umas com as outras. O que a Amkaly queria? — Ela encarou a filha. Iara olhou para mim, me dando o direito de responder.
— Queria falar com minha irmã, mas não disse sobre o que era.
— Bem, agora vamos deixar de fofocar e correr, antes deixar eu dar uma conferida nessas coisinhas chegando.
Esther abriu seu sobretudo. Independente da roupa que usava, sempre tinha um casaco comprido por cima, que chegava à metade das pernas. Era praticamente a sua segunda pela. Podia ser comum na Europa durante o inverno, mas aqui? Nesse calor dos infernos?
Observei enquanto ela enfiav* e tirava as mãos dos bolsos, fingindo desinteresse. Em outros momentos. Esther, dava leves batidinhas. Quando
puxou um lado do casaco para a direita, tive a visão completa do que estava por dentro: os inúmeros bolsos estavam cheios de pequenos frascos coloridos. Parecia uma estante de livros, pegou o que queria, guardou tudo, mas um dos vidros raros, o que só aumentou minha curiosidade. Depois de encontrar o que procurava, um frasco caiu e rolou para perto de mim. Ergui o pé para afastá-lo, mas antes que tocasse no vasilhame, ele sumiu no ar. Esther, com aquele sorriso diabólico nos lábios, segurava o vidro que surgiu novamente em sua mão.
— Eles são mágicos. Além de mim, só Agatha, Manom, Angel e Aldra podem pegar sem evaporar no ar como acabou de acontecer com você. — Ela guardou a poção, dando batidinhas no bolso. Quando se virou, me viu olhando curiosa para dentro de seu casaco e revirou os olhos. — Pergunte, garota. Eu sei que está se remoendo de curiosidade. Pergunte antes que eu me arrependa.
Esther era nossa professora de magia, por isso não me senti intimidada.
— Eu notei que os vidros têm uns símbolos que nunca vi quando estudamos simbologia e suas causas. O que significam? — Para Esther não os ter mostrado em sala de aula, deviam ser ultra secretos.
Esther me olhou da mesma forma que um gato olha para um passarinho tomando banho numa poça de água. Escondido, esperando para dar um pulo e estraçalhar com os dentes seu corpinho indefeso. Mesmo eu não sendo exatamente indefesa, diante de Esther eu era um zero à esquerda. Era assim que ela me olhava.
— Isso não são símbolos, garota intrometida. — Ela pegou um dos frascos na palma da mão e o trouxe bem próximo aos meus olhos para eu ver melhor. Eu continuava vendo símbolos estranhos, e de perto ficavam ainda mais esquisitos. Era como se estivessem vivos, se mexendo. — São letras de uma língua morta muito antes de os humanos terem escolhido uma religião.
É aramaico antigo, impronunciável na nossa língua pela falta das vogais com as quais estamos acostumados a formar palavras. Mas essas letras dizem exatamente que pó é esse e para que serve. Em cada frasco tem um pó diferente, que pode ser de anjo ou demônio, mas para mim tanto faz e não me interessa saber. Tudo que sei é que são de ossos e cartilagens. Agora, se veio do céu ou do inferno, não faz diferença.
— E como você sabe qual deles usar em determinada ocasião? Como sabe que vai dar certo? — Eu sabia que estava brincando com a sorte ao encher Esther de perguntas, mas sou curiosa e gosto de entender tudo. Sei que fiz uma pergunta cretina pela maneira como ela me examinou de cima a baixo. Pensei até que ela fosse me bater, mas deve ter pensado melhor e resolveu me responder.
— O próprio frasco me diz qual eu devo usar, não sou eu que escolho. Ele é que toma a frente, eu só o uso. Agora vamos parar por aqui, preciso encontrar minha alfa e minha neta.
E foi tudo que ela falou, já se transformando em loba e correndo. Iara e eu fomos atrás.
Entramos na mata e seguimos a pulsação do coração da minha cunhada e encontramos Nalum que vinha em sentido contrário. Todos os meus gatilhos foram disparados: minha sobrinha estava toda enlameada e cheirava a excrementos e lama podre. Os fios de cabelo grisalhos agora estavam grossos e cobertos de musgo, totalmente descabelada. Parecia ter sido regurgitada da barriga de um verme gigante ou ter sido arremessada em uma fossa. Ela estava muito nervosa.
Esther tomou a frente como se atrás de Nalum viesse um monstro nos atacar. Segurou as mãos da garota, olhando nos seus olhos sem se atrever a ler sua mente, e perguntou com uma voz que não era deste mundo:
— Sua mãe está bem?
Nalum balançou a cabeça negativamente.
— Se estiver perguntando da sua alfa, ela está bem. Mas se quiser saber da minha outra mãe, ela não está nada bem. — Nalum não parava de olhar para trás.
— O que aconteceu? Onde ela está?
A voz da beta continuava em outro mundo, impassível. O único sinal de emoção era a mudança de cor em seus olhos.
— Encontramos a mamãe caída no pântano. Ela parece estar em sono profundo, com a respiração lenta, quase inexistente. Ou então desmaiada, não sei ao certo. Está com uma asa machucada, parece bem feio, e perdeu muito sangue. Eu vim avisar que as duas estão no chalé.
— Mas não saíram as três juntas, Nalum? Por que só aconteceu com ela e não com vocês?
— Nós concordamos em nos separar e procurar em locais diferentes. Elas a princípio saíram juntas para mais na frente seguirem seus rumos. Eu estava muito distante quando ouvi minha mãe Nara gritando. A mamãe abriu as asas e subiu na corrente de ar. Vamos logo, Esther, depois você faz o interrogatório.
Nalum não tinha um pingo de medo da loba que mostrava os dentes.
— Tenha calma, preciso dessas respostas para saber se tenho o remédio da cura ou precisamos chamar Heloise.
Esther abriu o casaco e vimos os vidrinhos subindo e descendo dentro nos bolsos, como se estivessem fazendo uma troca de turno.
— Na sua opinião, o que acha que aconteceu? Pense na resposta e analise antes de falar.
Nalum estava de olhos vidrados nos frascos.
— Não estou bem certa, mas pelo que aprendi nas aulas de voo com a Angel, minha mãe deve ter pegado uma corrente de ar mais forte. Como ainda não controla o abrir e fechar das asas, caiu e com a velocidade da queda e sem poder mudar a forma dos pulmões, ela desmaiou com o excesso de oxigênio. Minha mãe mandou chamar a senhora.
Nalum não esperou resposta e deu meia volta, seguindo o mesmo caminho de onde veio, pouco se importando com a opinião da beta. Eu admirava aquela garota atrevida com o gênio do cão, igual ao da mãe dela e da minha. Eu devia ser muito perturbada para admirar fêmeas fortes e desequilibradas. Quanto mais bruta era a fêmea, mais me fascinava.
Eu já estava me preparando para correr quando senti uma pancada do meu lado direito e caí. Tentei levantar, mas um peso enorme me empurrava de volta para o chão. Com muito esforço, me equilibrei nas patas. Iara estava montada no meu lombo, nua como nasceu, o cheiro de fêmea que emanava da sua intimidade me deixava tonta. Ela puxou minhas orelhas, enlaçando as pernas na minha barriga e deitou no meu lombo. Ela apertou mais e mais as minhas orelhas e beijou meu focinho. Eu posso ter uivado sem querer.
Esther balançou a cabeça fazendo pouco caso do que estava acontecendo. Ela correu até Nalum e nos deixou para trás. Nesse momento, uma garotinha vestida de preto passou correndo por nós. Não nos olhou, mas levantou a cabeça como se sentisse nossos cheiros. Ela seguiu na mesma direção que Esther tinha ido.
— Quem é essa coisinha linda? Você conhece? — Iara perguntou. Eu segui seu olhar e vi uma criança de cabelos longos e pretos, vestida como uma
pessoa de mais de cem anos. O vestido preto cheio de saias na altura do joelho era ultrapassado para a época. O meião preto cheio de buracos e os pés descalços deixavam o look ainda mais cafona.
— Não sabia que tinha sentimentos por crianças. Sei lá, está sempre calada, cheguei a achar que não gostava de gente.
Iara bufou, com um sorriso de canto. Tão raro que chegava a ser fofo.
— Para quem não dá a mínima para o que eu penso, você presta bastante atenção. — Dessa vez quem sorriu fui eu. — Eu gosto de crianças, só não gosto das chatas e birrentas, cheia de vontades. Mas essa aí tem alguma coisa que me fascina. Olha como ela está sentindo o terreno.
Acompanhei seu olhar para fugir do rebuliço que suas palavras causavam em mim e do frio na barriga que surgia cada vez que seus olhos encontravam os meus.
—- O que será que ela procura deitada no chão desse jeito? — A garotinha rastejava com o ouvido colado no solo.
— Ela está ouvindo passos e rastros que passam na terra. Provavelmente tentando reconhecer alguém.
Dessa vez, a garota nos ouviu, no momento em que nos transformamos em humanas e corremos mais pesadas. Ela ficou de pé com um salto e virou em nossa direção, mas seus olhos violetas intrigantes não paravam quietos.
— Quem são vocês? — Perguntou, cheirando o ar.
— Oi, lindinha. Eu sou Iara e essa é a Calíope. Somos as guerreiras que vieram de Salém. E você, quem é? Veio de onde? É daqui mesmo da reserva? — Nesse pouco tempo em que andei com as lobas nunca vi Iara falar macio e com carinho com outra pessoa da mesma forma que fala comigo quando estamos a sós.
— Quantas perguntas você faz? Por acaso é da polícia ou só fofoqueira mesmo?—Achei engraçado a maneira como sua cabeça virava de lado, e não nos olhava de frente.
Foi impossível segurar o riso. Até Iara gargalhou com a resposta, segurando a barriga para se conter.
A garotinha desapareceu entre as árvores, nos deixando atônitas. Não sabia nem por onde procurá-la. Fui ao encontro de Esther com uma Iara falante, que não parava de exaltar as qualidades da garota misteriosa.
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Fim do capítulo
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