Capitulo 36
Cap 36 - Acontecimentos Premeditados
Na minha mesa tinha uma mistura de relatórios de casos que eu precisava responder e estavam atrasados, caso do laboratório de revisão criminal da faculdade e papéis da investigação de tráfico de órgãos. Um caos, uma bagunça. Um barulho atrás. Esse mês resolvi gastar um dinheiro comigo e comprei uma cafeteira que deixo na sala dos investigadores. Consigo tomar meu café sem grandes deslocamentos.
Preciso contar a vocês, estou há 2 semanas fazendo terapia. Estou conversando com o camarada, o psicólogo 2x por semana. Até agora foi muito choro, mas está me fazendo um bem bom. A Ana lu me passou o contato de uma psicóloga, esposa de um colega dela, acreditam que era a Lana, amiga da Bruna? Achamos de bom tom não termos a relação terapeuta-paciente, mas ela me indicou um amigo dela da clínica. Marquei com ele e deu tudo certo. Pelo menos estou dormindo bem há 1 semana quase.
Em relação a investigação de tráfico de órgãos, tive algumas atualizações, estou conseguindo mapear melhor e mais a quadrilha em si. Tínhamos um paciente de uma clínica de hemodiálise, dono da empresa de ventiladores que foi assaltada. Esse cara, estava na fila de transplante renal, mas duas semanas após o “roubo” dos ventiladores da sua empresa, ele saiu da lista de transplante, parou a hemodiálise e está usando imunomodulador, remédio contra a rejeição. Ou seja, tudo indica que achamos um paciente ou membro da quadrilha. Após ele receber o imunomodulador, ele seguia para uma padaria, no Morumbi, onde sempre se encontrava com o mesmo cara.
Isso mesmo, conseguimos finalmente descobrir quem é esse cara. Ele tem como codinome e sobrenome Puca. É um médico começou a residência médica de cirurgia, foi expulso. Na época da faculdade teve várias punições disciplinares por uso de drogas, várias pequenas prisões por porte de drogas, essas coisas que ninguém considera, até uma bomba explodir e todos olharem os alertas.
- Flávia! Flávia - eu me assustei com a Isabelle e seus cachinhos entrando na sala dos investigadores.
- Até me assustei!
- Cara, saiu a identificação - ela falou apoiando na minha mesa
- Saiu o DNA? É ele? - eu estava ansiosa pela resposta
- Seu indigente é meu desaparecido. Bateu Flávia, bateu.
- Sério? - Levantei da mesa - Caracas! - respirei e pensei um segundo - A Família já foi avisada?
- É sério, o legista acabou de confirmar. A família está sendo comunicada - sentei de volta na cadeira, ela acabou sentando na cadeira na minha frente, reduzindo um pouco o alerta.
- Eu quero falar com os familiares Isa.
- Eu sei, também quero. Vamos dar uns dias, deixar apagar esse incêndio, aí chamo a família formalmente. A namorada dele está destruída, mas temos uma boa relação. Ela vai querer ajudar da melhor forma, conversar com a gente.
- Olha o que deixaram na minha mesa sexta feira, na saida do bar da faculdade - puxei da minha gaveta, com delicadeza e dentro de um saquinho, a folha que alguem deixou pra mim em cima do bar na sexta. A folha limpa, com uma letra bem escrita, quase desenhada, com um endereço da favela de heliópolis, o desejo de uns corredores, quase como um mapa e escrito embaixo “ Endereço do Grilo, ele que matou o jornalista Marcius Evangelista”.
- Puta merd*! Viu quem deixou sobre a mesa?
- Claro que não, teria apertado se eu tivesse visto. O foda é que não adianta muito saber quem entregou o Grilo. Nem posso confiar friamente se isso é verdade.
- Cara, quem é esse Grilo? - ela me olhou sem entender, sem saber de nada, que de fato não sabia, afinal a investigação é sigilosa - Precisamos bater as duas investigações, elas se conectam. O Cantão que está no seu caso, né?
- É, ele é o delegado responsável.
- Vou conversar com ele, quero assumir esse caso de tráfico de órgãos. - Opa, pensei rápido, a Isa é muito acelerada, taqui, eu já estou toda ensurubada com o Cantão supervisionando quase a distância, imagina com ela no meu pé - Isa, ele está bem afinco com esse caso. É melhor alinharmos forças. É um caso gigante e bem complexo. somar e não dividir.
- Você acha mesmo Flávia?
- Sim, vai ser ótimo ter o dobro do efetivo e dividir as linhas de ação.
- Tá. Tudo bem. Mas quero então que você me dê um panorama geral do seu caso, preciso ter uma imagem na cabeça. Vocês já fizeram o quadro? - quadro é igual os de filme mesmo, foto, puxa linha, outra foto, puxa mais uma linha, outra foto. E assim por diante.
- Na verdade ainda não. Eu tenho um esboço no papel. Podemos montar se quiser.
- O velório do jornalista começa às 15h. Nós vamos ir.
- Nós? Eu também? - perguntei com uma certa apreensão, minha última incursão para observar me gerou dois tiros de raspão e um colega baleado.
- Sim, vamos unir os dois casos não vamos? - ela respondeu com a delicadeza de um delegado a um investigador - Temos que sair às 14h30 no máximo.
- Sim - apenas saiu isso
- Preciso que nesse tempo, você me atualize. quero fazer o quadro também - sem pedir licença ou nada, levantou e saiu da sala dos investigadores. Eu fiquei lá, atonica, sem saber exatamente o que eu deveria fazer ou se seguia ela. Uns 5 minutos mais ou menos, o Cantão passou na porta da sala dos investigadores, ele só olhou com os olhos pra cima e entortou a boca. Olhei pra ele já entendo, peguei meu material de anotação, tudo que eu tinha do caso e segui o Cantão. Entramos na sala de reunião, no final do corredor, onde já tinha um quadro, barbante, fita, esses itens de papelaria. Os demais investigadores da equipe dela estavam lá tambem.
- Certo, Flávia, por onde começamos? Precisamos saber desde o início - olhei para o Cantão, pedindo autorização para falar, já que até 5 minutos atrás nossa investigação era sigilosa. Ele acenou com a cabeça, autorizando.
- Nosso caso abriu no dia 23 de junho deste ano, com uma denuncia anônima de um ponto de desova de corpos. Esse ponto é conhecido como matão do fundo, localizado na lateral sul da comunidade de Heliópolis. Na ocasião foram encontrados 5 corpos - um dos investigadores dela, o de Paula, desenhou 5 bolinhas na lousa. Habitualmente vamos fazendo um rascunho e depois colamos fotos ou coisas desse tipo. Desses 5 corpos, 4 já foram identificados - completei.
- É importante a característica desses corpos - o Cantão abriu a pasta dele e tirou 5 laudos do legista - 4 das vítimas estavam sem nenhum órgão dentro do corpo, absolutamente nada. Outro vítima, a única que foge ao padrão, possui pulmões, coração e um dos rins, possivelmente foi enterrado vivo em decorrência de arranhaduras na lateral da cova e presença de terra no leito ungueal.
- Delegado, todos homens? - o De Paula perguntou
- Sim, todos homens - Respondi - Temos poucas informações das vítimas em si. A vítima três, a que foge ao padrão é o jornalista Marcius Evangelistas, que estava desaparecido há 3 semanas, como vocês devem saber e podem nos ajudar.
- Marcius era um jornalista investigativo, freelance, que estava trabalhando e investigando uma quadrilha de tráfico de órgãos, quando desapareceu. Apesar de freelancer, era um autor frequente do jornal Doi Notícia, onde tinha um armário. Armário que foi arrombado e esvaziado há cerca de 1 semana, sem registro de câmeras ou demais relatos - a Isa informou a mesa, postura firme, de chefe.
- Semana passada, na sexta feira, eu estava em um bar e foi deixado na minha mesa uma carta com um mapa e dizendo “o Grilo que matou o jornalista Marcius Evangelista” - todos me olharam, querendo mais informações - Não sei quem deixou o papel na minha mesa.
- Câmeras? - um dos investigadores da equipe da Isa perguntou
- Sexta feira, 21h, na Maria Borba - todos fizeram caretas. Maria Borba é uma Rua ao lado da Universidade, cheia de bares, lotada. Mesmo que filmando bem, seria uma agulha no palheiro em relação a achar quem deixou o papel na minha mesa. E mais ainda, poderia até identificar, mas poderia ser um calouro com essa missão, poderia ser muita coisa. Não compensa o trabalho
- Ok, quem é esse Grilo? Já levantaram?
- Dois dias após a investigação inicial, um classic prata foi abordado na face leste do complexo de favelas. Os meliantes deram fuga, quando foram pegos, identificou-se dois corpos no porta mala, com as mesmas características.
- Estamos em 7 então? Esses dois novos tem identificação? - a Isa perguntou
- Ainda sem retorno do legista - o de Paula fez mais algumas anotações na tela, enquanto eu continuava falando - Nessa abordagem foram detidos 2, que respondem ao codinome Belck e a Migalha - De Paula fez mais duas bolinhas e puxou dos “corpos” anteriores. No depoimento deles descobrimos um pouco do funcionamento da quadrilha - completei.
- O Belck e o Migalha são pé raspados da quadrilha, responsáveis pelo descarte dos corpos. O migalha é quem tem o contato com a liderança, também conhecido como Grilo. O Belck é iniciante, o menino da comunidade sem emprego que quer dinheiro fácil, apenas executante. O Migalha recebe a ordem do Grilo para o descarte dos corpos - Cantão expos.
- E são 2 tipos de corpos. Os raçudos, que são os que os órgãos foram completamente retirados. E os “patrão”, que estão com todos os órgãos. Estamos trabalhando com a hipótese que os “patrão” são os corpos de pacientes, que faleceram em procedimentos cirúrgicos.
- Nesse depoimento, o Belck estava nervoso com o Migalha, pois 2 semanas antes, aproximadamente, o Migalha descartou um corpo diferente, coisa do Grilo. Que o Belck não ajudou e não recebeu para executar. Foi um corpo descartado no sigilo, achamos que seja o do jornalista, encaixa na linha do tempo.
- E temos mais alguma coisa desse Grilo? - a Isa perguntou e na hora eu e o Cantão começamos a ir, não de graça, de desespero mesmo - querem me atualizar? Possivel?
- Isa, tem até um retato falado dele aqui no DP. Tres dos corpos foram identificados, os tres são lá de Heeliópolis mesmo. Foi feito um sepultamento coletivo, que fui eu e o Souza cobrir.
- Puta merd*! Foi a emboscada que voces cairam - o De Paula soltou.
- Exatamente De Paula. Então eu tenho os detalhes dele se precisarem. Esse Grilo tem uns 40 anos, negro, aproximadamente 1,90, forte, grande. Com colar de cruz no peito, tatuagem nos braços. É uma informação importante, onde acho que podemos nos enfiar, tem uma companheira que está com 6 meses de gestação.
- Excelente. Acha que na hora do parto? - a Isa e seus cachos saltitantes perguntou
- Essa garota tem que sair para o parto ou alguém vai precisar entrar pra ajudar ela. De todo modo será um momento de maior fragilidade.
- Concordo - o De Paula falou.
- Vocês tiveram alguma concretização de ser tráfico de órgãos ou é uma hipótese?- a Isa perguntou pro Cantão
- Isa, não tenho nada documentado de tráfico de órgãos, mas é nariz de porco, rabo de porco e olho de porco. Deve ser um porco. Ah, pode ser venda de órgão para estudo de anatomia? Até pode. Seita religiosa que mata e tira órgãos? até pode. Mas encaixa mais no tráfico.
- Sim, também acho que seja tráfico de órgãos.
- Vocês tem mais alguma coisa Flávia?
- No processo investigatório levantamos roubos de materiais hospitalares e medicamentos. Na pesquisa achamos uma empresa de ventiladores hospitalares que foi assaltada na região da desova. De uma clínica de hemodiálise na mesma região, com um mês de diferença, foram extraídos anestésicos achados no carro do Belck e Migalha. A ligação entre os casos vem de um paciente, Sr. Valério Chamas, sócio majoritário da empresa de ventiladores e paciente da clínica de hemodiálise.
- Tá, mas não…
- Exatamente, não liga nada. A não ser pelo sutil fato que ele estava na fila de transplante renal, um mês após o assalto na clínica e dois meses após o assalto em sua própria empresa, ele saiu da fila nacional de transplantes, sem nenhum relato que tenha feito cirurgia. E nesse momento ele pode ser encontrado 2x por semana em uma outra clínica, fazendo uso de imunomodulador, que é um remédio contra a rejeição de órgãos transplantados.
- Puta que pariu - De Paula exclamou. Automaticamente todos olharam pra ele. Eu concordei com a cabeça.
- É de De Paula, é complexo esse caso.
- Precisamos trazer esse cara para um depoimento - ele comentou.
- Não acho que seja o caso. Eles já sabem que estamos envolvidos, que já pegamos o lugar da desova, os caras do transporte, já sabemos da chefia. Precisamos usar desse cara como um guia, para ele nos mostrar o caminho. Esse Chamas, usa esse imunomodulador 2x por semana, após o uso do medicamento, ele se encontra com um cara, sempre o mesmo cara, em uma padaria perto da clinica - completei a informação
- E já sabe quem ele é? - Isa perguntou
- responde pelo sobrenome de Puca. É aqueles clássicos alunos problemáticos de medicina. Foi expulso da residência de cirurgia geral. Jé foi detido por aliciamento de pessoas e, acreditem, trafico de orgãos.
- Cara, ele deve ser o cirurgião dessa merd* toda.
- Provavelmente, mas uma quadrilha de trafico de orgãos, não deve ter apenas um cirurgião não, devem ter mais outros.
- Isa, você lembra daquele delegado velho, da barba branca? - o De Paula começou a falar.
- Qual? Aquele que continuava vindo aqui? Que não conseguia aposentar?
- Ele mesmo Isa, não lembro o nome dele. Ele estava na fila de transplante, fazendo hemodialise.
- Onde quer chegar De Paula - perguntei direto.
- Quero colocar ele na clínica. Todo chique, bonitão. Depois que se aposentou aqui, voltou para advocacia. Tem cara de advogado rico.
- Acha seguro?
- Quem mais que um velho nosso? Ele conseguiria puxar informação de onde nem saberemos. - De Paula completou
- Peixoto! Isso, Peixoto - Isa quase gritou
- Sr. Peixoto, como não decorei o nome dele? Sr Peixoto - De Paula foi outro que gritou, dois bestas - Não lembra dele Flávia?
- De nome não, talvez vendo ele.
- Se ele topar, dá pra usar ele como isca. É uma possibilidade, ele vai precisar apresentar-se sempre com bastante dinheiro. Ir comendo pelas beiradas, até entendermos quem são os aliciadores.
- Tá bom, eu posso conversar com ele, tudo bem Isa e Cantão? MAs se quiserem, podem assumir.
- Por mim fala com ele e me da o pronto - o Cantão já soltou essa, ele trabalha assim com bastante confiança na equipe que trabalha com ele. A Isa já é diferente, um pouco mais desconfiada, mais cabreira.
- Vamos com calma De Paula, vou avaliar a situação, pensar melhor.
- Para com isso, Isa essa é uma ótima ideia, alguem nosso lá dentro, um cara antigo, com o gingado e conhecimento. Sonda com ele se ele aceitaria De Paula, depois alinhamos melhor - ele olhou pra ela de um modo que eu conhecendo ele a muito tempo entendi, era uma demarcação de território, afinal, ainda é uma investigação que ele era responsavel. Ela só está ajudando, pegando carona. Quase dei risada do bonitão.
- Então finalizamos aqui né? - Um dos grandes defeitos da Isabelle é não gostar de ser remendada, sua vontade não ser feita. Ela terminou a reunião quando tomou o primeiro não - De Paula, foca na montagem desse quadro que precisamos estar com ele bem montado pra entender melhor - e assim ela deu uma “contra ordem” no investigador dela. O Cantão é bonzinho, gente boa, mas sabe bater na mesa e definir sua posição.
- Flávia, vamos sair daqui 15 minutos - ela falou pra mim firme, mas com uma marra que não ‘dela.
- Vai onde Flávia? - O Cantão perguntou
- A Isa me pediu para acompanhar ela no sepultamento da vítima 3, o jornalista.
- Tá certo, pode ir - ele acenou com a cabeça aceitando, mas dava pra ver no olhar dele a irritação. A Isabelle também estava bem irritada, mas ela é do tipo que não dá o gosto da derrota, algo assim. O Cantão pegou os papeis dele da mesa e simulando a maior calma do mundo, saiu da sala de reuniões.
- Você quer almoçar alguma coisa antes de ir? Ou comer no caminho? - a Isa perguntou, tentando aliviar o clima pesado.
- Como lá é às 14h30, podemos almoçar no caminho sim se você quiser, ou até aqui na rua mesmo.
- Aqui na rua não é Flavinha, eu nunca mais consegui almoçar com você, não vou perder essa oportunidade almoçando perto da delegacia - e claro que abriu o sorriso fofo dela. A isa é uma mistura de seriedade e sacana. Posso dizer que as poucas vezes que ficamos o beijo foi bem bom, mas ela cola como um carrapato na super bonder, não gosto de ser controlada, podada nem ser posse de ninguém.
- Ai Isa, que comentário. Vou pegar minhas coisas e já saio, pode ser? - ela deu uma sacudida na cabeça, como se dissesse: tentei. Cerca de uns 10 minutos depois eu já estava na porta do DP esperando a Isa, mas ela demorou um pouquinho mais para aparecer, vindo no carro particular dela - Não vamos de viatura?
- Não ne Flavinha. Se vamos almoçar, não vou largar a viatura por aí. Vem, entra - desaforenta, entrei no carro dela. - Não repara a zona.
- Tudo bem, seu carro sempre é quizumbado.
- Olha Flávia - mantivemos essa conversa suave - Quer comer? Algo específico? - acreditem, ela não falou essa frase com nenhuma malícia, a Isa é bem mais tranquila do que aparenta - Um japonês?
- Humm, japonês é de se pensar hein Isa.
- Tem um aqui perto que gosto muito. Tem rodízio e tem a la carte. Precinho bacana pra polícia. Pode ser?
- Ah, se for um lugar decente eu topo.
- Até parece que te coloco em furada Flavinha - ela mesmo deu gargalhada da frase dela. Já caí em muita furada por causa dos casos e investigações da Isabelle. Fomos jogando conversa fora até o restaurante. Em nenhum momento a Isa perguntou da minha namorada, e ela nem sabe que a Bruna me chutou. A Isa é bem educada apesar das loucuras momentâneas. Chegamos rápido ao restaurante japonês. Descemos com calma, ambas estão armadas, mas deixamos a pistola em um lugar seguro, no coldre, travada. Assim que entramos, a recepcionista já reconheceu a delegada que pediu uma mesa para dois e o cardápio - Flavinha, vai de água com gás?
- Sim, ve uma pra mim, por favor - ela sorriu e pediu uma, depois um copo de suco pra ela.
- Como não temos tanto tempo assim, e você é toda fitness, vamos pegar umas 2 ou tres porções, pode ser?
- Acho melhor Isa, eu gosto desse aqui - fui mostrando no cardápio o que eu gosto de comer, facilmente separamos quatro tipos de porções que queriamos e ela pediu para a atendente. Ficamos conversando enquanto não chegava a comida e mesmo após a entrega dos pratos continuamos conversando. O bate papo com ela é leve, a Isa é muito inteligente, sabe falar de tudo um pouco, não conversamos sobre o caso em nenhum momento, a reunião da manha foi o suficiente.
- Flávia, vamos indo? Vai ser uns 40 a 50 minutos até o cemitério, com o transito de São Paulo, tudo é longe.
- Tudo bem, vou pedir a conta pra gente - falei já levantando o braço. Rapidamente a atendente olhou e eu fiz o gesto de fechar a conta. Quando a conta chegou, a Isa maduramente puxou a carta.
- Cinquenta e dois cada, fechou?
- Sim, claro - aceitei já com o cartão na mão. Por mais que tenha sido mais caro que um PF, foi um passeio gostoso, leve. Foi muito bom ficar um tempo com a Isa, sempre gostei de conversar com ela. Ela está se comportando de um jeito profissional admirável, sem indiretas, sem os showzinhos que ela fez por alguns momentos.
Apesar de estarmos na região central de São Paulo, realmente levou 50 minutos para andar 10 km. O trânsito estava insuportável, arduo. Fomos conversando calmamente e com uma MPB ao fundo, jogando assunto fora. Mas assim que passamos a guarita de entrada do cemitério eu e ela entendemos que a situação havia evoluído, ambas fecharam a expressão, nos alinhamos e mudamos nossa postura. O cemitério ficava em uma parte mais elevada, havia uma importante rampa para subir, a Isa se manteve dirigindo e eu olhando as laterais. Por ser um velório particular, há um risco muito menor que aquele anterior que fui, em Heliópolis, mas vale lembrar que sempre há um risco.
Assim que chegamos na parte do cemitério em si, com os jazigos e área de cerimonial, já foi possível ver que estava cheio. Haviam vários carros de imprensa, não gravando em si, mas acredito que por ele ser um jornalista conhecido, muitos amigos estavam lá. Haviam várias pessoas conversando na parte externa do velório. A Isa estacionou nosso carro junto com todos os outros, sem chamar nenhuma atenção. Antes de descermos, ela colocou na cintura o distintivo de delegado e eu puxei o meu, de investigadora, de dentro da camiseta. Uma olhou calmamente para outra e nos acenamos, com uma expressão de “vamos”.
Ambas descemos do carro com calma, mão no coldre como o protocolar até sabermos a situação. Assim que saímos do carro os transeuntes que estavam mais perto já abriram os olhos, nitidamente com a expressão de “ o que a polícia faz aqui”?
- Vamos entrar, ficar de olho em tudo. Já sabe, olhar atento, qualquer coisa suspeita me aciona - Ela me passou a orientação inicial da diligência. Nossa função era realmente essa, observar e ficar de olho se aparecia alguma coisa, algo importante, relevante, não apenas da morte do jornalista em si, mas também do tráfico de órgãos. A parte do cerimonial era separada em dois pedaços, a direita tem uma parte de venda de coroas e uma lanchonete ao fundo. Já do lado esquerdo começavam as salas do velório, quatro salas e uma capela ao fundo, os restos do jornalista estavam na capela. Uma urna fechada ao centro, diversas coroas, cada uma com um nome, um jornal, uma empresa, essas coisas clássicas de velório.
Entramos mais alguns passos no local do cerimonial, sempre as pessoas nos olhando fixamente. Essa é uma sensação incômoda, mas parte de um trabalho que assumimos. A Isa estava com uma expressão bem fechada, olhando para as pessoas, quase assustando elas. Eu fui seguindo-a, com mais leveza, olhando expressões, rostos. Uma menina que estava dentro da capela, por volta de uns 25, 27 anos saiu e veio em direção a Isa, com os olhos vermelhos e nitidamente destruída. A Isabelle esticou os braços, como um carinho, e a menina aceitou se aninhando nela. Elas ficaram nessa posição por alguns segundos, eu fiquei observando o arreador. Depois que se soltaram, a menina não voltou à capela, foi dar uma volta no gramado.
- É a namorada dele, está destruída.
- É uma situação muito complicada mesmo.
- Eu estive ao lado dela nessas duas semanas, ela está destruída, mas está com um semblante leve, de resolução.
- Sim Isa, a pior parte é não ter resolução, ficar sem saber - em automático pensei na Fabi, na situação dela, me veio uma sensação imediata de deprê, mas não posso deixar iniciar. Tenho que dispersar esse sentimento, não posso deixar ele entrar e me dominar. Ficamos andando pelo velório mais um tempo, olhando as pessoas, as expressões e finalmente encostamos em uma parede, para parar e observar o ambiente. Seriam 2 horas de velório, então seria pouco tempo de um modo geral.
Ficamos em uma posição estratégica, quase que de frente com a entrada, mas encostadas na porta que dá para o gramado. Em um dado momento eu já estava com um importante incômodo nas pernas, queria andar um pouco - Isa, vou dar uma volta, dar uma olhada - Ela acenou o rosto, concordando, mas não me seguiu. A parte de trás da sala do velório dá acesso à lanchonete e acesso às campas, um pouco mais atrás.
Fui andando, tentando observar as pessoas, situações e de certo modo me distrair. Detesto velório, cemitério, a situação de familiares próximos chorando e os conhecidos rindo, como uma grande festa de reencontro. Não gosto nem um pouco dessa situação. Fui andando e pensando, quando cheguei perto da área do estacionamento e de longe, com um olhar aguçado identifiquei a baixinha que mais me faz falta. Meu peito teve um aperto súbito. Ela saiu do carro “Reportagem Jornal Doi Notícia”. Por sorte eu desviei com rapidez e ela não me viu. O cabelo de luzes aloiradas estava solto e a Bruna como sempre muito bem vestida, calça preta social, uma camisa soltinha cinza escuro e um salto alto, dando uma imponência que só ela tem. Acho que não me permiti sentir a falta dela, mas vendo ela ali, minha vontade era abraçá-la, sentir seu cheiro adocicado de maracujá.
Fim do capítulo
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Marta Andrade dos Santos
Em: 14/01/2024
Que pena que elas terminaram.
Esse caso de tráfico de orgãos tá complicado em Flávia.
tainateixeira
Em: 13/01/2024
Acho a Bruna muito arrogante, mas a Flavia realmente gosta dela.
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