Estamos em junho e as coisas ficaram ainda mais complicadas. Apesar de fazer RPG e fisioterapia religiosamente, as fraturas de maama trouxeram a ela uma piora postural considerável e com isso as dores se intensificaram; as crises de ansiedade por consequência. Através de diferentes profissionais, ela e eu temos feito tratamento psicológico, mas não existe um passe de mágica ou uma “bala de prata” para eliminar todos os problemas. Precisamos avançar subindo degrau por degrau e o progresso demora, é todo um trabalho árduo.

Bianca e eu não estamos bem, tampouco posso dizer que estamos mal. Não sei explicar como estamos. O fato é que não podemos nos ver muito, nossa maior interação é remota e depois daquela festa no prédio dela não conversamos sobre nossos problemas. Talvez estejamos fugindo ou evitando mais desentendimentos desnecessários. Não sei dizer...

Hoje meu dia no trabalho me deixou feliz. Estive em uma escola da rede municipal de ensino com alguns dos meus alunos apresentando projetos de robótica educacional para despertar o interesse das crianças no tema. Elas receberam muito bem e nessas horas me sinto uma semeadora. Que no futuro, nossas pequeninas possam florescer!

 

--Que bom que a receptividade das crianças ao que vocês apresentaram te deixou feliz! – Simone olhava para sua paciente – Isso ajuda a relaxar e deixa nossa conversa mais fluida. – cruzou as pernas – Ao longo dessas primeiras sessões você tem me falado sobre seu presente, mas a melhor forma de entender porque estamos aonde estamos é analisando os caminhos que nos trouxeram até aqui. – pausou brevemente – Vamos falar um pouco mais sobre sua família e suas origens? – pediu -- Reparei que até então você nunca me falou sobre seu pai.

 

Achou graça. – Meu pai é apenas um pai biológico. – cruzou as pernas também – Ele nunca teve um relacionamento sério com maama, nunca quis saber de mim e, sinceramente, nem sei onde vive e se vive. Não desejo mal a ele, mas não quero saber como está. – pausou brevemente – Meus irmãos não são filhos dele. São filhos de meu padrasto, que infelizmente desencarnou em 1998. – esclareceu – Era um bom homem, bom companheiro pra maama, porém criou os filhos mal acostumados demais. E acho que maama não soube agir para evitar isso ou mudar os maus hábitos dos filhos depois que ficou viúva... – lembrava do passado – Quando meu padrasto se foi, eu estava com 19 anos e era estudante do curso de Física na UFPE. Tinha acabado de concluir o terceiro período. – mirava um ponto no infinito – Meus irmãos eram todos menores de idade; o mais velho só tinha 12 anos. – passou a mão nos cabelos -- Foi uma fase bem difícil... cheguei a pensar que precisaria abandonar a faculdade.

 

--Hum... – refletia sobre o que ouviu – Vamos conversar um pouco mais sobre isso. – prestava atenção nas reações da outra – Então quer dizer que você nunca teve contato com seu pai?

 

--Na verdade... eu o conheci exatamente por causa do medo de ter que abandonar a faculdade. – explicou – Eu não era registrada no nome dele, que obviamente nunca havia me dado coisa alguma além de metade de minha herança genética. – olhou para a mulher – Então eu conversei com maama, procurei saber onde poderia encontrá-lo e fui atrás dele, que na época vivia em Caruaru. – rememorava os fatos passados

 

“--Eu nunca quis filho, muito menos filha, e sua mãe sabia disso muito bem! – o homem falava agressivamente – Ela nunca mais me procurou desde que você era um bebê e é por essas e outras que eu nunca acreditei que você fosse minha! – olhava para a jovem com raiva – Aí chega um belo dia e você me aparece aqui, no meu trabalho, uma burra velha na faculdade com essa conversinha fuleira, doida atrás de me extorquir dinheiro! – deu um soco na mesa – Volte no mesmo pé que veio, porque eu não nasci ontem e não vou cair na esparrela de chorar emocionado com um reencontro entre papai e filhinha! – usava um tom sarcástico -- Conheço uma golpista quando vejo uma!

Ficou furiosa com o que ouviu. – Eu não vim aqui esperando encontrar um pai, porque pra mim sempre foi muito claro que o senhor não tem interesse e nem condições morais pra isso! – falava com fúria contida – Vim porque é meu direito ser registrada e já que o senhor não quer fazer isso por bem, vai fazer por mal! – advertiu – Prepare-se pra um processo na Justiça!

--Você não ouse fazer isso! – levantou-se com o dedo em riste – Não queira comprar uma briga comigo! – ameaçou

Levantou-se também. -- Sinto informar, senhor Jaul Madini, mas a briga já tá comprada! – respondeu com firmeza – O que Camilla Isfahan começa, ela leva até o final!”

 

--Resumindo a história: abri um processo de reconhecimento de paternidade contra ele, maama teve que me representar na Justiça, porque eu era menor de 21 anos, tivemos que fazer exame de DNA, provou-se que ele é meu pai, fui registrada e ele teve que me pagar pensão até eu me formar na faculdade. – simplificou – É uma longa conversa, mas quem pegou meu caso foi a irmã de professor Laércio, que veio a ser o diretor da escola onde cursei o ginásio. – sorriu ao lembrar – Doutora Deyse era uma advogada arretada, pense numa mulher inteligente e tinhosa! – balançava a cabeça positivamente -- E ela se ofereceu pra trabalhar no caso de graça! Serei eternamente grata a ambos por isso!

 

--Então seu nome seria Camilla Isfahan Madini? – concluiu – Esse último nome não consta na sua ficha. – observou – Você não o assina por mágoa de seu pai?

 

--Eu não tenho o sobrenome dele. Não quis ter! – respondeu de imediato – Durante a última audiência, pedi à juíza que o nome dele apenas constasse em minha certidão no campo de “nome do pai”, – fez aspas com os dedos -- mas que não se alterasse meu nome original. – justificou – Pode parecer inacreditável mas ela permitiu. – achou graça – Talvez a educação fina e mesureira dele durante uma das audiências que tivemos tenha servido de estímulo pra isso. – lembrava

 

“--ISSO É UM ABUSO, UM ABSURDO, UMA PUTARIA! – Jaul bradava em alta voz – SUHAILA TEVE MACHO, TRÊS FILHOS COM O CABRA, E AGORA ELAS QUER PENSÃO MINHA MODE SUSTENTAR CAMILLA BATENDO AS FANDANGA NA CAPITAL E MAIS ESSA FARRANCHA DE GENTE! – gesticulava como louco – ISSO É UMA FULEIRAGEM DA PORRA!

--Homem, pelo amor de Deus! – o advogado tentava acalmar seu cliente – Não pode falar assim aqui! – desesperava-se

--Mas espia só o que esse peste fala! – Suhaila se revoltava

--Batendo fandanga?? Eu estudo! – Camilla protestou com raiva – E de mais a mais o senhor nunca me deu nem um alfinete! -- acusou

--Não respondam às provocações! – Deyse alertou suas clientes – Fiquem quietas!

--SENHOR JAUL MADINI, CALE-SE AGORA MESMO! – a juíza repreendeu com rigor – Todos, calem-se! – olhou para os demais fazendo o grupo silenciar – Isso aqui é uma casa séria! – olhava para o homem de cara feia – O senhor não está em um lupanar, em um boteco ou em qualquer um dos ambientes de baixo nível com os quais parece ter afinidade! Portanto comporte-se como se deve durante a audiência, se não quiser sair daqui preso! – ameaçou

--Não vai mais acontecer, meretíssima! – o advogado garantiu – Meu cliente e eu pedimos perdão pelo destempero. – beliscou a coxa do homem e olhou para ele

--Perdão! – pediu com má vontade enquanto esfregava a pele dolorida”

 

--Enquanto ele me pagou pensão fomos forçados a ter um contato eventual e foi sempre ruim, porque meu pai nunca teve sequer um gesto de cordialidade comigo. – Camilla continuava contando – Ou era um grosso ou agia com fria indiferença quando estava na frente dos outros. – gesticulou – Quando me formei e a obrigação legal da pensão terminou, ele sumiu e eu também não quis saber.

 

--Eu gostaria de voltar um pouquinho mais nessa história, se isso não a incomodar. – Simone pediu – Por que você diz que foi somente o medo de ter que sair da faculdade que te motivou a procurá-lo?

 

--Eu consegui vaga na Moradia Estudantil da faculdade logo no primeiro período, mas não consegui bolsa porque naqueles anos o governo tinha cortado tudo e mais um pouco de verba. Aquele eterno sonho neoliberal de privatizar, né? – explicava – Então era meu padrasto quem me dava uma força pra eu conseguir me manter. Ele e o irmão tinham um pequeno comércio em Triunfo. – pausou brevemente – Quando ele se foi, maama ficou só com o dinheiro minguado que ganhava vendendo galinha, porco e o que plantava no roçado. E meus irmãos eram todos menores, como te falei. – gesticulou brevemente – Aí eu achei desaforo que meu pai nunca assumisse responsabilidade alguma e corri atrás! – justificou-se

 

--E como foi que seu pai surgiu na vida de sua mãe?

 

--Novamente vou resumir com base no que sei. – pausou brevemente – Minha família imigrou pro Brasil no final de 1948, fugindo da guerra Árabe-Israelense que gerou severas consequências pro Líbano. Já havia muitas comunidades sírio-libanesas aqui no país e meus familiares foram pra Pernambuco por causa de uns conhecidos que vieram primeiro. Parte desse grupo seguiu pro interior e se estabeleceu em uma fazenda em Triunfo, como trabalhadores agrícolas de uma tradicional família pernambucana. – contava a história – Maama nasceu nessa fazenda, assim como eu. Somente quando ela se casou com meu padrasto foi que saiu de lá. – destacou – Mas, em relação ao meu pai, ele trabalhou por um tempo como contador dessa fazenda, conheceu maama, assediou ela fingindo-se apaixonado e se mandou quando ela disse que tava grávida. – pausou brevemente – Quando eu nasci, ela conseguiu entrar em contato com ele pra falar de mim, mas ele não quis saber.

 

--E como foi para uma família libanesa ter uma mãe solteira no meio do clã? – Simone perguntou argutamente

 

Sorriu. – Você parece saber a resposta... – suspirou – Gidda e giddu, quer dizer, meus avós, reagiram mal à princípio, mas logo mudaram de atitude quando eu nasci. Os demais... – gesticulou – Maama sofreu uma certa discriminação sob vários aspectos.

 

--E você não? – provocou

 

--Certamente, Simone... – confessou – Mas com o tempo, diria que todos aprenderam a me amar. – pausou brevemente – Ou pelo menos os venci pelo cansaço! -- brincou

 

A psicóloga avaliava a paciente em silêncio.

 

***

 

--Chorando, Elzira? – Camilla perguntou ao surpreender a prima – A essa hora da noite, -- acendeu a luz – aqui na cozinha, no escuro... – aproximou-se – O que houve? – perguntou mansamente – Se não quiser falar, não fale. Mas tô aqui pra te dar um colo se precisar. – ofereceu

 

--Ai, prima... – secou o rosto com as mãos – É tudo e nada, não sabe? – olhou para a outra – Tia Suhaila sempre foi como uma segunda mãe pra mim e ver ela minguando dia a dia... – cruzou os braços – É como se fosse ir ficando órfã pela segunda vez... – pausou brevemente – E essa minha vida amarrada, que nunca anda pra frente... Eu não vou poder ficar aqui com vocês pra sempre. Minha casinha tá lá em Triunfo, minhas coisa... – gesticulou – Mas eu vejo a luta que é passar por tudo isso aqui e me sinto uma ingrata a cada vez que penso em voltar pra casa. Eu devo tanto a vocês duas...

 

--Eu também sofro demais com tudo isso que maama tem passado! E me sinto impotente, incapaz... – confessou – Mas não posso te cobrar nada, Elzira. Você deixou claro desde o começo que sua estada aqui tinha data marcada pra acabar. – pausou brevemente – Até o final desse ano ou até fevereiro, não sei, ainda posso contar com você. Depois... – suspirou – Vou dar meu jeito! – deu um sorriso triste

 

--Até fevereiro. – afirmou resoluta – Depois... vou tentar dar um jeito na minha vida. De novo! – sorriu com os olhos marejados 

 

--Acredito fortemente que nada, nenhuma situação nessa vida dura pra sempre. – segurou uma das mãos da prima – Isso também vai passar, mesmo que demore. Tudo isso!

 

--Deus te ouça! – aproximou-se receosa – Me dá um abraço? – pediu como criança

 

--Own, queridinha. – abraçou-a com carinho – Tudo vai dar certo... pra todas nós. – beijou a cabeça da prima e gastaram uns segundos em silêncio – Desculpe, mas agora me ocorreu que preciso te fazer uma pergunta. – rompeu lentamente o abraço – Ainda posso fazer aquela viagem de serviço na segunda? – prestava atenção na outra – Se você não tiver com emocional pra ficar sozinha com maama durante minha ausência eu dou meu jeito de mudar a data da viagem, cancelar...

 

--Ai, prima, faça isso não. – pediu mansamente – São poucos dias. A tia e eu podemos dar conta do recado. – garantiu – Só te peço que ligue toda noite pra ela ouvir sua voz.

 

--Nem precisa pedir. – concordou – Eu não deixaria vocês duas privadas do prazer de ouvir essa minha linda voz de veludo! – brincou para aliviar o clima

 

***

 

Depois de um dia inteiro de trabalho em Pecém, eu voltava para Fortaleza dirigindo um carro alugado ao lado de minha colega de trabalho, Fabiana, também professora da UFPE, mas integrante do Departamento de Engenharia Naval. Nossos respectivos departamentos haviam sido demandados a analisar as instalações do porto e propor ideias de sensoriamento que ajudassem na otimização do fluxo de produtos e embarcações. Quando nos aproximávamos do acesso à BR-222, uma pesada chuva desabou sobre nós e mal conseguíamos enxergar um palmo diante do nariz.

 

--Meu Deus, Camilla, que diacho de chuva é essa? – Fabiana perguntou apavorada – Mulher, consigo enxergar nada! – olhava para a pista escurecida diante de si

 

--Minha Nossa Senhora, dá pra seguir mais não! – a morena decidiu ao sair da rodovia – A gente vai ter que procurar um lugar pra pousar por aqui mesmo.

 

--Por aqui?? – Fabiana arregalou os olhos – Eu nem sei onde a gente tá! – olhou para a colega

 

--Chegando na grande Fortaleza. – respondeu sem desviar a atenção do trânsito – Daqui pro nosso hotel é só meia hora, mas debaixo desse toró não dá!

 

--E onde que a gente vai pousar aqui? – olhava para todos os lados – O celular tá até sem sinal! – constatou ao reparar no aparelho – Dá nem pra usar o Maps!

 

--Então a gente vai ter que tatear! – Camilla tentava encontrar uma saída

 

***

 

--Faça-me o favor, que merd*, viu? – Fabiana entrava no quarto revoltada – Eu não vinha em motel desde que era noiva! – reparava no lugar – Que lugarzinho muquifo! – fez um bico – Será que essas camas têm pulga, barata, cobra? – olhou desconfiada

 

--Também nunca fui fã de motel e faz muitos anos que não frequento um. – colocou a mochila em cima de uma mesinha – Mas ou a gente pernoitava aqui ou corria o risco de sofrer um acidente na BR! – passou a mão nos cabelos – Cadê as toalhas, hein? – começou a procurar -- Vou tomar banho!

 

--Você não se atreva a contar pra ninguém naquela faculdade que a gente pernoitou num quarto de motel de beira de estrada, visse, Camilla? – advertiu com o dedo em riste – Não quero a gente com fama de sapatona!

 

Achou graça. – Com certeza eu não vou colocar a notícia no jornal! – riu brevemente

 

E de repente, um estranho barulho se fez ouvir: NHEC, NHEC, NHEC!

 

--Misericórdia! – Fabiana correu até a outra e a segurou pelo braço – Tem um bicho arranhando as coisas nesse quarto! – falou alarmada

 

--Como assim, criatura? – não entendeu – Como pode ter um bicho arranhando sei lá o que aqui?

 

NHEC, NHEC, NHEC!

 

--Não escutasse? – olhou desconfiada na direção de onde vinha o som – Vem dali, daquela caixa pregada na parede! – apontou – Alguém deve ter vindo fazer sacanagem com bicho aqui nesse motel e esqueceu o Satanás ali dentro! – benzeu-se – Ave Maria!

 

--Mas... – e o barulho continuava – E motel de hoje em dia tem isso, caixa pra guardar bicho? – não entendia – E se tem um bicho preso aqui, isso não pode continuar! – decidiu – Vai que morre? – olhou para a outra – É crueldade com os animais!

 

--Você tá pensando em abrir aquilo ali?? – espantou-se – Eu não mexo naquela caixa nem que Deus me mande! – afirmou enfática – Que morra e fique podre lá dentro!

 

BUFF, BUFF, BUFF!

 

--Ave Maria, que agora o bicho nem arranha mais, tá é batendo! – Camilla estranhou – Ah, mas a gente tem que ver isso aí! – decidiu – Cadê aquele teu guarda-chuva de Mary Poppins? -- procurou

 

--Você quer futicar o bicho com meu guarda-chuva? – arregalou os olhos – Ah, não! -- discordou

 

--Não é isso. – pegou o guarda-chuva e entregou na mão da outra – Eu vou abrir a caixa e você fica à postos. – instruiu – Se for bicho manso, não precisa fazer nada. Mas se for uma fera, você usa o guarda-chuva pra nos defender enquanto eu peço ajuda! – informou o plano

 

--Ai, ai, ai, isso não vai dar certo! – reclamou

 

BUFF, BUFF, BUFF!!! – as batidas tornavam-se mais intensas

 

--O bicho tá ensandecido! – Camilla se aproximou lentamente da caixa – Vem, mulher, fica aqui de guarda! – chamou em voz baixa – A caixa tem um trinco e eu vou abrir. – decidiu

 

--Ô, Pai Santo, amansa esse Satanás de rabo que se esconde aí dentro! – Fabiana empunhou o guarda-chuva

 

--E seja lá o que Deus quiser! – Camilla abriu a caixa e foi surpreendida com o súbito aparecimento de uma pequena mão aberta – Oxe?? – não entendeu

 

--Tem que pagar, gente! – uma mulher do outro lado informou mal-humorada – Pensaram que a estadia era de graça, é? Motel faz caridade não! – provocou – É dinheiro, Pix ou cartão?

 

--Eu não acredito nisso! – Fabiana exclamou boquiaberta

 

--Ih! Sapatão! –a funcionária do outro lado riu ao constatar a presença de duas mulheres

 

--Só me faltava essa... – Camilla teve que rir – Nunca tive uma viagem de serviço tão inusitada!

 

***

 

--Como alguém consegue gostar de um motel horroroso como aquele, hein? – Fabiana reclamava dentro do carro – A noite toda parecia que a cama tava repleta de pulgas! Mal preguei os olhos!

 

--O motel é péssimo, conta com um sistema de cobrança moderníssimo, -- ironizou -- mas graças a Deus eu me deitei e dormi! – dirigia em direção ao hotel em Fortaleza – Ao longo da pandemia passei tantas noites em claro, que hoje em dia acho que durmo até em cama de prego!

 

--Eu notei! – comentou – Dormisse com vontade. – olhou pelo espelho lateral e estranhou uma situação – Sabe que desde que a gente saiu daquele maldito muquifo me parece que esse Peugeot aí atrás tá nos seguindo? – comentou – Vem coladinho em nós nesse trecho todo de BR!

 

Olhou pelo retrovisor. – Seguindo a gente? – reparou no carro – Vidros filmados, dá nem pra ver a silhueta de quem dirige! – constatou – Deixe eu fazer um teste. – saiu da BR inesperadamente – Nosso caminho vai ficar só um pouquinho mais longo! – avisou

 

--Ave Maria, sua bicha doida! – Fabiana arregalou os olhos – E o carro tá nos seguindo mesmo, espia ele aí na cola da gente! – olhou rapidamente para trás -- Tá nos seguindo, tá nos seguindo! – alarmou-se – Volta pra BR, volta, volta! – pediu nervosamente

 

--E tá mesmo! – concordou – O GPS tinha que se danar justo agora! – reparou no celular – Então vamos como der! – decidiu ao tomar uma rua à revelia – Oxe, que esse carro é tão lerdo! – tentava acelerar mais, porém o veículo não desenvolvia

 

--Ai, ai, ai, meu Deus, valei-me! – Fabiana benzeu-se com medo – Ele acelerou, ele acelerou! Corre, mulher! – pediu alarmada

 

O veículo suspeito avançou em direção ao carro das professoras até que se emparelhou com ele. De repente a janela do carona baixou e uma voz conhecida se fez ouvir: -- CAMILLA ISFAHAN, HORA DE DAR SATISFAÇÕES!!! – berrou – EU VI TUDO!!

 

--Bianca??? – perguntou em choque ao se desviar e parar o carro bruscamente

 

--Puta que pariu!! – reclamou da freada brusca -- E você conhece essa?? – Fabiana não entendia – Camilla, o que diabos tá acontecendo aqui?? – perguntou nervosamente – Eu quero ir embora! -- ordenou

 

Bianca parou o carro mais à frente e desembarcou rapidamente. Caminhava em direção ao carro da namorada com os olhos faiscando de ódio.

 

--Também quero ir! – desafivelou o cinto – Faz o seguinte, -- olhou para a colega – leve o carro e some daqui. – abriu a porta – Agora é só comigo! – desceu do carro

 

--Tua rapariga deu no pé? – Bianca provocou ao reparar que Fabiana fugia cantando pneus – Ah, Camilla Isfahan, -- aproximava-se da outra – é hoje que eu te mato!! – ameaçou – Eu te mato!!!!! – gesticulava como doida

 

***

 

--Então quer dizer que tivesse que dormir com a outra naquele motel de beira de estrada por causa do toró de ontem? – Bianca perguntou olhando para a namorada – Mulher, mas que história! – beijou-a – Só acredito nisso porque não vi um arranhãozinho sequer nessa pele gostosa! – beijou-a novamente

 

--Ah, quer dizer que só acredita por causa disso? – mordeu-lhe o lábio inferior – Sua história também é muito suspeita, dona Bianca Hamid! – envolveu a cintura dela com os braços – Uma viagem repentina pro Ceará por causa de uma denúncia relacionada a um caso que seu escritório pegou? – repetia o que ouviu – E a senhora voltava pro seu hotel em Fortaleza justo na hora em que eu saía daquele muquifo maldito? – riu brevemente – Dá até pra pensar que você veio me seguir!

 

As duas mulheres estavam nuas e sentadas sobre a cama no quarto de hotel da advogada. A mulher mais jovem envolvia a cintura da professora com as pernas.

 

--Hum, eu tinha que ser ninja pra conseguir te encontrar daquele jeito, visse? – mordeu-lhe o lábio inferior – E corresse risco de vida! – brincou e elas riram – Mas pesou a seu favor o fato de que tua maama tá doente e você não se ausentaria de casa pra se encontrar com rapariga. Além do que sei que é muito séria com trabalho pra fazer uma fuleiragem do tipo.

 

--E falando em trabalho, ainda tô aqui com você porque o compromisso que eu tinha hoje foi adiado por conta do temporal de ontem, mas daqui a pouco tenho que ir pro meu hotel. – beijou-a – A viagem de retorno pro Recife é amanhã de madrugada e eu preciso arrumar minhas coisas e entregar um relatório pra hoje!

 

--E se eu fosse pra lá contigo? – propôs – Meu voo pro Recife deve ser o mesmo que o teu e o único compromisso que me restou por hoje é uma reunião noturna com uma assessoria jurídica de um sindicato daqui. – beijou-a – A gente podia tomar um banho agora, almoçar na orla e seguir juntinhas pro seu destino, que acha?

 

--É uma boa. – concordou – Vamos então? O tempo urge. – beijou-a mais uma vez antes de se desvencilhar lentamente – Aliás, -- levantou-se da cama – acho que a gente podia aproveitar que o inesperado nos uniu pra ter uma conversa séria. – olhava para a amante

 

--Conversa séria? – receou – Sobre o que? – levantou-se da cama sem olhar para a morena

 

--Sobre nós! – afirmou de imediato – Não tá bom do jeito que tá, minha linda. – pegou duas toalhas de banho – Eu acreditei na sua conversa de que seria diferente dessa vez, que era pra valer, e até agora tenho notado tudo igual. – passou a mão nos cabelos – Só não está exatamente igual a antes  porque hoje em dia a gente se vê muito pouco!

 

--Amore, olha, se você tá dizendo isso por causa do escândalo que eu fiz com você no meio da rua... – aproximou-se receosa – Ora, ponha-se no meu lugar... E se você me visse em outra cidade, saindo de um motelzinho de quinta com uma sirigaita desconhecida que...?

 

--Não foi só por hoje! – interrompeu a fala da advogada – Mas por aquela sua crise de ciúmes simplesmente porque chamei minha aluna de Paulinha, por aquela festa que você deu sem nem me falar a respeito, na implicância que já percebi que pegou com Elzira porque ela tá vivendo temporariamente lá em casa... – enumerou os fatos – Nada mudou e eu não quero reviver a parte ruim de nosso relacionamento! – olhava nos olhos – Daqui a pouco você vai ter ciúmes de maama!

 

--Habibem?! – chocou com o que ouviu – Você acha que eu sou o que? Uma maníaca? – pegou uma das toalhas das mãos da professora – Sei muito bem a diferença entre maama, amiga e uma rapariga qualquer! – seguiu revoltada para o banheiro

 

--Humpf! – Camilla fez um bico e seguiu atrás

 

***

 

--Queridas, cheguei! – Camilla brincou ao abrir a porta da sala – O que vocês aprontaram sem mim, hein? – surpreendeu-se com o que viu – Xarid? Você aqui? – sorriu – Que bom! Finalmente veio visitar maama. – entrou em casa – Cadê os meninos? – reparou na sala procurando pelos sobrinhos

 

--Vim sozinho, não sabe? – respondeu com seriedade – E quero entender direitinho que fuleiragem é essa de você badalando por aí enquanto maama fica aqui largada! – cobrou satisfações

 

--Largada nada! – Elzira se opôs – Cuido dela muito bem e além do mais a prima não tava badalando, tava trabalhando! – retrucou de cara feia

 

--Xarid, que é isso com sua irmã?! – Suhaila perguntou em tom mais grave

 

A professora ficou pasma com a atitude do irmão e se aproximou dele com o semblante fechado. – Eu não admito que você apareça aqui na MINHA casa, querendo botar banca pra cima de mim e me fazendo cobranças uma vez que nenhum de vocês três fazem coisa alguma por maama! – parou diante do homem – Você não tem moral pra isso! Cresça e apareça, seu moleque!

 

--Xarid Isfahan Khalil! – Suhaila bradou enquanto tentava se levantar com dificuldade – Não fiquei abestada e nem lesa porque vivo nessa danação que me consome! – Elzira a ajudou a se levantar – Você cale sua boca e respeite sua irmã – gesticulava -- porque além de ser a mais velha é ela quem me cuida e vocês tudo deve muito a ela! – ralhava – Ai! – gem*u

 

“Como diria a falecida gidda (vovó), esses meus irmãos têm dois fiofós e um de quebra!” – Camilla pensou contrariada

 

Fim do capítulo