CAPITULO 23
CAPÍTULO VINTE E TRÊS
Nara shiva
O chalé que seria meu lar e das garotas pelos próximos dias era razoavelmente grande, com uma temperatura ambiente muito parecida com a das casas em Salém, mas sem a beleza rústica e natural. Ao contrário, tudo aqui era moderno, como se os lobos gostassem de viver como os humanos, com toda sua tecnologia para entretenimento. Não que eu fosse contra a modernidade, longe disso, mas eu preferia livros ao besteirol que as emissoras de televisão enfiav*m goela abaixo. Preferia o som da mata, dos ventos e da natureza a qualquer outro som transmitido por aparelhos eletrônicos. No entanto, o chalé era bastante confortável. Diferente dos nossos, esses foram erguidos só para lobos a passeio. Os humanos vinham para a ilha todo fim de semana, para participar de festas particulares bancadas por algum milionário que comprou o pacote na agência de viagens que meu pai e Darius tinham espalhadas no centro de Joinville.
Assim como eu esperava, nossa estadia seria agradável. Meu chalé tinha somente dois quartos: um grande, próprio para casal, e um outro menor com duas camas, próprio para bagunça. As meninas juntaram as camas, pegando mais duas dos outros chalés, de forma que ficou cama, cama e cama. Quase não tinha espaço para andar, o que elas faziam de bom grado por cima dos colchões. Elas estavam felizes, o incidente de antes parece não tê-las afetado tanto assim, o que de certa forma me deixava desconfiada. Em vários momentos, eu as observei conversando entre si. Melhor ficar alerta.
― Meninas, aqui na sala agora. ― Me sentei numa cadeira de palha próximo à porta. Elas chegaram e sentaram no chão mesmo, dispensando o sofá luxuoso no canto, como quando ficamos nas academias para receber instruções.
― O que aconteceu agora há pouco na casa sede não deve se repetir nunca mais. ― Examinei a reação de cada uma. Pareciam incomodadas, como esperado, mas não me arrependi de usar palavras duras. Cada uma ali queria me afrontar e discutir, e por isso mesmo deixei que apresentassem seus argumentos. ― Alguém quer explicar o que foi aquilo?
Elas se olharam, sem saber quem falava primeiro.
― Bem, como não chegaram a um consenso, eu começo. ― Falei. ― O que foi aquilo, Nalum? Por que agrediu Amkaly quando sabe que uma das regras da nossa alcateia é nunca atacar um nativo? Depois que passam pelo primeiro cio, o lobo está entrando na adolescência e já tem consciência do que é certo ou errado.
Nenhuma delas ousava me encarar, Nalum olhou pra Nyxs que fez um gesto sutil com a cabeça, autorizando minha filha a dizer a verdade, não me incomodava esse gesto, elas sempre foram assim, Nyxs opinava sempre que Nalum pedia e está sempre acatava o que a outra dizia.
― A Amkaly chamou minha outra mãe de prostituta, disse que ela estava trans*ndo com todos os seres no outro mundo. Disse que quando estivesse cansada viria atrás da senhora, que já tinha sido corneada uma vez e não daria importância uma segunda vez. E também que ela ia fazer de tudo para vocês duas reatarem, e quando isso acontecesse, ia convencer a senhora a me deixar com a minha avó e meu pai. ― Disse, a voz trêmula. Nyxs apertou sua mão em solidariedade.
― Filha, desde pequena seu padrinho te ensina a controlar seus sentimentos. Você não pode se descontrolar com as besteiras que a Amkaly ou qualquer outra pessoa diga. Quando chegar a grande guerra, o que não vai faltar são seres dizendo barbaridades para descobrir seu ponto fraco. E vão descobrir. E quando isso acontecer, eles vencem. Controle seus sentimentos, minha flor de girassol.
― Eu vou me esforçar, mamãe. ― Concordou, sem muita convicção. Eu sabia que ela podia até tentar, mas nunca em relação à Amkaly, as duas se detestavam.
― Eu sei que vai. Pense bem, o que aconteceu hoje quase iniciou um racha na nossa alcateia, e isso não pode acontecer. Precisamos ser fortes e unidas. ― Olhei para Nyxs. Seus olhos já me encaravam. Lindos, prateados como o reflexo da lua no mar, quase me fazendo esquecer o que ia dizer. ― Nyxs, todos aqui sabem o quanto você ama Nalum. Eu queria te dar os parabéns por conseguir se controlar e não entrar na briga para defender nossa filha.
Só percebi a besteira que disse quando as meninas sorriram com cumplicidade. Nyxs abraçou Nalum, que se derreteu toda em seu colo, e beijou seus cabelos.
― Não é assim mesmo que vocês duas se tratam como mãe e filha? ― Tentei consertar. Uma pontada de decepção passou por seus olhos, ou talvez eu estivesse vendo coisas. Coisas que eu gostaria de ver. ― O que eu quis dizer é que se você tivesse perdido o controle igual a Nalum, a merd* teria fedido. As guerreiras como uma unidade teriam sido destruídas ali mesmo todo o trabalho que estamos fazendo desde muito antes de vocês nascerem. E sabem por que?
Ninguém queria responder. Esperei até que a tímida Heloise se pronunciou.
― Porque as guerreiras teriam rompido o laço que nos mantém unidas. Teríamos separado famílias e quebrado o laço de amizade.
― Isso. Se Nyxs tivesse perdido o controle, suas tias Morgana, Winnie, Agatha e Melisandre ― Enumerei, contando com os dedos para que tivessem noção da proporção que um ato impensado poderia ter na vida e no destino de um povo. ― ficariam do lado da irmã Lilith, arrastando consigo suas companheiras e filhos. Do lado da Amkaly teria ficado uma das pessoas que mais prezo e admiro. Sua mãe, Heloise. Ananya ficaria junto à filha e companheira, e sem querer, essa briguinha idiota com Amkaly teria rachado nossa reserva ao meio.
― Sinto muito, mamãe. Eu não pensei. Agi de cabeça quente. ― Nalum se desculpou, de cabeça baixa. Ela riscava o chão com as pontas dos dedos, inquieta e arrependida.
― Eu sei, filha. Já fiz muito isso, mas a gente não ganha nada assim, só dor de cabeça. Já conversei com Amkaly, não acredito que ela vá importunar você ou Nyxs. Mas vocês têm que fazer a sua parte. ― Pela careta que elas fizeram, um entendimento seria difícil.
― E quanto a você, Heloise, na hora da confusão deveria ter ficado ao lado da sua irmã. ― Repreendi. A garota era uma réplica perfeita da Ananya, mas apenas na aparência.
― A minha fidelidade está nas guerreiras geradas naquela noite ou em outro mundo, como a Nalum. A minha lealdade é para minha alfa. Minha mãe, a que me gerou e pariu, sabe e respeita minha decisão. ― Sua voz suave era como a de uma fêmea anciã, uma guerreira de outras vidas.
― Mas a Amkaly é sua irmã, tão filha da Ananya tanto quanto você. Dá uma chance a ela de descobrir a garota incrível que você é. ― Estava sendo difícil apaziguar a situação.
Heloise baixou a cabeça, envergonhada com o elogio. Inaê se aproximou, puxou a garota e a abraçou de forma íntima, como se fossem um casal. Não... acho que estava vendo coisas demais ultimamente.
― Irmãos a gente não pode escolher, são impostos sem pedir a nossa opinião. Mesmo que ela tenha DNA da minha mãe, eu me sinto mais irmã da Iara, Angel, até mesmo da Maya, da Nalum, do que da Amkaly. ― Sua seriedade era admirável, não deixava dúvidas de que seria a futura médica dos anjos.
― Prestem bem atenção! ― Ergui a voz. ― Somos a legião de guerreiras que estará na frente do exército quando a guerra começar, e precisamos ser uma só e confiar na nossa irmã, de sangue ou não. Se quisermos continuar vivas, lá não seremos mãe, irmã, filha ou sobrinha. Seremos guerreiras prontas para matar ou morrer.
― Sabemos e temos consciência dessa responsabilidade, Nara. ― Nyxs me respondeu como uma mulher adulta. Eu admirava isso nela, a seriedade com que via o mundo sem deixar morrer o lado infantil. Aliás, todas elas eram assim.
― Pois resolvam os problemas de vocês com Amkaly, sem confusão ou brigas. Conversem com ela e se entendam. E vocês, gêmeas, fiquem de fora disso. Deixem que Nyxs e Nalum se resolvam entre elas. ― A dupla deu pouca importância ao que falei, por isso continuei de forma mais branda. ― Amkaly é incrível. Tem vontade de viver, de conhecer coisas novas. Parece uma criança descobrindo o mundo, o que não deixa de ser verdade. Ela ficou metade da sua vida em cárcere privado e quando saiu não conhecia nada do mundo, tudo era novidade. Acho que foi essa fragilidade que encantou o instinto de proteção da minha loba.
Quando nenhuma das meninas reagiu, parei. Elas encaravam Nyxs, que parecia uma estátua, os olhos incrivelmente arregalados me olhando.
― Está sentindo alguma coisa, Nyxs?
Seu olhar parado e perdido estava me assustando. Heloise saiu não sei de onde e pegou na mão da loba, porém eu fui mais rápida. Já estava de pé, segurando seu rosto entre minhas mãos, buscando nossa conexão, tentando encontrá-la através do nosso laço.
― O que foi? Vem, senta aqui. ― Pedi, pegando sua mão. Estava tão fria e úmida. A fiz sentar na cadeira onde antes eu estava, me afastando um pouco para que Heloise a examinasse.
Nyxs começou a chorar, num desespero que chegava a preocupar, mas não falava nada. Mais uma vez a procurei pelo laço e a encontrei nadando desesperada para subir, em busca de algo para se agarrar. Segurei sua mão, puxando para tirar seu corpo de onde estava se afogando. Aos poucos, encontrei um lugar seguro onde a deixei e voltei pelo mesmo caminho escuro por onde entrei, de volta à realidade, aguardando para saber o que a tinha deixado nesse estado.
― Conseguiu descobrir alguma coisa, Heloise? ― Perguntei. A garota me olhou com um olhar enigmático, como se soubesse a verdade e não quisesse me contar.
―Não é nada demais. Talvez seu ciclo esteja próximo e, com ele, a oscilação nas emoções vem junto. Ela tem que deitar um pouco, tomar um tônico de ervas, e quando acordar vai estar pronta para outra.
― Eu estou bem, gente. Foi uma coisa que me deu de uma hora para outra. Saí do meu corpo de uma vez, como se tivesse sido puxada para outro lugar. ― Nyxs falou, com o olhar preso no meu.
― Consegue lembrar como era esse lugar? O cheiro, quem estava lá? ― Perguntei, tentando entender mais sobre a experiência de Nyxs. Será que ela tinha me visto procurando pelo laço?
― Não sei direito, mas tinha umas montanhas, e tenho a impressão que você estava me chamando. Ouvi minha vó mandar você se segurar na parede,
ouvi também a voz da minha mãe, e eu tinha que chegar onde vocês estavam, mas não achava o caminho. O lugar dava medo. O que será que isso quer dizer? Será que estou tendo uma visão do futuro? ― Nyxs compartilhou, parecendo intrigada com suas próprias memórias.
Quase me enfartei ali mesmo. As lembranças estavam começando a aparecer. A primeira vez que vi Nyxs adulta foi justamente nesse local, quando eu tentava ver ou ouvir o que tinha do outro lado da pedra e ela veio me ajudar. Também foi a primeira vez que ela flertou comigo abertamente.
― Acho que é ao contrário. Você teve uma lembrança do passado. Eu e sua família estivemos neste local quando fomos libertar Irasfil. ― Expliquei, tentando oferecer uma explicação lógica para a experiência de Nyxs.
Inúmeros pares de olhos se voltaram para mim, esperando mais informações. Mas eu não podia dar. Segundo o próprio Irasfil, ela tinha que lembrar sozinha, sem uma palavra dita por mim.
― Mas por que essas lembranças me apertam tanto o coração? E por que me deixam com essa tristeza infinita, essa vontade de chorar, essa sensação louca de perda? É isso, a sensação é de ter perdido a coisa mais importante da minha vida. ― Seus olhos brilhavam em busca de respostas que eu não podia dar no momento.
― Acho que a aldrava pode explicar isso quando voltarmos para casa. Enquanto isso, se qualquer uma fizer uma viagem dessas, tentem lembrar de todos os detalhes. Assim podemos entender. ― Sugeri, tentando oferecer algum conforto diante da intensidade das emoções de Nyxs.
Fim do capítulo
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