Capítulo 32
Durante toda a viagem, que durou cerca de duas horas, Clara não disse mais que algumas palavras, só respondendo quando algo lhe era perguntado. Estava encoberta por uma sensação de irrealidade, sentada no banco de trás do automóvel, com Marina ao volante e Alice no banco do carona. Uma cena que jamais imaginaria se tornar realidade. Demorou para entender até mesmo quando Marina explicou, antes de saírem da hospedagem:
— Achei melhor ir pessoalmente com você até o Cartório. Conheço todos que trabalham lá, posso tentar acelerar o processo se eu conversar com eles pessoalmente.
Tinha apenas meneado a cabeça em resposta. E repetiu o gesto, ainda mais sem jeito, quando Marina completou:
— Alice vai nos acompanhar, se não for um problema pra você…
*****
Assim que chegaram à cidade, foram diretamente ao Cartório de Registros. Como Marina havia dito, a presença dela foi essencial. O atendimento foi primoroso e saíram de lá com a promessa de que os documentos ficariam disponíveis em dois dias ou, no máximo, três.
Depois, seguiram no automóvel até Marina parar em frente à um hotel que demonstrava, só pela faixada, ser bastante luxuoso. As três desceram do carro enquanto um funcionário do hotel pegava as malas no bagageiro.
Clara não permitiu que levassem sua mala. Não tinha a menor pretensão de se hospedar em um lugar como aquele. Primeiro porque não saberia nem se portar no meio daquelas pessoas e segundo porque não estava em condições de pagar por aquilo. O que menos precisava agora era gastar com coisas supérfluas, já que compraria a casa e teria muitos reparos para fazer.
— Eu vou procurar um lugar aqui por perto.
Foi Alice quem a contestou:
— Como assim? Você vai se hospedar conosco.
O silêncio que pairou entre elas, a fez completar:
— No mesmo hotel, quero dizer…
Marina disse, pegando a mala de sua mão:
— Não tem motivo pra você ir pra outro lugar.
Clara olhou para as duas, paradas em sua frente:
— Eu realmente prefiro achar outra hospedagem.
Marina tirou os óculos escuros e a olhou como se estivesse lidando com uma criança birrenta:
— Os quartos já estão reservados.
Não deu tempo para resposta. Estendeu o braço direito para que Clara e Alice passassem em sua frente. Quando chegaram à recepção, Clara precisou de toda sua concentração para não deixar transparecer nada, quando ouviu Marina dizer:
— Tenho dois quartos reservados. Marina Alencar.
Era óbvio que as duas dividiriam o mesmo quarto. Nada que levantasse nenhuma suspeita, duas amigas se hospedando juntas. Clara sufocou o desconforto dentro de si, não tinha motivos para aquilo. Sabia que as duas estavam juntas, dormiam juntas todos os dias na fazenda, eram um casal.
Marina lhe entregou a chave de um dos quartos e as três subiram em silêncio. Precisou se esforçar novamente para não reagir quando pararam no corredor e percebeu que os quartos eram um ao lado do outro. Girou a chave em sua porta, enquanto Marina fazia o mesmo na porta ao lado. Entrou sem olhar para trás, fechou a porta e encostou as costas na madeira, tapando o rosto com as mãos. Seriam longas horas até voltar para a segurança do seu quarto na hospedagem de Lena.
*****
Alice sentou na cama e começou a tirar os sapatos, enquanto Marina foi até a janela e apreciou a vista por alguns segundos. Depois virou-se para ela e perguntou:
— Quer dar uma volta para conhecer a cidade?
Tirou as meias no momento em que respondeu:
— Adoraria, meu amor… Mas pode ser outra hora?
Deitou-se na cama e Marina fez o mesmo ao seu lado, perguntando:
— Está cansada, não é?
Suspirou, fechando os olhos. Tinha saído de uma manhã intensa de trabalho no hospital, passou na fazenda apenas para tomar um banho e arrumar sua mala.
Marina havia sido contundente quando disse que pretendia levar Clara pessoalmente para conseguir os documentos:
— Quero que você também vá.
Imaginava os motivos dela, mas não via razão para aquilo:
— Marina, está tudo bem… Não tem necessidade de eu ir junto.
Foi abraçando-a pela cintura e dizendo num tom sedutor que Marina a convenceu:
— Não quero passar nem uma noite longe de você.
Naquele momento, naquele quarto de hotel, deitada com Marina acariciando seus cabelos, ficou feliz por ter sido convencida. Virou-se de frente para ela, e se aninhou em seu peito, enquanto era embalada por carícias e beijos singelos.
Só percebeu que havia adormecido quando a voz de Marina a despertou. Abriu os olhos devagar:
— Que horas são?
A resposta veio acompanhada de um beijo:
— Hora do jantar.
Espreguiçou-se, sentando na cama:
— Quanto tempo eu dormi?
Marina respondeu já de pé e vestida:
— Algumas horas…
Teria voltado a se deitar por alguns minutos se Marina não a impedisse, a puxando pelos braços:
— Nada disso… Se apronte porque eu estou morrendo de fome.
*****
Clara estava com a sensação de que aquelas horas naquele quarto de hotel haviam sido dias. Deitou e se levantou daquela cama uma infinidade de vezes. Tentou ler um dos livros disponíveis na cabeceira, mas não conseguia se concentrar. O pensamento preso no quarto ao lado, sem saber se era melhor ouvir as vozes, que as paredes nem tão grossas permitiam, ou o silêncio absoluto.
Quando bateram à porta, praticamente saltou da poltrona. O coração acelerado bateu ainda mais forte quando a abriu:
— Oi… Nós vamos descer pra jantar. Você está pronta?
Olhou para Alice, perversamente linda, como sempre. Os olhos dela a olhavam profundamente, como se quisessem lhe tocar.
— Eu… Ainda não me troquei.
Não tinha nem pensado em comida. Na verdade, não tinha pensado em nada que não fossem aquelas duas mulheres, desde que chegaram ao hotel.
Antes que Alice pudesse responder, Marina abriu a porta do próprio quarto e parou ao lado dela. Foi olhando para Clara que disse:
— Vamos?
Gaguejou a resposta:
— Eu ainda não… Eu… Encontro vocês lá.
Assim que as duas saíram, fechou a porta e ficou paralisada, completamente imóvel.
“O que está acontecendo?”
Não podia estar imaginando coisas. Os olhares que recebeu nos últimos dias, tanto de Alice quanto de Marina, eram… Diferentes. Aquilo não podia ser coisa da sua cabeça, não podia estar criando aquelas fantasias.
Só começou a se mover depois de mais alguns minutos, quando enfim conseguiu se desprender daqueles pensamentos. Tomou um banho rápido e, quando foi se vestir, agradeceu a seu “eu” do passado por ter comprado roupas novas. Penteou os cabelos de forma simples, nada elaborado, pois além de não saber como fazê-lo, não se sentia confortável para usar. Antes de sair do quarto, deu uma rápida olhada no espelho, tentando afastar o desejo inconsciente de agradar as duas mulheres que a esperavam lá embaixo.
Alice terminou a segunda taça de vinho com uma velocidade que preocupou Marina:
— Não é melhor tomar uma água?
A fala já estava começando a ficar afetada pelo álcool:
— Por quê?
Marina disse carinhosamente:
— Digamos que você não é muito forte pra bebida.
Fez uma careta antes de responder:
— Eu estou ótima.
Marina não disse mais nada. Sabia o motivo daquilo: Alice estava nervosa. E também sabia por qual razão: Clara.
Por mais que ela tentasse agir naturalmente, não demonstrar nada, Marina percebia toda mínima alteração na mulher que amava. Depois que as duas haviam assumido, naquela conversa no carro, o interesse em comum em Clara, não haviam mais conversado sobre aquele assunto. Era uma coisa que estava lá, as duas sabiam, as duas sentiam, mas não conseguiam externar. Ou pelo menos não sabiam como.
O garçom serviu mais uma taça, Alice deu um longo gole sob o olhar atento de Marina. Quando depositou a taça na mesa, os olhos foram atraídos, como um imã. Marina virou-se e também acompanhou Clara com o olhar até ela chegar na mesa. Assim que ela se sentou, Alice olhou-a e, imbuída da coragem proporcionada pelo álcool, disse:
— Você está linda.
A tensão de Clara ficou evidente na forma com que seu corpo se retesou e os olhos se arregalaram. Não respondeu, a única reação foi olhar para Marina. O rosto dela estava impassível, mas sabia que ela era ótima em não deixar transparecer o que estava sentindo.
O garçom veio até a mesa, colocou uma taça na frente de Clara e a serviu. Tentou recusar:
— Eu não bebo…
Mas, para seu total desespero, Alice colocou a mão sobre a sua:
— Tome pelo menos uma taça… Este vinho é maravilhoso.
Delicadamente se soltou da mão dela. Não teve coragem de olhar para Marina desta vez. Bebeu um breve gole do vinho, mantendo o olhar baixo. Não o levantou nem mesmo quando Marina perguntou para as duas:
— Vamos pedir a comida?
Imitando o gesto delas, Clara abriu o cardápio. Leu os nomes dos pratos sem saber do que se tratavam. A maioria era em língua estrangeira. Não saberia nem os pronunciar.
Marina percebeu a confusão de Clara e perguntou olhando para ela:
— Qual tipo de carne você prefere? Ou uma massa?
Clara foi obrigada a olhar para ela. O tom de Marina não demonstrava nenhum tipo de irritação, pelo contrário, continuava suave, e o olhar dela estava tão conectado no seu, que chegava a ser intimidador.
— Massa seria bom.
Marina enfim desviou o olhar e se dirigiu a Alice:
— E você, meu amor?
O apelido carinhoso fez o rosto de Clara enrubescer. Obviamente ninguém mais ouviu, mas parecia que estava presenciando algo proibido. Mais que isso, sentiu-se compartilhando com elas um momento íntimo.
Depois que Alice respondeu, Marina chamou o garçom e fez os pedidos. Quando ele deixou a mesa, o silêncio voltou a se tornar incômodo. Mas quando Alice falou, Clara só conseguiu pensar que seria melhor tê-lo mantido:
— Estou tão feliz em estar aqui com vocês duas.
Ela estava claramente alterada pelo álcool, mas isso não tornava o clima menos estranho.
Marina estendeu o próprio copo com água:
— Bebe um pouco.
Ignorando o gesto dela, Alice virou-se para Clara:
— Marina acha que estou embriagada.
Clara disse suavemente:
— Acho que você deveria mesmo tomar um pouco d’água.
Alice encostou as costas na cadeira e levantou as mãos, num sinal de rendição:
— Tudo bem, se estão as duas contra mim…
Tomou a água e não disse mais nada.
Foi Marina quem quebrou o silêncio, em um tom bem-humorado:
— Obrigada, Clara… Às vezes ela não me escuta…
Para seu mais profundo alívio, os pratos não demoraram a chegar. Clara tinha a intenção de comer sem nenhuma palavra, mas a conversa acabou parando nela:
— Como é a casa que você pretende comprar?
Limpou a boca antes de responder:
— Pra mim é ideal…
Alice parecia um pouco mais sóbria:
— Estou feliz por você.
Agradeceu sem olhá-la. Teria terminado aquele assunto ali, mas Marina não deixou:
— Lena me disse que a casa está abandonada.
Manteve os olhos no prato ao responder:
— Vai precisar de alguns reparos, mas eu não tenho pressa.
O que Marina disse a seguir quase a fez engasgar, pois não esperava:
— Vai nos convidar pra conhecer?
Olhou para ela e depois para Alice. Recebeu dois olhares intensos. Definitivamente não estava ficando louca. Ainda. Mas se continuasse perto delas por muito tempo, ficaria:
— Sim…
Quando terminaram de comer, Marina perguntou:
— Vão querer sobremesa?
Clara foi rápida:
— Eu acho que já vou me retirar.
Dessa vez foi Marina quem colocou a mão sobre a sua:
— Espera… Nós também já estamos indo. Vou fechar a conta.
No caminho até chegarem aos quartos, ninguém disse nada. Clara caminhou na frente, com Marina e Alice lado a lado, logo atrás. Ia colocar a chave na fechadura, mas antes disso, Marina perguntou:
— Quer tomar mais um vinho com a gente?
Clara parou o gesto pela metade. Ficou absolutamente imóvel olhando para as duas. Um lampejo de coragem, talvez ajudada pelo vinho, a fez perguntar de forma séria:
— O que está acontecendo?
Marina já havia destrancado a porta do próprio quarto, a entreabriu e ficou parada segurando na maçaneta. Foi Alice quem falou:
— Você não sabe?
A pergunta foi totalmente retórica, pois sem esperar nenhuma resposta e sem pensar que alguém poderia chegar no corredor a qualquer momento, avançou até Clara, a puxou pelo pescoço e a beijou.
Num primeiro momento Clara não teve reação. Fechou os olhos e tentou controlar o turbilhão que Alice despertou dentro dela. Quando as bocas se afastaram, procurou o olhar de Marina, que continuava parada no mesmo lugar, olhando para elas. Ela apenas abriu completamente a porta, num convite sem palavras.
Clara teve a impressão de ver tudo em câmera lenta quando foi puxada pela mão por Alice, entrou no quarto e ouviu o barulho da porta se fechando atrás dela.
Fim do capítulo
Comentar este capítulo:
Mmila
Em: 27/08/2023
Agora elas se entendem. Nem que seja com a ajuda de um vinho!
AlphaCancri
Em: 27/08/2023
Autora da história
Se elas soubessem que era só um vinho e tudo se resolveria, talvez não tivessem sofrido tanto, não é?
[Faça o login para poder comentar]
Raf31a
Em: 27/08/2023
Capítulo maravilhoso. Vou ler de novo para ver se não perdi nenhum detalhe.
AlphaCancri
Em: 27/08/2023
Autora da história
Aaah obrigada... Que bom que está gostando! Amanhã vou postar o antepenúltimo capítulo. Espero que também goste!
[Faça o login para poder comentar]
Marta Andrade dos Santos
Em: 27/08/2023
Se deu bem Clara eita que o quarto vai pegar fogo Marina de inocente tem nada quartos um ao lado do outro tudo planejado.
AlphaCancri
Em: 27/08/2023
Autora da história
Marina já é experiente, sabe muito hahahaha
[Faça o login para poder comentar]
Deixe seu comentário sobre a capitulo usando seu Facebook:
[Faça o login para poder comentar]