Capítulo 31
Alice estava na sua segunda semana trabalhando no hospital da cidade. Estava sorrindo depois de ter terminado o atendimento de uma pessoa com síndrome gripal. Sentia-se empolgada novamente, como na primeira vez que entrou em um hospital para estagiar, anos atrás.
Olhou para o relógio pendurado na parede e imaginou que algum dos homens já estaria lá fora a esperando.
Sorriu ao sair pela porta e ver Marina encostada no automóvel, com os braços cruzados. Precisou de toda sua força interior para conter a vontade que sentiu em beijá-la, quando ela fingiu reclamar:
— Está atrasada.
Mordeu o lábio inferior, mas não conseguiu desviar os olhos dos dela:
— Se eu soubesse que era você, teria vindo antes.
Marina não conteve o pequeno sorriso que se formou em seu rosto. Abriu a porta do carona para Alice e depois deu a volta no veículo, assumindo o volante.
Tentando aplacar um pouco a vontade quase insana que sentia em beijá-la ali mesmo, colocou a mão direita na perna dela. Olharam-se cúmplices e cientes de que precisariam sair dali o mais rápido possível, se não quisessem causar um escândalo na cidade.
*****
Clara estava voltando da agência de correspondências, depois de despachar alguns documentos da hospedagem a pedido de Alexandre. Resolveu fazer um trajeto diferente, passou por outras ruas que não tinha o costume de passar, pelo simples prazer de mudar a rotina. Andou sem pressa, observando as pessoas e as coisas ao seu redor. Era uma coisa que sempre chamava sua atenção: As pessoas vivendo, cada uma em seu próprio universo. Perto de uma esquina parou para observar uma casa que sempre tinha chamado sua atenção. Não parecia muito grande, mas para Clara tinha o tamanho ideal para uma vida tranquila e sossegada. Quando ia até a cidade com Saulo fazer a feira, e passavam por ali, se permitia imaginar uma vida que, naquela época, era totalmente impossível. Se imaginava vivendo naquele lugar, as modificações que faria no jardim - que parecia abandonado, pintaria a casa de uma cor mais clara, e teria, pelo menos, dois animais de estimação.
Ficou mais alguns minutos parada, apenas observando a construção. Uma ideia ganhando força dentro de si, gradualmente, como o fogo quando começa a queimar numa palha e depois se transforma em uma imensa chama, impossível de ser contida.
“E se eu…”
Não conseguia completar o pensamento:
“Não, eu jamais poderia.”
A imaginação de novo lhe mostrando diversos cenários que ela amaria viver. Permitiu-se, enfim, sonhar de novo. Dessa vez um sonho nem tão impossível assim.
Algumas pessoas passavam e a encaravam com estranheza, pois estava absolutamente imóvel olhando para uma casa fechada, com um jardim que quase parecia uma floresta. Mas não se importou, pois a chama dentro de si estava no ápice, queimando, iluminando tudo ao redor.
“E se eu…Sim. Sim!”
Entrou na hospedagem quase correndo. Procurou por Lena e a encontrou na cozinha, mexendo uma panela, enquanto as ajudantes picavam verduras e legumes.
Não pensou em nenhuma introdução. Tinha pressa, como se tivesse medo que aquela chama se apagasse:
— Eu seria louca se comprasse uma casa?
Lena parou o que estava fazendo e a olhou:
— O que você disse?
Repetiu no mesmo ritmo acelerado que tinha dito na primeira vez:
— Uma casa! Eu gostaria de comprar uma casa… A casa abandonada da esquina.
As outras moças também estavam olhando para Clara da mesma forma que Lena: como se ela estivesse realmente louca.
Lena a puxou gentilmente, enquanto pedia para que tomassem conta da panela no fogão. Quando chegaram até o escritório, perguntou:
— Do que você está falando?
Clara tentou falar mais calma dessa vez:
— Eu sempre me imaginei morando naquela casa. Você acha que existe alguma possibilidade de eu conseguir comprá-la?
O olhar de Lena se manteve bem aberto. Ela precisou de alguns segundos para responder:
— Talvez… Mas por que isso agora? De repente…
Abriu os braços, fazendo Lena se espantar ainda mais:
— Por que não agora? A vida não é agora? Neste momento? E se não houver um amanhã… Por que perder tempo? No meu caso, por que perder mais tempo?
Lena a fez sentar e sentou-se na cadeira em frente à ela:
— Tudo bem, entendi… Mas calma. Vou procurar saber sobre a casa. Quem é o dono, se gostariam de vender e quanto cobrariam por ela...
Clara não conseguiu se conter:
— Obrigada! Muito obrigada! Eu tenho o dinheiro que Marina me pagou. Se não for o suficiente, eu poderia tentar com o Banco…
Ciente de que não seria tão simples assim, mas não querendo jogar um balde de água fria nela, Lena foi contida:
— Um passo de cada vez. Primeiro vamos descobrir se a casa está à venda.
*****
Clara quase não conseguiu esperar por dois dias, até que Alexandre trouxe a notícia:
— A casa era de um senhor que faleceu há alguns anos. Os filhos não têm interesse em vir pra cá, por isso está tão mal cuidada. Acredito que eles ouviriam uma proposta…
Depois que conseguiram o endereço de um dos filhos do falecido morador, enviaram uma carta perguntando sobre a casa e se havia interesse em vendê-la. Clara ia pelo menos duas vezes por dia, sem exceção, até a agência saber se havia alguma resposta. Foram longos dias até que finalmente a reposta chegou. Abriu o envelope caminhando de volta para a hospedagem. Quase gritou de alegria no meio da rua quando leu que a resposta era positiva.
Alexandre a ajudou a fazer uma proposta justa, considerando o estado em que a casa se encontrava, e isso iria fazê-la gastar uma boa quantia com reparos. Mandou a mensagem por telegrama, querendo que tudo fosse resolvido o mais rápido possível. Os dias que se passaram até o telegrama voltar, pareceram meses.
Lena e Alexandre estavam no salão quando entrou:
— Eles aceitaram! Vão me vender a casa…
Comemoraram juntos, os três em um único abraço. Quando se separaram, Clara completou:
— Um dos filhos virá na semana que vem para assinarmos os papéis.
Lena a abraçou novamente:
— Estou tão feliz por você.
Alexandre disse, pensando nos termos práticos:
— Vamos contratar um advogado para te acompanhar no dia e não deixar que você seja passada pra trás… Assim como existe gente boa, existe muita gente ruim nesse mundo…
Concordou e agradeceu os dois efusivamente:
— Muito obrigada mesmo! Se não fosse por vocês, eu jamais conseguiria.
Seu sorriso sumiu aos poucos, aos e dar conta do problema que não havia pensado antes, quando Alexandre disse:
— Separe seus documentos, deixe tudo organizado com antecedência.
*****
Voltar àquela fazenda despertava nela um misto de sensações que iam da nostalgia ao nervosismo em milésimos de segundos. Desceu da carroça do amigo de Alexandre, que a levou até ali, em frente à casa. Respirou fundo, um turbilhão de lembranças e sentimentos a invadindo.
Deu a volta até a porta dos fundos. Marta estava de costas, ocupada no fogão.
— Será que já tem café aqui?
A cozinheira virou-se surpresa, depois praticamente gritou:
— Não acredito!
Clara foi efusivamente abraçada enquanto Marta disparava sem parar:
— Até que enfim se lembrou da gente... Deixa eu olhar pra você... Tem comido direito? Tô te achando magra...
Sorriu para Marta e se recriminou interiormente por não ter vindo vê-la antes. Mas como poderia, se todos os dias tentava esquecer que aquela fazenda existia:
— Eu estou bem... Não se preocupe.
Olhou para a moça que picava algum tipo de legume sentada à mesa. Só então Marta pareceu se lembrar dela:
— Esta é Eugênia, a nova ajudante que Lena conseguiu.
A moça sorriu:
— Muito prazer.
Clara respondeu da mesma forma. Não deu tempo de dizer mais nada, pois Marta emendou novamente:
— Aposto que tem se alimentado mal... Pelo menos está usando uma roupa nova. Lena tem cuidado de você?
Foi salva de um possível interrogatório quando Saulo, João e Sebastião chegaram na cozinha:
— Olha quem apareceu...
Cumprimentou os três. No começo, se sentiu desconfortável com Saulo, ainda não havia superado o que descobriu sobre ele e a morte de seu pai. Mas conversaram por algum tempo sobre as novidades dos últimos meses, Marta a fez sentar para tomar café, comer pão e bolo. Já estava há meia hora ali, e logo o amigo de Alexandre voltaria para buscá-la:
— Marina está em casa? Preciso conversar com ela.
Foi Marta quem respondeu:
— Ela e a doutora Alice ainda não acordaram… Aquelas duas têm gostado muito de dormir.
Fez um grande esforço para não ficar pensando em tudo que aquela informação continha nas entrelinhas, e que Marta certamente ignorava. Já estava pensando que precisaria voltar outro dia, quando as duas chegaram à cozinha: primeiro Marina, e Alice logo atrás. Por sorte, Marta não permitiu que um silêncio constrangedor se instaurasse, quando as três se olharam:
— Dona Marina, olha quem está aqui!
Marina respondeu sem saber como agir:
— Como vai?
Clara respondeu rápido:
— Bem, obrigada.
Foi inevitável olhar para Alice, o rosto ficou vermelho, lembrando da última vez em que se viram:
— Oi.
A resposta dela também foi curta e polida:
— Olá.
Quando voltou-se para Marina, imaginou que receberia um olhar capaz de derrubá-la, mas não foi isso que encontrou. Seu olhar estava… Calmo até demais.
Sem poder perder tempo, pediu:
— Eu gostaria de conversar com você um instante, por favor.
Se a ex-patroa estranhou aquele pedido, não demonstrou. Marina se virou e olhou para Alice, que disse olhando nos olhos dela:
— Eu já vou para o hospital…
Manteve o olhar no de Alice ao responder:
— Eu mesma te busco mais tarde.
Ficaram mais alguns segundos se olhando. Ninguém naquele cômodo notou nada, exceto Clara. Para ela era nítida a intimidade que as duas compartilhavam, como aquela troca de olhares era uma carícia, já que as duas não podiam se tocar, nem dizer nada íntimo na frente dos outros.
Alice disse um tímido tchau ao passar por Clara, e seguiu com João para o automóvel.
Apenas quando ela saiu pela porta, Marina olhou novamente para Clara:
— Vamos ao escritório.
Sentada novamente naquela cadeira, de frente para Marina, Clara achou graça em perceber que nada ali havia mudado, mas agora tudo parecia diferente. Talvez pelo fato dela agora ver as coisas por outra perspectiva.
— No que eu posso te ajudar?
Olhou para Marina e respondeu firme:
— Eu estou precisando dos meus documentos…
Marina não disse nada. Esperou que Clara continuasse:
— Com uma certa urgência.
O olhar de Marina não desviou dela nem por milésimos de segundos. O tom de voz soou calmo:
— Eu não tenho seus documentos… Você chegou aqui sem nada…
Clara suspirou:
— Eu sei… Estava pensando se você poderia me ajudar a recuperá-los.
A resposta dela veio sem hesitação nenhuma:
— Claro.
Os olhos de Marina permaneceram nela, a olhando profundamente, sem desviar. Clara não queria dar o braço a torcer, não queria desviar o olhar, mas não conseguiu sustentar a intensidade de Marina. Sabia que o rosto já estava vermelho, olhou para o chão quando disse:
— Eu descartei meus documentos antes de ir trabalhar na outra fazenda. Não queria que ninguém das redondezas soubesse quem eu era.
Só então olhou-a novamente:
— Por causa do que aconteceu com meu pai… Eu achava que você era… Você sabe… Eu achava que tinha sido você.
Marina apenas balançou a cabeça.
— Será que tem como conseguir os papéis até a próxima semana?
A resposta foi sincera:
— Não posso te garantir isso. Mas vou fazer o possível e tentar o impossível pra te ajudar.
O coração de Clara estava acelerado. Aquela Marina a estava desconcertando. Não era a mulher má e sem escrúpulos que Clara havia moldado na própria mente durante anos. Ela estava diferente… Não que agora acreditasse que ela não tinha defeitos, mas a atenção que ela a dispensava, o jeito que falava, aquele olhar…
Levantou-se de repente, precisando de qualquer maneira impedir aquele pensamento:
— O que eu preciso fazer?
Marina demonstrou no seu semblante a surpresa por aquele rompante:
— Vou fazer uma ligação para meu contato hoje mesmo… Assim que tiver uma resposta, eu te aviso.
Depois também ficou de pé e perguntou:
— Mas por que toda essa pressa agora?
Clara não viu motivos para mentir:
— Estou pretendendo comprar uma casa.
Percebeu um pequeno sorriso, quase imperceptível, surgir nos lábios de Marina, quando ela disse:
— Ótimo investimento. Te aconselho procurar um advogado… Eu posso te ajudar com isso também.
— Alexandre já conseguiu um pra mim, obrigada.
Temendo parecer rude, completou:
— Mas te procuro se precisar de alguma coisa.
*****
Estava tentando ler os papéis que tinha nas mãos, mas a ansiedade não permitia. Três dias haviam se passado desde que foi até a fazenda e Marina não havia lhe dado nenhuma resposta. Sabia que ela era sua melhor chance de conseguir os documentos tão rápido. A influência dela na região era grande. Decidiu que, se até o dia seguinte, Marina não dissesse nada, tentaria a sorte e pegaria o trem até a cidade que emitia os documentos.
Lena entrou no escritório depois de batidas rápidas na porta:
— Você tem visita…
Clara a olhou com uma das sobrancelhas levantada:
— Quem é?
Lena apenas sorriu e disse, antes de se virar e sair:
— Vem.
Levantou-se e saiu do escritório. Não precisou andar muito até ver Alice e Marina paradas na recepção. A praticidade de Marina ficou evidente mais uma vez, pois ela falou sem nem mesmo cumprimentá-la:
— Acho que conseguiremos seus documentos até a semana que vem, mas pra isso temos que viajar ainda hoje.
Ficou um pouco atordoada com aquela informação. Não só pela pressa exigida, mas pelo uso da primeira pessoa do plural. Se perguntou se Marina pretendia viajar com ela, mas não foi isso que verbalizou:
— Tudo bem… Eu pego a próxima condução…
Marina foi direta, mas não foi rude. Usou aquele tom e aquele olhar que Clara estava começando a se acostumar… E gostar:
— Não… Precisamos sair o quanto antes. Arrume uma pequena mala, pois pode ser que tenhamos que pernoitar. Eu e Alice te esperamos no automóvel.
Fim do capítulo
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Raf31a
Em: 25/08/2023
Eita atrás de eita!
Clara vai em busca dos documentos e pode encontrar um pouco mais.
AlphaCancri
Em: 27/08/2023
Autora da história
Como diz o ditado: quem procura acha... hahaha
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Marta Andrade dos Santos
Em: 24/08/2023
Eita! As três viajando juntos.
AlphaCancri
Em: 27/08/2023
Autora da história
Ou vai dar muito certo ou vai dar muito errado, você não acha? rsrs
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DixonDani
Em: 24/08/2023
Aiaiai... autora não se atreva a demorar a postar os próximos capítulos ???? brincadeiras a parte, gostando bastante da estoria! Abraço
AlphaCancri
Em: 27/08/2023
Autora da história
Oi, Dani! Seu pedido é uma ordem, novo capítulo postado hahaha
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AlphaCancri Em: 02/09/2023 Autora da história
Será que finalmente bons ventos chegarão até Clara?