Capítulo 30
Clara havia saído do banho, mas os pensamentos que se formaram em sua mente, enquanto se banhava, a acompanharam. Não conseguia definir muito bem o que sentia por Isabel. Tinha um carinho enorme por ela, isso era óbvio, adorava a companhia dela, as conversas entre as duas só paravam quando precisavam se despedir para dormir. O beijo havia sido bom, mas ainda não conseguia ultrapassar a barreira que se obrigou a criar para se proteger.
Queria, com todas as suas forças, se entregar àquela relação que poderia se desenvolver. Mas apesar da cabeça querer, o coração não permitia. Passava os dias se concentrando em outras coisas, na procura por trabalho, ajudando Lena na hospedagem, lendo livros que não falassem de romance, e quando os pensamentos começavam a galopar em direção àquela fazenda, os cortava.
O problema era que o subconsciente não era seu aliado, e tudo aquilo que reprimia durante o dia, voltava em forma de sonho durante as noites. Não foram poucas as vezes em que despertou agoniada depois de sonhar com as duas mulheres que tiravam sua paz. Não sabia se odiava mais quando o sonho era um embate entre as três ou quando era uma cena das três compartilhando a mesma cama.
Terminou de se vestir no momento em que bateram à porta. Temeu que fosse Isabel, pois não sabia ainda como se portar quando ficavam a sós.
Abriu a porta e se sentiu aliviada em ver Lena.
— Atrapalho?
Respondeu sorrindo:
— Claro que não... Entra.
— Queria falar com você sobre alguns assuntos...
Ficou apreensiva diante da formalidade com que a frase foi dita. Sentou-se na beirada da cama e indicou a cadeira para ela:
— Aconteceu alguma coisa?
Já sentada, Lena respondeu:
— Eu queria te fazer uma proposta.
Clara balançou a cabeça para que ela continuasse.
— Você tem dado uma ajuda e tanto pra Alexandre. Nunca pensei em te oferecer um emprego aqui porque... Bem... Já conhecia suas habilidades numa cozinha… Assim como não te via como uma garçonete.
A resposta de Clara foi bem-humorada:
— Muito obrigada pela consideração...
Lena riu um pouco antes de continuar:
— Estive pensando... O que você acha de trabalhar com a parte burocrática da hospedagem? Ajudaria muito e me livraria de uma imensidão de estresse com os papéis.
Não estava esperando por aquilo. Nunca tinha cogitado trabalhar numa função que demandasse mais esforço da mente do que do corpo. Mas não podia negar que já estava até se dando bem com aquele tanto de papéis:
— Você não está me oferecendo este emprego só pra me ajudar, não é? A última coisa que quero é atrapalhar vocês...
Lena foi carinhosa:
— Eu com certeza faria isso pra te ajudar... Mas não é o caso. Alexandre tem me dito que, se não fosse você, estaria perdido.
Ciente da sinceridade dela, e grata por todo suporte que vinha recebendo desde que saiu da fazenda, respondeu:
— Se eu realmente for ajudar, e não atrapalhar, seria ótimo.
Entusiasmada, Lena disse:
— Maravilha! Então está resolvido.
Depois completou com a voz pesarosa:
— Não temos como te pagar muito... Pelo menos não por agora, mas assim que possível, prometo rever seu salário.
— Não se preocupe com isso, você já está me ajudando demais.
Lena se ajeitou na cadeira:
— Agora um outro assunto mais pessoal...
Olhou para Clara com um sorriso divertido, antes de continuar:
— O que está acontecendo entre você e Isabel?
Suspirou antes de tentar responder à pergunta dela:
— Nós... Pra ser sincera... Eu também não sei.
— Mas algo está acontecendo...
Tentou ser o mais sincera possível, com a clareza que possuía naquele momento:
— Nós nos beijamos. Foi muito bom, mas... Eu não sei se... Eu não consigo ainda...
Lena balançou a cabeça, demonstrando que compreendia. Depois foi direta:
— É por causa de Alice ou... De Marina?
Clara a olhou, mas não disse nada. Não havia contado para Lena sobre o que tinha acontecido entre ela e Marina. Era uma coisa que não queria falar para ninguém. Se perguntou se a ex-patroa havia falado, mas Lena logo tirou sua dúvida:
— No dia em que elas estiveram aqui, Marina não tirou os olhos de você. Nem mesmo a doutora te olhou tanto...
Sabia que ela queria uma resposta, e deu. Não queria entrar em detalhes, por isso apenas disse:
— Aconteceu uma única vez.
Lena não disfarçou a surpresa:
— Tá aí uma coisa que eu não imaginava...
Baixou o olhar, sem saber o que dizer. Lena não se deu por satisfeita:
— Eu achava que você era apaixonada pela doutora.
Não pensou, apenas respondeu a verdade que trazia dentro de si:
— Eu sou.
O olhar de Lena foi o suficiente, nem precisou formular uma pergunta, pois Clara entendeu e respondeu:
— Com Marina foi apenas um deslize.
— Um deslize que, pelo visto, ela não esqueceu.
Clara passou a mão no rosto, suspirando:
— Elas estão juntas.
Levantou-se querendo acabar com aquela conversa que já estava desconfortável.
Lena também ficou de pé:
— Você sabe que me preocupo com você.
Forçou um sorriso para ela, e respondeu o que sabia ser verdade, pois já havia passado por coisas muito piores na vida:
— Eu vou sobreviver.
*****
Com o trabalho que agora desempenhava na hospedagem, Clara não sentia o tempo passar. Durante o dia, ficava no escritório improvisado montado por Lena em um quartinho, que antes servia para guardar de tudo um pouco. À noite, ajudava na recepção e fazia o que podia na cozinha. Apenas tarefas simples, pois tinha consciência de que poderia mais atrapalhar do que ajudar.
Saiu do escritório guiada pelo cheiro maravilhoso de broa de fubá que vinha da cozinha. Somente naquele momento tinha se dado conta de que estava com fome, pois não havia comido nada depois do almoço.
Assim que pisou no salão, a viu. Ela estava de costas, os cabelos castanhos lisos estavam presos em um penteado que Clara achou perfeito. O perfume que veio dela invadiu suas narinas, despertando a memória da maciez daqueles fios, assim como da maciez da pele. Sentiu uma onda de adrenalina que percorreu todo seu corpo. Achava que já estava um pouco mais imune a ela, que já havia conseguido mudar um pouco os sentimentos e aceitar que ela não fazia e nunca faria parte de sua vida. Mas ao vê-la ali, naquele momento, percebeu que não seria assim tão fácil. Quando ela se virou, como se sentisse sua presença, estremeceu dos pés a cabeça. O sorriso que ela deu foi contido, mas nem por isso menos doce. Linda, absurdamente linda. Não uma beleza estonteante que faria qualquer pessoa se perder de paixão na primeira vez que a visse. Mas uma beleza serena, que inebria devagar, conforme vai se percebendo cada detalhe dela. Os olhos da cor dos cabelos, as marquinhas que se formavam nas bochechas quando ela sorria e aquele olhar que encantava e sempre aparecia nos seus sonhos.
— Oi…
A voz suave fez Clara sair do seu transe. O primeiro impulso foi fugir. Cumprimentá-la brevemente e sair porta à fora, só retornando para aquela hospedagem quando ela não estivesse mais lá. Mas algo a impediu. Talvez a saudade que sentia. Por mais que a tivesse visto na semana anterior, agora era diferente. Ela estava ali sozinha, parada em sua frente.
Respondeu com os olhos presos nos dela. O tom da voz saiu tão suave que foi quase inaudível:
— Oi… Como você está?
Alice sorriu para ela novamente:
— Bem, e você?
Os olhos não se desgrudaram por nenhum momento. Como se as duas estivessem se vendo pela primeira vez depois de muito tempo:
— Também…
O silêncio que se seguiu não foi constrangedor para nenhuma das duas. Parecia que naquela falta de palavras, se diziam muitas coisas que ficaram sem ser ditas.
Alice deu dois passos, se aproximando mais. Estendeu a mão direita e com o polegar acariciou o rosto de Clara.
Aquele toque suave foi tão profundo que a fez sentir os olhos marejados. Os fechou quando ouviu Alice dizer:
— Senti sua falta.
E os abriu no momento em que respondeu:
— Eu sinto… Todos os dias.
Se Alice ia responder, jamais saberia, pois Lena apareceu, tirando o avental. Estancou ao vê-las tão próximas, mas disfarçou. Falou com Alice:
— Vamos?
A resposta foi um aceno de cabeça.
Lena disse para Clara:
— Vamos até o hospital resolver umas coisas… Se alguém perguntar por mim, diga que não demoro.
— Está bem.
Lena se aproximou e a beijou no rosto, demonstrando com o olhar que havia percebido o quanto aquele encontro com Alice tinha mexido com ela.
*****
Marina tirou a sela e o cabresto do cavalo e foi banhar o animal antes de soltá-lo no pasto. Estava saindo do curral quando ouviu o automóvel. Esperou na porteira até que se aproximasse e acenou para Alice que estava no banco traseiro.
Quando chegou na cozinha, viu pela cara de Alice que havia dado tudo certo. Sabia que ela estava apreensiva quando foi para a cidade, pois, por mais que tentasse negar, era visível que já havia criado expectativas em relação ao trabalho no hospital.
Quando, enfim, entraram no escritório, depois de alguns minutos conversando com Marta – que sempre tinha muito assunto – Alice se jogou em seus braços:
— Consegui! Está tudo certo, começo ainda esta semana.
A abraçou mais e beijou seu rosto:
— Que boa notícia, meu amor… Fico feliz por você.
Alice estava enérgica, como a muito tempo não a via:
— Não se preocupe, serão só dois dias na semana. Eu só vou precisar que alguém me leve até a cidade… E depois me busque…
Marina riu da careta que ela fez:
— Isso não é problema. Quem sabe você até não aprende a conduzir, pra ir e voltar sozinha.
Alice pareceu ouvir a coisa mais absurda do mundo:
— Eu jamais vou querer aprender a fazer isso. Acho uma coisa… Masculina demais.
Fingiu ter se ofendido com a frase:
— É mesmo? Então quer dizer que é isso que você acha quando me vê ao volante?
Alice enlaçou seu pescoço, beijou-a levemente e disse num tom repleto de segundas intenções:
— Claro que não… Vou te dizer o que eu sinto quando te vejo conduzindo.
Empurrou Marina até que o corpo dela encostasse na mesa e completou:
— No seu ouvido…
Fim do capítulo
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Marta Andrade dos Santos
Em: 21/08/2023
É tá complicado Clara.
AlphaCancri
Em: 24/08/2023
Autora da história
Ela não tem paz hahahah
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Raf31a
Em: 21/08/2023
Ansiosa pelo momento em que a Clara vai perceber que com Marina foi bem mais que um "deslize"...
AlphaCancri
Em: 24/08/2023
Autora da história
O pior cego é aquele que não quer ver, né? Será que é o caso dela? hahah
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AlphaCancri Em: 02/09/2023 Autora da história
Às vezes parece que ela não quer se libertar rsrsrs